Alguns de vocês que nasceram agora, e com acesso à internet que já não é barata, devem pensar que o maior engodo se chama Ematum. Algo que até o autor destas linhas e em canal aberto avisou a quem de direito que NUNCA avançaria, pelo menos nos moldes propostos. Mas, como se diz, a voz do pobre não chega ao céu: hoje temos chefe da nossa secreta, filho de Chefe de Estado e outros na cadeia. Nunca uso o “ Ex Presidente” GUEBUZA. Para mim é Presidente, e Nyusi também será Presidente depois de Março de 2025.
Milli Vanilli foi a pior mentira que eu vi. Dois jovens sarados, numa altura em que as duas Alemanhas estão se a juntar, e com isso o fim da Guerra Fria, portanto o desmoronamento dos blocos, pelo menos o Tratado de Varsóvia pois, a NATO está muito viva e activa.
O engodo Milli Vanilli...Fab Morvan e Rob Pilatus engendraram um plano lixado com o produtor do Boney M. Frank Farian, em 1988: trazer gajos bonitos para o palco, só que não cantavam! Sim, tipo assim eu Dino Foi cantar “My number one” no palco, enquanto lá atrás na verdade quem canta é o não menos conhecido King Bawito!
Nos fizeram dançar em todo país aqueles filhos de uma árvore até a verdade vir à tona: nunca cantaram. Quando tentaram cantar foi um fiasco que entraram em drogas até o grupo morrer. Na verdade houve mesmo morte de pessoas por overdose.
Mas não é sobre música que estou aqui a chamar à colação. É sobre a mentira que estamos a construir como país. Temos de parar, antes que forças estrangeiras nos parem, não no interesse dos moçambicanos, possivelmente no interesse delas!
Numa altura em que ficou claro que quem tentou derrubar um governo democraticamente eleito na RDC é alguém que esteve e muito bem neste país e a conversar com as elites políticas deste país, estamos a autorizar a entrada de mais 2,500 militares estrangeiros, que queiramos ou não, estão directa ou indirectamente ligadas à aquela operação, enquanto um bebé bonito, nascido em dificuldades, o CHAPO, que daqui a 6 meses deve ser o Comandante-em-Chefe das nossas forças armadas, se prepara para ser o nosso líder supremo!
Quem é do meu círculo privado sabe que em função do que sairia daquele Comité Central na Matola eu ia entregar o meu cartão ao Partido Frelimo em Julho deste ano, possivelmente ninguém ia notar porque sou um membro júnior mas, quando se chega a minha idade temos de ver o que entra na boca e, principalmente onde enterramos outras coisas .
É que nesta idade sabemos muito bem o que queremos, mas mais do que isso, o que não queremos. Definitivamente Milli Vanilli outra vez não! Os meus filhos, quando todos nós falharmos, devem ir buscar a posição do pai quando os bons se calaram. Em Moçambique, ainda é possível. Dino Foi
A propósito da passagem dos 49 anos da criação da polícia moçambicana no passado dia 17 de Maio lembrar algumas palavras de Samora Machel (1933─1986), então presidente de Moçambique (1975─1986), sobre a polícia e que foram proferidas durante um comício nos dias 24 e 25 de Maio de 1983 nem Nampula, uma província do norte de Moçambique.
Neste comício Samora Machel fez um diagnóstico sobre as causas dos abusos e irregularidades cometidos por alguns elementos das Forças de Defesa e Segurança (FDS), em particular da polícia, depois que debruçara sobre o mesmo assunto na reunião do então Bureau Político da Frelimo (ora Comissão Política), a primeira fora da capital desde a independência do país, decorrida dias antes, também em Nampula.
Em geral, para Samora Machel, as causas destes abusos e irregularidades decorriam da educação que se recebe na família, prosseguiam na escola e prolongar-se-iam nos critérios de recrutamento para as FDS, no caso da Polícia, e que se enraizavam na sua deficiente formação no ramo.
No citado comício, entre várias coisas ditas por Samora Machel sobre a polícia na altura, e porque ainda actuais, seguem abaixo alguns trechos que foram editados sem prejuízo da mensagem e subdivididos em três partes (Fundamentação; A questão de fundo; A solução). Os trechos foram extraídos da brochura “O Poder Popular Garante a Legalidade (Samora Machel)”. Número 27 da colecção "PALAVRAS de ORDEM". Edição do Partido Frelimo. Vamos ouvir/ler:
Fundamentação
“O polícia deve ser um elemento político, altamente educado e cortês. ... um polícia não pode dar um pontapé a ninguém! O polícia que dá um pontapé a um cidadão, e particularmente a uma senhora ou a um jovem, não tem ética, não tem brio profissional, não respeita a farda que enverga, não dignifica o seu boné que tem o emblema da República Popular de Moçambique. Esse polícia não sabe o que representa a farda que enverga”.
“Um polícia espancar as pessoas é o cúmulo da vergonha! Este elemento não serve para a estrutura do Estado. Ele, embora fardado, não representa o nosso poder popular.”
“O polícia que anda com as pernas tortas, esse não é polícia. O polícia que mete o dedo no nariz e limpa o dedo na farda, não é polícia! O polícia anda sempre com a coluna vertebral bem esticada, com um passo bem cadenciado! Esse, sim, é um polícia!”
“A Polícia, no Mundo, é assim: não vive confortavelmente, renuncia ao conforto. O polícia não deve ter uma cama com um colchão fofo. Todos eles dormem numa tarimba, mesmo o Comandante.”
“O Comandante-Geral da Polícia, em toda a parte do Mundo, dorme na tarimba para ter sempre a coluna vertebral bem esticada! É que o colchão de luxo dobra a coluna, e então, o polícia dobra a farda, dobra o poder também! Se o polícia anda com as costas curvadas, que polícia é este? Que imagem nos transmite? ”
A questão de fundo
“… Por que é que temos polícias assim? Porque não seleccionamos, porque produzimos polícias em série, como se estivéssemos na época dos fenícios! ”
“Recrutámo-los (os polícias) sem qualquer critério de selecção e abrimos um campo para os treinar. Estes jovens não passaram por uma disciplina forte, que é a disciplina militar. ”
“…Muitos deles nunca viveram nas cidades, são jovens do campo. E, de repente, depois do treino, são colocados a trabalhar na cidade. É por isso que alguns são atropelados em Maputo, porque ficam a olhar, no meio da rua, admirados, para os altos prédios da cidade, que nunca tinham visto! E são polícias de trânsito! ”
A solução
“Para o nosso polícia, o estudo, a educação, a aprendizagem, devem ser permanentes. Ele deve aprender constantemente a evolução da ciência da Polícia, de todo o Mundo. O polícia deve preocupar “se em conhecer as leis para as fazer respeitar, conhecer a Constituição para a saber defender. Ele deve respeitar o sofrimento dos outros. Deve saber representar a autoridade, representar o vosso poder, o poder popular, este poder do nosso povo do Rovuma ao Maputo, que muito lutou para o conquistar. ”
“Os elementos que vão para a Polícia devem ser bem seleccionados, devem revelar boas qualidades, devem ser inteligentes e bem constituídos fisicamente. Devem ter, pelo menos, 1,75 metro de altura, para representarem com evidência a autoridade. Imaginem: se o polícia tem só 1 metro e meio, como vai pedir a documentação a um cidadão com 1 metro e oitenta de altura?”
“Antes de se ser polícia ou agente de segurança, deve-se ir à tropa, revelar qualidades de inteligência, de sensibilidade. Deve revelar-se um estudioso da psicologia, da sociologia, das reacções das pessoas.”
“Em toda a parte do mundo, um polícia é aquele que fez primeiro o serviço militar obrigatório e depois é seleccionado lá para poder ingressar na Polícia. Não se sai da palhota directamente para a Policia! ”
Depois de ouvir/ler estas palavras a impressão de que Samora Machel esteve a dirigir as celebrações dos 49 anos da polícia na passada sexta-feira, 17 de Maio de 2024.
O termo "same same but different" é frequentemente utilizado de uma forma anedótica ou lúdica na compra de bens na Ásia, especialmente nos mercados informais ou paralelos, onde uma variedade de itens são diferentes, mas têm subtis similaridades. Essa frase adiciona charme e humor à experiência de compra, reconhecendo as semelhanças enquanto enfatiza a singularidade de cada item vendido. No nosso contexto, à medida que iniciamos uma nova jornada com os novos candidatos, destacando entusiasticamente seus estilos diferentes e comparando-os ao incumbente, as esperanças da nossa nação se renovam no candidato que vencer as eleições.
Esse ciclo político assemelha-se ao conceito de ouroboros (serpente que come a sua própria cauda num círculo que representa um retorno ou a evolução) ilustra o complexo jogo entre mudança e continuidade em transições políticas. Ele reconhece a natureza transformadora das mudanças de liderança enquanto considera aspectos duradouros da governação que transcendem líderes individuais ou administrações. O símbolo convida à reflexão sobre a natureza cíclica da política e a busca perpétua por renovação e evolução dentro do cenário político.
No entanto, no nosso actual cenário político, o status quo existente e a estrutura de governação de concentração de poder nas mãos de poucos indivíduos, cria uma situação onde as eleições resultam num vencedor que leva tudo, como amplamente reconhecido. Isso leva-nos a indagar se estamos diante de um novo amanhecer ou a testemunhar mais uma vez variações que nos sãos familiares. Até que ponto um indivíduo pode mudar um sistema? Devemos navegar por essa complexidade com clareza ou desconstruir estas questões.
Este período de grande descontentamento é sentido em diversos sectores da nossa nação, desde trabalhadores civis (médicos, enfermeiros, polícias, professores, militares, etc.) até juízes e desempregados. Existe um sentimento de desespero e urgência no ar, como se a paciência estivesse prestes a atingir o limite. Será que teremos o mesmo de sempre na nova governação, daí o "same, same" no título deste artigo, ou pode uma mudança radical ocorrer simplesmente mudando a liderança principal enquanto continuamos com todos os outros elementos?
Se o partido político actualmente no poder permanecer, deve reflectir, e já vai atrasado dez a quinze anos, sobre a sustentabilidade de um resultado em que o vencedor leva tudo. Perder o poder pode levar à transferência de todas as cartas para a oposição. Que garantias o partido terá contra injustiças cometidas contra eles no meio de um ressentimento de anos que vem fervilhando com o sabor de uma revolta popular? E principalmente porque a forma de estar, os standards, já estão estabelecidos.
No meu texto de 2016 "O Plano B" indago, caso a oposição chegue ao poder, se serão os polícias corruptos que continuaram a proteger, o judiciário comprometido que mudou de lealdade, ou a constituição que é emendada a cada ciclo? Como se garante uma transição pacífica nos correntes termos? O partido no poder deve criar condições para estar também na oposição de forma confortável. De modo a não criar dificuldades que possam um dia se virar contra ele. Para que a lei seja a sua protecção e a protecção de todos.
É também premente abordar as questões que estão no cerne do descontentamento social em diversos sectores da sociedade que sinalizam uma necessidade urgente de mudanças significativas. Talvez o principal dilema seja o próprio partido que ninguém sabe se é peixe ou carne e que parece não ir para além de uma agenda que garanta resultados eleitorais. Aquilo que muita gente já coloca como falência ideológica do partido. Num mundo em que os países e os partidos estão cada vez mais nacionalistas, e pro-dependência interna. Nós estamos cada fez mais dependentes de fora e menos nacionalistas. É difícil identificar, a essência do pensamento político do dia. Igualmente, devido a esse vácuo e para quem está de fora, parece que o partido tem cada fez menos aliados ideológicos nem mesmo os que representavam um casamento entre ideologia e história.
Neste aspeto, até a Renamo tem o seu campo político mais nítido ao identificar-se como um partido de centro-direita e assim expande as suas amizades. O novo fenômeno que se sente por fora são as crescentes alianças de indivíduos com outros indivíduos/estados/partidos em vez de se desenvolver esses laços como organização. Talvez seja porque nem os outros partidos estrangeiros estão a reconhecer a abordagem ideológica do partido no poder.
A nossa democracia se resume apenas ao período eleitoral, seguido por uma continuação da anormal normalidade caracterizada por mecanismos insuficientes para responsabilizar os líderes, levando à corrupção, abuso do poder e desrespeito à lei. De que forma o parlamento exerce o seu papel fiscalizador e de defesa dos interesses do povo, quando a disciplina partidária é a componente fundamental da governação?
As pessoas podem tolerar tendências autoritárias se as questões essenciais forem resolvidas (por exemplo, na China), considerando a estabilidade e uma refeição na mesa como o preço para ceder liberdades. No entanto, o problema fundamental que enfrentamos é que temos menos liberdade e com ganhos econômicos marginais. O Estado não cumpre com o seu contrato social, criando assim pontos de pressão e de descontentamento. Existe toda uma geração que de forma crescente se vem posicionando em lugares chaves que não são tolerantes com o "same same." Assim, é essencial aprender com as últimas eleições autárquicas e as posições dos juízes, dos funcionários públicos que já não têm o mesmo nível de compromisso do pós-independência, indicando uma mudança colossal nas expectativas.
Os desafios e oportunidades de nosso tempo são indiscutivelmente distintos, mas ressoam com aspirações e ansiedades humanas antigas, pontuadas por necessidades urgentes. Por outro lado, parece haver um novo sonho entre os jovens qualificados, que não mais aspiram a um futuro no país, mas buscam aliviar sua situação mudando-se para outros horizontes.
Quem quer que vença terá de reconstruir o sentimento patriótico e um ponto de partida seria iniciar um processo de mudança efectiva do sistema. Eventualmente as pessoas, os membros se ajustarão.
Minha esperança é que se estabeleça um mandato para reconstruir a confiança, abordar questões estruturais e atender às necessidades essenciais da nossa sociedade. Tirar ilações que orientem o caminho a seguir, enfatizando a responsabilidade, responsividade e um compromisso genuíno com o bem-estar de todos os cidadãos.
Seja para quem for a mensagem, a expressão não ficou bem a uma figura que, mesmo antes de ascender ao palanque do poder, já está a ser aplaudida como se o facho da vitória estivesse garantido nas suas mãos. A explosão antecipada de garrafas de champanhe em todos os lugares, não será propriamente pela certeza de que o comboio terá um bom maquinista, mas se calhar Daniel Chapo inspira sem que se saiba exactamente porquê. Talvez seja uma intuição da parte daqueles que já o ovacionam estrondosamente de pé na arena da esperança.
Eu já o tinha dito, mas não me importo de repetir para lembrar ao próprio e aos demais: nutro uma grande simpatia pelo “El Chapo”, mas fiquei com medo da sua expressão ao se dirigir publicamente numa conferência de imprensa após o encontro que teve com as confissões religiosas, às quais foi agradecer pelas orações que fizeram em seu apoio. O candidato da Frelimo disse assim, a um determinado ponto da sua intervenção: nas próximas eleições teremos uma vitória “trombosante”, um termo, segundo ele, novo.
Ora! Chapo não precisa recorrer a esse tipo de palavras para dizer que estou aqui, é como se estivesse a afirmar que os seus adversários não são nada, são desprezíveis. Parece-me um posicionamento retrógrado, e ele mesmo, o Daniel Chapo, já tinha usado, quando concorria às últimas eleições provinciais onde foi proclamado vencedor, a palavra “qualquerzante”, mas os seus camaradas já diziam isso, em coro: “vamos ter uma vitória qualquerzante”, como se os moçambicanos que lutam pelo poder noutros partidos fossem pessoas quaisquer, não!
Este homem de quem se espera um novo amanhecer, deve perceber que está numa importante corrida de estafetas, ele é o último dos quatro e não está na Assembleia da República onde a verborreia impera. Quer dizer, se os outros companheiros de equipa claudicaram durante a prova, então a responsabilidade de vencer está nas suas mãos (se for eleito presidente), mas é necessário que trate os seus adversários políticos com dignidade, sem os “qualquerzar” ou “trombosar”, sobretudo num contexto em que há muitas feridas por sarar, também dentro do seu próprio partido. Para quê andarmos a nos pisar uns aos outros com palavras jocosas!
É isso, meu caro Chapo, você é um homem elegido, então não se “qualquerize” com termos primitivos, não trabalhe com a meta de “trombosar” seja quem for, antes pelo contrário, a sua luta será de um acendedor de luzes para todos os moçambicanos, como Moisés que, das masmorras de Faraó, libertou os filhos de Israel.
“Como em outros poetas, também em mim, anuí:
não há a probabilidade de me render”
Heliodoro Baptista (“Nos Joelhos do Silêncio”)
Como epígrafe de um dos seus poemas mais incisivos e emblemáticos – “As outras mãos” –, Heliodoro Baptista citou o romancista uruguaio Juan Carlos Onetti que diz, em “O Estaleiro”: “É estranho que aqui ninguém soubesse de nada”. Com isso, o poeta denunciava a complacência que houve durante muitos anos em relação a práticas repressivas e de silenciamento do regime sobre vozes discordantes ou desalinhadas. Ele, que foi preso, que esteve cinco anos sem emprego, afastado do jornalismo, proscrito da pátria literária, sem ver a sua obra publicada, ostracizado, tendo a solidariedade de poucos, sofrera, no opróbrio daqueles anos, o anátema do isolamento. Jornalista, cedo vira, nos novos governantes, atitudes que criticava nos seus artigos. Era contra a arrogância, a prepotência ou o culto da personalidade.
Poeta erudito, ostensivamente sarcástico, por vezes, elíptico outras, seria, no entanto, cristalino em “As outras mãos”: “As mãos do poder, meu amor, / são mãos humanas. // Fulminantes, ásperas, leves, / gordas, acesas, molhadas de chuva / são sempre humanas”. Pagará um preço elevadíssimo pela sua ousadia, pela sua dissensão. “Por Cima de Toda a Folha” (1987) iria resgatá-lo, de algum modo, do isolamento, da proscrição, da exclusão ou do insulamento. O livro estava dividido em duas partes. Uma, a primeira, com poemas escritos entre 1970 e 1974, a segunda, com textos redigidos entre 1975 e 1984. Pertenciam ao primeiro caderno, poemas como “A Aldeia” sobre o massacre de Wiriamu: “Vede / a amabilidade das manhãs / exprimindo-se tão bem / sobre o espaço das bombas”, ou “Alegoria”, outra denúncia intrépida do genocídio colonial: “Em Inhaminga, meu amor / estão as armas apontadas para o céu / mas só há pássaros”. Há, subsumida, uma cortante ironia. O segundo caderno tinha versos crípticos, mas de clara denúncia dos despropósitos do regime e das suas redundâncias: “Os deuses e os mitos seduzem-nos / até ao horror encarado de frente / mas somente representam no espaço / o imponderável de todas as coisas”.
Heliodoro Baptista, num tom acerado, impugnava os “obnóxios”: “A memória deve viver destes ímpetos / para produzir, contraponto oscilante, / a esplêndida leveza da nuvem, / do ser-se comunicativo / antes de termos sido persistentes, / nos confrontos; / improváveis como queríamos, / ilógicos sobretudo frente ao sussurro / das balalaicas obnóxias”. Tinha, à conta disso, o pecúlio da prisão e do desemprego. A divergência custara-lhe o isolamento e a penitenciária. Foi um dos primeiros intelectuais a exprimir o desencanto com os tempos novos e a experimentar a dureza da represália. Era um sacrílego para os prosélitos de serviço. No poema “Cela em êxtase”, na sua primeira prisão, de 1977, sem culpa formada, escreve: “Não devemos ter medo nem da pobreza; jamais / da prisão e do exílio”. Como poeta, vivia ainda “no tempo dos gritos”, como assinalara, numa das epígrafes do livro, ao citar Elias Canetti, autor de “Auto-de-Fé”, nascido na Bulgária e Prémio Nobel. Também aludia a José Craveirinha, seu amigo, quando, num outro contexto, mas em circunstâncias similares, denunciava: “os nervos novamente adequados a tudo / os amigos minuciosamente bem escolhidos. / As conversas prudentemente sussurradas. / Uma necessidade imperceptível a desconfiança”.
Não obstante, Heliodoro Baptista era um poeta do amor. Aliás, dedicava o seu livro aos filhos (Pablo e Guy) e “ao amor e ao meu país”. Ele amava intransigentemente este país e foi dos seus melhores poetas. Viveu, no entanto, toda a vida, acossado. Primeiro pelos esbirros do regime, depois perseguido pelos seus fantasmas. Aliás, ele escrevia para se conciliar com os seus fantasmas. Foi acutilante, acerbo, assertivo. Foi digno da sua condição e da sua profissão iniciada em 1971 no vetusto “Notícias da Beira” onde se estreara literariamente na página “Jovem” anos antes. José Craveirinha, Eugénio Lisboa, Sebastião Alba, Eduardo Pitta, Jorge Viegas eram alguns dos nomes que colaboravam na secção literária. Nascera em Quelimane, mas seria a Beira a sua pátria e o seu exílio. Vivia entre livros e era um grande leitor. Um autodidacta. Um melómano. Tinha paixão pelo cinema. Era culto, ecléctico, erudito. O que significa, por outras palavras: avançado, civilizado, ilustrado.
Quando o conheci, em 1987 saíra dessa espessa neblina que o ocultava e omitia. Voltara ao jornalismo e preparava-se para publicar o seu livro de estreia. Aquando da edição da série Autores Moçambicanos pelo INLD o seu original fora postergado, censurado e proscrito. Mesmo José Craveirinha, herói da Pátria, teve os seus tempos aziagos. A sua dimensão e importância e o facto de ter a amizade de Samora Machel devem ter dissuadido os prosélitos. Mas há poetas que amargaram a reeducação. Heliodoro conheceu os “Zambezes de solidão” e soube que “nunca um balázio em cheio / deu tanta alegria / aos profissionais do tédio / e aos acrobatas da intriga.”
No poema “Niassa – 1978”, do seu último livro, “Nos Joelhos do Silêncio” (2005) é lacerante: “Dizem que os campos se enchem de homens e mulheres. / Um a um, à noite, na areia de águas doces, os espíritos / enxotam leões reduzidos a cães sem dono. Lá, a lua em cimitarra. / Acordo na noite. A ave sagrada canta as leis do céu, / nos ensurdece, / estala na noite: provavelmente, começaram os fuzilamentos”. Isto é terrível, ao mesmo tempo belo. Isto é de um grande poeta. Belo e cortante.
Heliodoro Baptista era um poeta da linhagem dos que se revêem numa poesia como forma de conhecimento, numa poesia ecléctica. Releva daí o facto de a discussão que se despoletou sobre a questão da intertextualidade, naqueles anos, não lhe ser de todo alheia. A poesia dialoga com a melhor poesia e com os poetas que ele reputava. Contemporâneo de Jorge Viegas, Sebastião Alba ou Leite de Vasconcelos, leitor e amigo de José Craveirinha, admirador de Rui Nogar – “Mas não te iludas, irmão do Zé e do Nogar, / com a sintaxe dos novos oráculos” -, cultor da poesia de Herberto Helder , que terá uma importância capital na sua vida e no seu destino poético. Leitor de Fernando Pessoa ou Eugénio de Andrade, entre os portugueses, de João Cabral Melo Neto ou Carlos Drummond de Andrade, para citar os brasileiros, ou do Pablo Neruda. Era um leitor obstinado. “Somos indissociáveis / nos clássicos antípodas / da nossa ortodoxia / de amarmos Craveirinha e Kalungano / (com a mesma independência?) / que alguns nos lêem / no sentido figurado / seguindo à risca cada metáfora”. Sarcástico, altivo, soberbo. Ou hiperbólico e, ao mesmo tempo, provocador. Sempre provocador.
A sua vasta erudição compreendia um conhecimento amplo da ficção e do romance. Leu os clássicos, era admirador dos latino-americanos, dos americanos, dos europeus ou asiáticos. Citava deste Hemingway a García Márquez, de Mishima a Onetti, de Carlos de Oliveira a Jorge Amado. Foi um prosador exímio, um contista exemplar. Nos anos 70 emparceirou com Carneiro Gonçalves na experimentação de um dos universos mais inexplorados da nossa ficção – as lendas que ambos magnificamente verteram para o jornal “Notícias da Beira”. Uma dessas raras peças (“Chicaláua Milele”), de Heliodoro Baptista, publicada originalmente a 15 de Agosto de 1971, está coligida na antologia de contos “As Mãos dos Pretos”.
Era uma biblioteca viva e vívida. Incutia esse gosto e essa obstinação aos poetas mais novos. Julius Kazembe, que ele acoutou, muito jovem, foi um deles. Os filhos menores, Pablo e Guy, recitavam, quando os conheci, o poema 20 dos “Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada” do Neruda. Não era despiciendo, aliás, o nome Pablo, a quem ele dedicou um belo poema “Variações Onomásticas”: “E tu, meu filho, / que carregas esse nome diabólico/ por que dizes já com 2 anos/ a mim de cenho mortuário/ que assim, assim mesmo, / «estás farto desta merda»?”
O poema “Paisagem com poeta em segundo plano” começa e termina com dois versos de Herberto, o seu poeta electivo: “Tantos nomes que não há / para dizer o silêncio.” Creio mesmo que Herberto foi o arquétipo do poeta que ele pretendeu ser. Herberto Hélder: “Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar.” (“Poemacto”). Em “A Colher na Boca”, Helder tinha aquele belíssimo poema “O Amor em Visita” que dizia: “Dai-me uma jovem mulher, com a sua harpa de sombra / e seu arbusto de sangue. Com ela / encantarei a noite.” Era desta poesia que Heliodoro vivia, rodeado dos seus fantasmas, lendo, na Beira, este imensíssimo poeta. “Em cada mulher existe uma morte silenciosa” – escreve Herberto Helder. O amor e a morte seriam, de certo modo, os sintagmas da poesia de Heliodoro Baptista.
Homem de palavras, cultivava-as com a perícia de relojoeiro suíço. Os seus poemas, para além de terem soberbas metáforas e imagens poderosas ou até mesmo pavorosas, eram feitos de palavras e de um ofício que lembra a “Ars Poetica” do Rui Knopfli, outro poeta cujo amor e devoção nos aproximava. Num poema de “A Filha de Thandi” (1991), intitulado “À volta das origens”, dedicado a Rui Knopfli e a Eugénio Lisboa, o diálogo intertextual é explicito com um texto do Knopfli: “Sim, de facto, ‘uma só e várias línguas / eram faladas e a isso / por estranho que pareça, também chamávamos pátria’.”
Heliodoro Baptista: “As palavras amadurecem, transcendem-nos. / Como os dias. Este trajecto imemorial.” – isto no seu potente “Poema à Filha de Thandi”, que assim termina: “Mas o poeta tem boca: / As metáforas são o seu próprio ardil / para que outros leiam / o que ele nunca disse.” “As Palavras Amadurecem” seria o título de uma antologia publicada, em 1988, na Beira, pelos dez anos da página “Diálogo”, do “Diário de Moçambique”.
Há imensos poemas do Heliodoro Baptista de que gosto muito. Poemas que nos desassossegam. Poemas subversivos. Aliás, Jorge Viegas, com quem inicia, em Quelimane, um convívio literário (à volta da “Voz da Zambézia”), escreverá no belíssimo poema “Subversão”: “À subversão devemos/ A estatura do que somos.” Heliodoro Baptista, um poeta subversivo, no poema “De nós e dos outros”, que tem uma epígrafe do japonês Yukio Mishima (“A verdadeira pureza é sujarmo-nos e, no entanto, não nos sujarmos realmente”), escreverá: “Querem-nos, a alguns, bem sentados/ na fofa realidade escamoteada / a uma outra realidade desavinda / onde crescem agudas, ásperas vozes.”
“Ouso falar extremamente de mim mesmo”, escreve Heliodoro Baptista em “A Filha de Thandi”. E afirma adiante: “da imobilidade do poema/ explodirá o mais prodigioso grito de amor”. Aqui está a chave da sua poesia. “Falo-vos destas vozes mansas, chamando-nos docemente, / deste país em agonia mas vivo, / com seus luxos, grutas, segredos, xistos, volição, / onde, de resto, se confundem / estas recém-nascidas palavras, / adventícias, nunca. Consumadas, talvez.”
Heliodoro Baptista: “O pecúlio são os filhos, / o horizonte raso dos versos, / a doçura oriental dos teus olhos / e o castanho desenvolto / do teu corpo inextinguível / onde, às vezes surpreso, / restauro comovidamente / o deus que em menino/ quis ser.” Belo poema dedicado à musa soberana Celeste. No livro de estreia, dedicara à Celeste um outro belíssimo poema: “Gravidez”: “Traço a traço / desvendo-lhe as feições / por onde a vida rufla / as grandes asas.” Este livro – “A Filha de Thandi” – está cheio de belas metáforas. Num poema, “Prova dos Nove”: “Assim crescem as arestas da angústia, / as mesas estão cada vez mais vazias.” Isto é extraordinário. Num outro, “Preço dos sonhos”: “É de vidas que se fala aqui / e, sobretudo, de destroços humanos, / do que restou de todos nós.”
O poema “A Uma Ingénua Nórdica” é dos que mais gosto. Queria citá-lo na íntegra mas aqui não caberia. Também gosto do pungente “Ao Futuro”, dedicado ao filho Guy: “Saberás um dia que o amor nunca / nasce, nunca deve. O amor é, / sempre foi, sempre esteve”, começa assim o texto que fecha o livro. Tem versos seminais: “Rigorosamente contemporâneo / da explosão cósmica / que, contam, declinou ao princípio/ do escuro e da luz.” Termina com a seguinte estrofe: “Nunca aceites ser mártir. / Ama o teu presente e o futuro / e, por certas tardes de sábado, / de olhos porventura humedecidos, / limpa docemente a minha tumba.”
Haveria muitos outros exemplos para citar. Quero, no entanto, terminar com o poema “Hablando, com amor, em setembro”, que ele dedicou a Ungulani Ba Ka Khosa, ao Eduardo White e a mim próprio. No meu livro, “A Pátria Dividida”, de 1993, tenho um poema dedicado ao Heliodoro. Em “A Filha de Thandi”, ele dedica-me o poema “O Amor em movimento”. O Heliodoro foi dos poetas mais generosos no afecto, e isso vê-se no modo como proliferam dedicatórias em seus livros. Este poema invoca Pablo Neruda no diálogo que ele estabelece connosco. “Nosotros, irmão Pablo, / também fazemos milagres a sorrir”, di-lo. Ou: “a realidade aqui é um repto / um grito vocabular.”
Releio este belo poema, e tocam-me estes versos fulminantes. Heliodoro era um poeta inspiradíssimo. Apetece-me citá-lo todo, mas falta espaço para o fazer. Leio: “Nosotros, irmão Pablo, / nós também somos os mesmos:/ com astúcias, tumultos, originalidade, / na dor exaltante desta transparência carnal / se sermos coisas, aromas, corações atónitos (ou atómicos) / abraços penitenciários, suicídios de luz.”
Ou por outra: “Os jardins ainda não são jardins, / a fome es muy fuerte e alguns dias, seus poentes, / dão-nos a gramática incontrolável desta candonga / da desordem programada, o rigor selectivo desse negócio / que é a desolação animada pelos anunciados humanismos, / das imperiais conveniências do dólar.” Este poema é lindíssimo: “Entretanto, aqui estamos,/ numa casa, em Setembro,/ com nossas praças, hablando em Setembro, / nesta cidade índica e austral, esculpindo / contigo em Setembro de todos nós, / que produziu depois esta fúria de amarmos a liberdade / e esta coragem, sem exibições de nunca temer o látego, / o banco do tribunal, as armas, / quando nos localizam e apontam a subversão / de amar o valor erótico, beijar o sexo como a uma hóstia, / a ajoelhar defronte do altar de uns seios, sem ocultações, / puros, feridos pela paixão de se ser homem, entidade,/ motor próprio, paisagem sempre nascida em cada cópula, / porque o amor é tudo, sempre será tudo e todos, / belo, paranóico, avassalador, canibal, suspeito,/ veneno, vitamina, lâmina de punhal que dá vida, soro vital.”
Não haveria melhor de definição para a sua poesia, nem haveria melhor inscrição no horizonte intemporal desta escrita na qual se inscreve (passe a redundância) a sua memória e a sua biografia a como, por exemplo, nos belos e doloridos versos, que citei acima. A sua experiência está neles sublimada: “Por que não experimentam prender as estrelas?” – indaga-nos. Querem melhor metáfora? Este pungente texto, como tantos outros que Heliodoro produziu, na sua tumultuosa vida, são a lídima expressão de uma voz singularíssima da nossa lírica, de um poeta que nunca abdicou do amor e da liberdade, de um poeta quizilento, se quisermos, mas que tudo o que escreveu, como queria Rui Knopfli, foram poemas de amor, aliás, apanágio de grandes poetas. Termina assim aquele poema que ele nos dedicou: “Não poder viver senão uma vida/ é como não viver.”
Poeta inconformado, está na primeira linha da lírica moçambicana. Sofreu, por muitos anos, o opróbrio da marginalização. Foi jornalista e contista. Para além dos títulos acima referidos, publicou, em 2005, “Nos Joelhos do Silêncio”, no qual retoma alguns dos seus temas electivos, entre eles a mitologia de Thandi. Ele sempre recusou o silêncio. Mesmo quando precavia os filhos: “Pode ser que tenha de regressar/ aos dias das mil ciladas. //Como a outros, na exactidão deste tempo, / nada é imune.”
A Beira deve-lhe o magistério poético. Quando recentemente foi criado um importante prémio literário na cidade indaguei-me se a ele não caberia tal homenagem. Grande parte da mítica da Beira passa por ele e pelos poetas que ele promoveu ou amparou, como Julius Kazembe (um dos melhores poetas da sua geração que permanece inédito em livro por abulia própria e nossa), ou Júlio Bicá, Bahassan Adamodjy e Simeão Cachamba (todos perecidos), ou ainda Filimone Meigos e Adelino Timóteo. É preciso desfazer essa omissão. É urgente tirá-lo do esquecimento e do ostracismo. Da marginalidade. Sobretudo combater a ideia de que ele teve culpa do destino que teve. Isso é transformar uma vítima em culpado. É injustiçá-lo ainda mais. Condená-lo duplamente. É urgente fazer a reparação que se impõe. O acosso permanece com este nosso oblívio, com esta preterição, com esta negligência. Heliodoro Baptista cumpriu a sua incumbência e não quis apenas ser complacente com injustiças, arbitrariedades, iniquidades: “Falo desta raça de homens cabisbaixos, / impotentes ante esta circunvalada forma / de estar, assistir, ocultar, permitir, / ser-se cúmplice de mortes sem perdão.” Isto é sedição? Isto é insurreição? Isto é rebelião?
Heliodoro foi sempre poeta do amor: “Dizem: tudo pode ser encontrado e redivivo / por dentro do amor”. O seu “grito vocabular”, mais do que um repto, é uma realidade. Amou a intrepidamente liberdade: “a fúria de amarmos a liberdade”. Foi sempre poeta do futuro: “Saberás um dia que o amor nunca / nasce, nunca deve. O amor é, / sempre foi, sempre será”. Poeta irremediavelmente ecuménico: “Os continentes são da mesma raça. / Os homens do mesmo barro”.
Heliodoro Baptista, que morreu a 1 de Maio de 2009, à beira dos 65 anos, nascera a 19 de Maio de 1944, em Gonhane, Quelimane, passam hoje 80 anos. “Venho nu, o coração asceta, vago o rosto”, escrevera ele no poema belo “Cabeça-do-Velho”. A sua vida foi um constante desassossego. Sempre incompreendido. O seu desencanto perdurou até à morte. Não me lembro, no entanto, de o ver com acrimónia. Acreditava na condição humana. Aliás, a sua escrita e a sua obra divisam a condição humana. Era um amigo verdadeiro. A prisão, o isolamento e o acosso de sempre arruinaram o homem, mas nunca destruíram o poeta. Um grande poeta moçambicano. Um grande poeta africano. Um grande poeta da língua portuguesa. A sua poesia foi e é o que quis o poeta espanhol Gabriel Celaya, que ele apostrofa no seu último livro: uma arma carregada de futuro. Solitário, mas sempre solidário. Apátrida na sua própria pátria. Amou intransigentemente este país. O seu país. O nosso país. Como amou a sua musa Celeste e a sua prole. Como amou a liberdade. A liberdade livre. A liberdade de ser poeta e de ser cidadão. A liberdade de ser moçambicano. Até ao fim.
KaMpfumo, 19 de Maio de 2024