Director: Marcelo Mosse

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É criminoso o uso de linguagem ofensiva em público. Sim, em público, porque as redes sociais como o Facebook atingem um público vasto. E as mensagens nelas publicadas são copiadas e enviadas para milhares de pessoas.

 

Não conheço a Srª Alice Tembe. E não tenho a certeza de que o comentário tenha sido feito por ela. Mas como eleitor e cidadão, não gostaria de ser representado por alguém que se comporte desta maneira. 

 

Então, espero que a AR não fique indiferente e faca imediatamente o seguinte:

 

1. Averiguar, ouvindo a Deputada e apurar informaticamente de onde foi emitido o comentário publicado no mural de Yola Bernardo.

 

2. Confirmada a autoria, instaurar processo disciplinar para julgamento, por violação de deveres estatutários.

 

 3. Aplicação da competente sanção (eventualmente a perda do mandato).

 

Simples e eficaz quanto isto.

 

A bancada da Frelimo devia tomar a iniciativa, distanciando-se do ignóbil comentário e pedindo até desculpas à jornalista Fátima Mimbiri. Para mostrar um cometimento com a decência, a Frelimo não precisa de fazer muito contorcionismo. Pode marcar pontos com gestos simples que remetem para o civismo e para o respeito do ponto de vista contrário. A sociedade apreciaria!

quarta-feira, 08 maio 2019 06:23

Os verdadeiros heróis não precisam de criptas

Em relação ao velho e sempre pertinente debate sobre o reconhecimento da heroicidade de Afonso Dhlakama pelo Estado moçambicano, eu tenho a dizer o seguinte:

 

O que Dhlakama precisa não é ser herói nem estar na cripta. O que Dhlakama precisa não é ter nome numa avenida ou numa praça. O que Dhlakama precisa não é ser aclamado na Assembleia da República, a mesma assembleia que aclamou as dívidas escondidas - coisa que ele odiou até a sua morte. 

 

O que Dhlakama precisa é de ser seguido por aqueles que o admiram e admiram a sua obra. O que Dhlakama precisa é que a sua obra seja valorizada, reconhecida, difundida e imortalizada por aqueles que o consideram herói. 

 

A heroicidade genuína não depende de consagrações públicas nem de medalhas. A heroicidade genuína não depende de aclamações nem de lápides na cripta. A heroicidade genuína não depende de reconhecimentos do papel.

 

Quem, de facto, acredita (no seu íntimo) que Afonso Dhlakama é seu herói, então que siga os seus ideais. Que valorize e imortalize a sua obra. Que ressuscite o Dhlakama que mora dentro de si e seja ele o próprio Dhlakama. Dhlakama não é herói de todos. Aliás, não existem heróis de todos. Dhlakama é herói de quem o admira. Heroicidade não se força... não é necessário. 

 

Os verdadeiros heróis não precisam nem de criptas, nem de continências, nem de hinos, nem de passos de camaleão, nem de trombetas, nem de mensagens, nem de hossanas. Os verdadeiros heróis precisam - isso sim - de se alojarem no peito dos seus discípulos para viverem eternamente. 

 

- Co'licença!

quarta-feira, 08 maio 2019 05:55

Atravessando a baía com uma mulher maconde

À memória de Faustino Vanomba e Kibiriti Diwane, tombados para sempre na minha cidade

 

À  Biti Akuvava, minha amiga em Mueda

 

Sentou-se levemente no mesmo banco de madeira partilhado por seis pessoas em que uma delas sou eu. Estamos embutidos numa barcaça precária que daqui a pouco vai deixar a cidade da Maxixe, lugar que à noite, visto da outra margem, parece Las Vegas. Está cheio de luzes por todo o lado. Brilha na ilusão de óptica para recompensar a realidade materializada pela vertigem. Maxixe é também pousada do diabo, onde ele se instala amiúde para contar as notas de impulsão sob a guarnição dos punhais  que reverberam por sobre a mesa.

 

É maré vaza, e os bancos de areia ressurgem, entretanto sem a beleza dos tempos, para acolher a sobra dos flamingos  e das gaivotas dizimados pela ignorância e pela fome e pela ganância também. Tudo aquilo é sombrio. Parece uma mulher sáfara. Ou várias mulheres estéris estendidas numa paisagem criada para arrebatar. Não está lá ninguém para a apanha do carangueijo e da ameijoa, varridos pelas mãos e pelos ventos. Aliás em mamas sem leite as crianças não choram. Sabem que não haverá mamada.

 

No interior da embarcação que leva perto de setenta pessoas o silêncio é uma canção que só se ouve por dentro do coração. É um bálsamo leve. Cada um escuta a sua música na escala diatónica insondável. Alguns ouvem as melodias com os olhos fechados, outros dão vazão à vista e absorvem todo aquele espectáculo único dos coqueiros que se erguem na terra, fazendo-me lembrar a fase inicial do filme de Francis Coppola, Apocalipse now. Outros ainda, para a queima do tempo, vão navegando pelo mundo servindo-se  da internet instalada nos seus celulares.

 

Não há golfinhos para nos escoltar como havia antigamente nos tempos da juventude do Mangoba, nem os barcos à vela que passeavam em eternas regatas levando vidas e destinos de um lado para o outro. Esses elementos vitais do paraíso diluíram-se. Os homens já não se encavalitam em ombros cansados de humilhação. Há um êxodo da alma. Faltam os olhares profundos e cansados dos marinheiros que gritavam, em apelo aos passageiros,  Maxixêêêêê! Do outro lado também, as vozes esvairam-se no tempo. Já não ouvimos aquele cantante sewiiiiiiiiiii! Quer dizer, como dizia o poeta, “para cá da porta, nada! Para lá da porta, também nada”!

 

Não há dúvida de que tudo isto é uma metáfora. Parecemos baratas assustadas depois do transbordo, aqui por sobre a plataforma da ponte-cais de Inhambane onde acabamos de ser cuspidos. Somos um cacho que vai-se desfazendo, cada um para o seu ramo onde vai repousar e preparar novo voo. Ninguém sabe o que vai acontecer amanhã. Não há certeza de nada, mesmo com todas as armas que levamos no regaço. Tudo à nossa volta é uma incógnita, como esta mulher que agora comunica ao telefone em liberdade.

 

Ela fala com sotaque de ximaconde. Assusto-me por dentro ao ouvi-la na voz de tenor. Olho para ela, e no lugar das tatuagens que eu podia esperar, sobresaem lindas  sardas cobrindo um rosto jovial. Está no auge da vida. Parece uma gazela longe dos felinos festejando o raiar do sol nas savanas. Faz-me lembrar a Biti Akuvava, antiga bailarina de mapiko agora rendida ao flagelo da idade.

 

A melodia da língua ximaconde embevece. Um maconde falando português, empresta à língua de Camões, também nosso troféu de guerra, uma áurea particular. Parece o próprio mapico a ser dançado por sobre a ponte que une as margens do Rio Tejo. E eu estou aqui, escutando discretamente esta mulher com lindas sardas no rosto. Na cidade de Inhambane. Minha musa.

terça-feira, 07 maio 2019 07:58

Sobre Direitos, Liberdades e Obrigações...

O bom senso é um "elemento central da conduta ética, uma capacidade virtuosa de achar o meio-termo e distinguir a acção" – Aristóteles

 

Noutra definição, diria que “bom senso” é "uma qualidade que reúne as noções da razão e da sabedoria, caracterizando as acções que tomamos de acordo com as regras e costumes adequados para determinado contexto”. Numa época em que muitos de nós descobrimos os nossos direitos, e entusiasticamente usámo-los como sempre com tendências de abusar até que algo drástico aconteça, e começamos a ser mais prudentes. Esquecemos, por exemplo, que todos os direitos têm limites e obrigações.

 

Os Direitos do Homem vêm plasmados nos Livros Sagrados, com maior detalhe no Quran. Contemporaneamente, os Franceses fizeram a primeira Declaração em 1789. Por outro lado, o poder é uma percepção que os outros têm de alguém, de um grupo, de uma classe profissional e ou de um país. A história diz que sempre que esse poder foi usado de forma abusiva, o mesmo lhe fora reduzido ou retirado.

 

Os regimes de África, em particular o de Moçambique, têm vindo a beneficiar-nos de novo de Liberdades e Direitos, que os nossos antepassados já tiveram e que o regime colonial lhes condicionou. Para muitos, em particular os mais novos, as nossas monarquias e outros poderes "tradicionais" eram também respeitadores de direitos e liberdades dos seus cidadãos, obviamente no referido contexto.

 

Enganam-se os que pensam que esse privilégio é uma originalidade do Ocidente. Pelo contrario, os ocidentais, de forma geral, foram os últimos a integrar no seu modelo político-social os Direitos e Liberdades. Porém podemos aprender com a cultura ocidental, por ser aquela que nos está mais disponível, que o ponto de equilíbrio entre Direitos e Obrigações é como o fiel da balança, sempre em movimento a procura do ponto justo. Sendo as sociedades dinâmicas, compreende-se que as mesmas estejam permanentemente em disputa. Convém recordar que os nossos direitos terminam onde começam os direitos de outros. 

 

Inspirou-me partilhar com o caro leitor esta reflexão, porque os nossos políticos e governantes, e de uma forma geral os servidores públicos, usam e abusam da confiança que lhes foi depositada, numa clara violação do contrato social, manifestando falta de qualidades e virtudes, e quando estas aparecem denota-se a ausência de Bom Senso. 

 

Na maioria dos partidos políticos, confissões religiosas (novas), autoridades policiais, magistrados, jornalista, ONGs, ordens profissionais, servidores públicos, associações económicas, entre muitas estas organizações têm um papel decisivo no desenvolvimento das sociedades e, pelo facto, têm um enquadramento legal, com Direitos e Obrigações pelos quais assinam contratos e muitos fazem Juramentos. O abuso dos Direitos e Liberdades fez e fará que os respectivos beneficiários sejam limitados, prejudicando a maioria da classe e a sociedade no geral.

 

Não devemos permitir que um colega de profissão se exceda no uso dessas liberdades sob risco de a maioria ser penalizada. Lembro-me recentemente da tinta que fez correr a condenação pública, através da imprensa irresponsável e sensacionalista, de gestores de uma instituição financeira, que viriam a ser despronunciados ou ilibados pela Justiça das referidas acusações.  Se a imprensa e a comunicação social no geral têm o direito e a liberdade de publicar, os visados têm direito ao seu bom nome e reputação. A forma irresponsável como alguns órgãos de comunicação social prestam um mau serviço de informação ao público, perante o silencio dos demais da classe, fará aquilo que já aconteceu noutros países: penalizar os fazedores da imprensa livre, de forma geral. Esta máxima aplica-se a todas as outras profissões e serviços públicos. Os que exercem o Poder devem utilizar argumentações e atitudes racionais, para poderem fazer julgamentos e escolhas assertivas, de acordo com os usos e costumes da nossa sociedade.

 

Trabalho, ética, conhecimentos e Bom Senso precisa-se...

Cerca de duzentos membros do Cê-Cê do maior partido da república do... do... do coiso... deixa pra lá, estiveram reunidos durante três dias, com o objectivo de discutir os tomates do puto Samito. Na verdade, os tomates do puto não estavam na agenda da reunião, mas acabaram tomando a maior parte dos discursos de abertura. Por serem maduros e grandes e por estarem no devido lugar, os tomates do Samito - que também é membro deste órgão do partido - têm sido alvo de muita conversa e crítica por parte de alguns membros. 

 

"Desde 1986 que não víamos tomates assim. É por isso que a maior parte de nós não sabe cozinhar com esse tipo de tomates. Esses tomates são muito bons para caril e salada, só que não estamos habituadas a usar. Já não há no mercado nacional. São raros esses tomates" - lê-se no discurso da ala feminina. 

 

Por sua vez, os combatentes atacaram o proprietário dos tomates. "É uma afronta um miúdo desses ter tomates assim. Até mesmo nós os mais velhos nunca tivemos tomates desse tipo. Esses tomates são muito perigosos. Durante a guerra de libertação eliminamos todos. Fazem parte das hortícolas reaccionárias. Não vamos tolerar" -  disseram. 

 

Os jovens do partido (os que legitimamente deviam produzir e promover tomates como os de Samito para o consumo interno, mas não o fazem) queixaram-se da falta de exemplos e incentivos dos mais velhos. Por não estarem acostumados a ver jovens como eles com bons tomates, acusaram o puto Samito de indisciplina. "Nenhum jovem deve ter tomates mais grandes, maduros e bem colocados do que os outros. A qualidade dos tomates deve ser igual" - frisaram acrescentado que era suposto que esses tomates estivessem guardados em Gôndola. 

 

Enquanto isso, o chefe-máximo fala de colisão, digo coesão. Segundo ele, os "tomaticultores" devem estar unidos para uma única causa: vencer a próxima safra agrícola. 

 

Analistas políticos entrevistados pela nossa reportagem suspeitam que Samito tenha herdado os tomates do pai. 

 

MM, nosso correspondente no terreno. 

 

- Co'licença!

segunda-feira, 06 maio 2019 06:56

Vendilhões da fé

A atender pelo testemunho de diferentes apóstolos, quando Jesus visitou o Templo de Jerusalém, cujo pátio estava repleto de comerciantes e cambistas que vendiam animais e cambiavam dinheiro romano por hebraico, num período em que a cidade estava repleta de peregrinos da páscoa, no único episódio considerado de uso de "força bruta" no evangelho de Cristo, Jesus teria usado de um chicote de cordas para expulsar “todos os que ali vendiam e compravam", derrubando as mesas dos cambistas e as cadeiras dos vendedores de pombas, teria dito: "Está escrito. A minha casa será chamada casa de oração; vós, porém, a fazeis covil de salteadores” (Mateus 21:12-13). A versão de João, 2:15-16 inclui o colocar em debandada ovelhas e bois que ali se comercializavam.

 

Os vendilhões do templo, em narrativas bíblicas, representam o desvirtuar de uma certa escolástica e linha evangelista. Assim como nos questionamos sobre o tipo de "cultura e personalidade" que poderia levar alguém a usar do avião de combate como última arma que inclui como detonador o sacrifício da própria vida, como faziam os Kamikazes japoneses (no contexto da segunda guerra mundial); que tipo de "convicção religiosa" recorre ao corpo e a vida para a “destruição dos infiéis”, como os "homens e mulheres bomba", no contexto das narrativas sobre a "radicalização" Islâmica; também podemos questionar-nos sobre milhares de homens e mulheres que alimentam programas de fé salvacionista por via de “exorcismos" para a “esbelteza”, para a "abundância de cheques”, para o alinhamento dos, digamos, "tomates", ou até para ensaios de ressurreição, acompanhados por farta e "condigna" refeição, para saciar a fome de um ex-morto. Ainda me questiono se o que quereria fazer após uma eventual ressurreição seria degustar dos meus sofridos cozinhados, ler os livros que não tive oportunidade, resolver o dilema entre "Txilar e 2M" ou, simplesmente, proceder ao ritual de reverência ao meu improvável ressuscitador.

 

Nos dias que correm, conscientes e ricos de direitos e deveres, o único chicote viável para os diferentes tipos de vendilhões nos múltiplos templos e mercados da vida talvez ainda sejam o voto (na política), a educação e as próprias tecnologias de informação e comunicação que, se por um lado nos imbecilizam com "fake-news", "faith" e "fake-faith, também propagam visualizações e explicações sobre os detalhes acionados para a desqualificação de presumíveis milagres. Todavia, independentemente da revelação da “farsa", como bem disse Evans-Pritchard, a crença e explicação sobre o feitiço não se esgota porque um feiticeiro particular possa ter sido desmascarado. Em tal sistema de crenças, o problema é visto como sendo de um feiticeiro específico, que não é tão bom assim, ou até do enfeitiçado, que não sabia que havia contra-feitiços activos, com poderes superiores às do feiticeiro, considerado barato.

 

A áurea de sacralidade que acompanha vivências da religiosidade e espiritualidade é passível de ser observada por qualquer um que embarque em exercícios de reflexividade e postura relativista, sem que isso signifique qualquer reivindicação de verdades ou conhecimentos supremos. Religião, ciência e política são domínios de significações caracterizados por armaduras de estruturação relativamente diferenciadas que podem caber em noções de visões de mundo, um todo ou parte de sistemas cosmológicos.

 

O tráfico de ideias, sistemas de crenças e representações remonta a própria história da humanidade e, apesar da afeição ao fetiche das modernidades e coisas ditas pós-modernas, o que anima a experiência humana é essa contínua mobilidade, tensões, conflitos estruturantes e negociações entre domínios de alguma forma contíguos e/ou interdependentes.

 

A estas distâncias históricas, naturalizamos a coexistência de mesquitas, igrejas, templos, academias, parlamentos ou palhotas de curandeiros, não como meros edifícios mas, como espaços especialmente concebidos para o exercício e para experienciar formas particularmente expectáveis de estar e ser em cada um desses distintos espaços, ainda que elementos de um possam ser arrolados, invocados, instrumentalizados ou simbolizados entre e intra domínios.

 

Não raras vezes, cientistas ou candidatos a cientistas agradecem aos deuses por terminarem etapas rituais de legitimação como cientistas. Religiosos cultivam o conhecimento científico, o domínio dos cânones religiosos e, por vezes, não se distinguem de actores políticos em actos de pregação e vice-versa. O fascínio da vida emerge dessa complexidade e multiplicidade de domínios e espaços de transito e vivências que emanam das relações sociais.

 

Na era do "triunfo do mercado" e, mesmo antes disso, qualquer uma das instituições sociais ou patrimônios humanos imateriais são passíveis de virar bens ou produtos disponibilizados nos diversos tipos de mercados, como simples "commodities", à mercê das mais elementares leis de oferta e demanda.

 

No “mercado científico”, por exemplo, vende-se de tudo um pouco. “Escolas de pensamento”, “linhas editoriais”, “(in)verdades científicas”, tecnologias provadas e improváveis, bugigangas que interpretam teorias e descobertas, a ideia de deleite pelo conhecimento de “torre de marfim”, fórmulas, palavrões e chavões, além do "turismo científico que se materializa entre conferências, seminários locais e globais que assumem contornos de verdadeiras passarelas de desfile de egos e vaidades, associadas a maleáveis noções de razoabilidade, razão, legitimidade e prestígio. Indivíduos fazem carreiras na academia, estabelecem alianças, adotam ou privilegiam “agendas” (ditas de conhecimento) e reproduzem-se, em termos de construção de si (simbólica e materialmente), assim como legam ideias e representações, passíveis, ou não, de serem capitalizadas e ou disputadas no "mercado de conhecimento" ou no que, em função da escola e praxe, configura uma verdadeira “indústria do conhecimento”.

 

O campo académico ou científico é passível de ser observado com a mesma aproximação ou distanciamento que podemos usar para qualquer outro campo, domínio ou indústria, se usarmos o jargão mercadológico de coisificação “das coisas”.

 

A política também configura mercado. Por ser demasiado óbvia a forma de estar, ser e transacionar no mercado político, desde a venda de ideias e ideologias no afã de cativar indivíduos ou multidões, propostas de gestão e governação, modelos de sistemas e toda uma série de produtos, subprodutos e aspirações que dispensam exaustão na sua caracterização. A política qualifica uma indústria, em sentido lato, onde até sonhos de “futuro melhor” se vendem ou impingem-se pela força da repetição, encantamento de líderes carismáticos, lealdades históricas que permeiam dimensões existenciais. No limiar, alguns indivíduos não se imaginam em vida plena fora dos laços e vínculos políticos partidários. A expressão, "eu sou político(a), não sei fazer outra coisa", proferida por figura pública em espaço privilegiado de antena nacional de TV é lapidar.

 

A percepção do domínio da religião e religiosidade como espaço de evocação e experimentação de formas particulares de ascetismo, teologias salvacionistas, evangelhos da prosperidade (e do bem estar), bem como territórios de articulação de significados e sentidos da vida, experimentação e vivência de níveis e dimensões diferenciadas de espiritualidade não impedem a visualização deste campo como espaço competitivo de negociação e mercantilização de narrativas de capital cosmológico, com potencial de contribuir para a inserção e localização de indivíduos e colectividades em sistemas relativamente abrangentes de definição e interpretação do "mundo" e da "realidade".

 

No brotar de cogumelos de tendas de promoções de milagres, não devemos perder de vista que a epifania da “salvação” manifesta-se de diversas formas e, apesar da dimensão súbita que parece acompanhar esse momento, obedece à roteiros sociais multidimensionais permeados por diversos sentidos, para não dizer razões, simbolismos e efeitos tacitamente apelativos e/ou coercitivos. O "festival de milagres" ostensivamente mediatizados nos últimos tempos não são novos e acompanham experiência humana como parte integrante de sistemas cosmológicos fechados e/ou fluídos. Visões de mundo reservam espaços privilegiados para as manifestações e expressões religiosas, independentemente da ocorrência de outras narrativas sociais, algumas das quais reivindicam, para si, lugar de ascendência (como a política, as religiões seculares ou a ciência).

 

A, simultaneamente, confortante e desconfortante multiplicação e mediatização de formas pregação, oração, incomoda pela visibilidade, ocupação de espaços de antena nos mídias modernos e pela e pela ousadia na apropriação de roteiros que assumem contornos lúdicos e instituintes de lugares de poder, como o atabalhoar do trânsito com sirenes e "motocadas" que, tanto quanto simbolizam a materialização do poder do Estado e, literalmente, suas "estruturas", concorrendo para a produção e reprodução das desigualdades sociopolíticas, abrem espaço para a cristalização, no imaginário social, de diferentes dimensões de reificação das premissas e versões conjunturais da "teologia da prosperidade". À posteridade, reservo a discussão sobre o “papa-móvel” e o aparato mobilizável nas digressões ou mobilidade papal.

 

Os edifícios morais, como obra do homem, ainda que exibam bases estruturais relativamente perenes, são feitos de materiais maleáveis, suscetíveis e permeáveis à recriações, mimetismo e decalques de códigos e linguagens conhecidas (e novas), esticando os limites dos parâmetros mais genericamente estruturantes, ao mesmo tempo em que acomodam convicções e oportunismos de indivíduos e grupos.

 

A batalha pela comunhão de "juízos de valores" (não reduzida à simples homogeneização) em vários domínios, com particular destaque aos campos político e religioso, é longa e passa pela problematização das nossas concepções sobre moralidade, ética, direitos e deveres de indivíduos e colectividades, em contexto em que parece predominar o "estado de natureza".