Sabe bem uma grande caneca de cerveja nesta manhã em que estou aqui, sentado na esplanada do Hotel Tofo-mar. Outra vez. À semelhança de todas as vezes que tenho vindo a este lugar que a vida oferece-me. De graça! É como se toda a existência fosse esta síntese, ou seja, como se tudo se circunscrevesse na praia e nas dunas e na música orquestrada pelas ondas que não páram de se esbater na terra. Em constante progressão lenta. Porém, irreversível.
O líquido que parece ouro, borbulha sem parar no interior da caneca, transmitindo a mensagem de que a cerveja está viva, e isso reconforta-me. Significa que eu também estou vivo. Como as gaivotas que voam em voo rasante por sobre o mar do Índico, ao encontro dos seus destinos, é lindo. Há uma combinação perfeita entre o oceano que está aqui mesmo, aos meus pés, as dunas violadas, os pássaros marinhos, o silêncio. E eu, que me entrego totalmente a liberdade.
Para além da minha, há uma outra mesa ocupada por dois casais de raça branca, entrados na idade. Falam tão baixo que não consigo perceber que língua falam, mas também estaria pouco me lixando com isso, não fosse o facto de estarem a beber cerveja como eu. Em grandes canecas. No mesmo lugar. Com a mesma protecção do Índico.
Estou na quinta caneca e já transpus a atmosfera. Levito no cosmos, onde as coisas não dependem de mim, mas da falta de gravidade. Sinto um grande prazer como se a minha alma, ela própria, tivesse asas de águia. Plano em toda a dimensão do espaço que vai sendo criado pela minha imaginação. Pelo efeito do álcocol que me vai entranhando. Sou um homem livre e, desde que estou aqui há mais de quatro horas, ainda não chegou mais ninguém. Os dois casais que partilhavam comigo a esplanada, bateram as asas como passarinhos cansados que agora carecem de repouso.
Pedi mais uma caneca, a sexta. Sem saber ao certo se seria a última ou não. Cada gole que viro goela abaixo, é um degrau que subo em direcção a libertação, e a memória abre-se como a luz do amanhecer que nos traz novas auroras. Sinto leveza no meu interior e descubro-me a repetir em surdina as músicas que aprendi a ouvir nos discos da Rádio Moçambique, nos tempos em que a locução era a minha jangada. Então quer dizer que estou em órbita.
Mas o dia está a entardecer sem contemplações, deixando-me todas as suas marcas para que eu possa recordar-me de tudo amanhã. O mar ensorberbece-se, meio furioso, em maré cheia, como que a dizer, vai para casa! Na verdade estou aqui desde o meio da manhã e já são 16.00 horas. Estou saciado. Pelo camarão que comi. Pelo ambiente do mar em harmonia com as dunas e as gaivotas. Pela cerveja bebida numa grande cabeca. Em paz e em liberdade.
A semana finda foi marcada por diversos acontecimentos que se despejavam nas páginas da história do nosso País. Em alguns cantos, ouviram-se gritos de socorro, por causa de surtos de raptos à luz do sol, destapados nas artérias da Cidade das Acácias e algumas vindas do exterior. Igualmente, assistiu-se ao interromper e à restrição da livre demonstração das liberdades fundamentais dos homens, uma clara evidência de atropelo à Constituição da República, bem como outros regulamentos jurídicos regionais e mundiais de defesa e celebração dos Direitos Humanos.
Ademais, além do empurrão de um dos mais ilustres causídicos das Dívidas Ocultas, Alexandre Chivale, que defendia o mais especial Agente Secreto da Pérola do Índico, sacudido pela batina e peruca da Magistrada Ana Sheila Marrengula, com o carimbo do martelo do Capitão de punk judicial, das paredes envelhecidas daquele edifício localizado ao longo da Avenida 24 de Julho, que esconde o tormento do povo, ouviam-se algumas vozes engravatadas, pintadas de leite e cremora, que, em plena Casa Magna, destilavam desnecessárias declarações de amor.
Não quero falar das suas atrocidades linguísticas, nem dos processos contrários à formação de palavras, das dissonâncias fonológicas e morfossintácticas do seu falar, ou do desvozeamento das sílabas solteiras que, a cada sessão parlamentar, ecoam dos seus movimentos bilabiais estranhos à oficina da língua. Até que poderíamos entender, se, no mínimo, usassem o seu pobre vocabulário para cozinhar ideias úteis destinadas ao bem do esquecido povo. Antes, quero falar de outros assuntos entornados no tapete especial da Casa Magna, a nossa Assembleia da República!
É verdade que a nossa diva da Literatura Moçambicana, a Paulina Chiziane, merece todo o nosso respeito, mas trocar os problemas do povo, a fome dos desempregados, a escassez dos cuidados hospitalares, a educação malnutrida que nos rodeia, as mortes, os deslocamentos das comunidades e a assistência desumanitária que se vive em Cabo Delgado, bem como as nossas filhas e irmãs Matalanizadas e Ndhlavelizadas, por salvas de palmas cheias de declarações de amor e elogios desprovidos de sensibilidades pelas causas de quem mais merece, é mesmo falta de vergonha!
Aliás, quando ela, e tantos outros nobres Escritores, escrevia os contos e romances a descrever a nossa triste realidade como País, nenhum daqueles Deputados defendia o reconhecimento dos seus escritos, que perfazem as páginas marginalizadas da nossa Literatura Moçambicana, nem do Ministério da Cultura e Turismo se ouviam sussurros de apelos virados para a promoção da cultura nacional representada, democraticamente, nos escritos daquela embondeira da escrita moçambicana, africana e mundialmente traduzida, e lida nos cantos dos quatro pontos cardeais.
Além disso, quando Paulina escrevia os seus rabiscos, aqueles Deputados se enchiam de regalias e saldos volumosos que engrossavam os seus corpos já cansados de desfrutar dos prazeres dos impostos do desgraçado povo, que também serviam para pagar os Escrivães que rabiscavam as páginas dos seus discursos saciados de elogios, porém, desprovidos de educação e sentido de responsabilidade face aos clamores dos corpos cujos dedos lhes colocaram naquelas bancadas.
Duvido, ainda, que aqueles Deputados, declamadores de frases de amor, se sentam, conscientes, em frente às páginas brancas do computador, simplesmente, para as encherem de adjectivos vazios de significados que o povo não as quer ouvir. Outros até chegam a falar de pecados, enquanto os seus discursos estão carregados de revelações pecaminosas, malandra e diabolicamente inspirados, com vista a empurrar, cada vez mais, o cidadão comum à margem da desnutrição educacional.
Aliás, não é que isso é, igualmente, resultado de falta de respeito e consideração pelo povo que os colocou naquelas bancadas de colchões volumosos que os enchem de conforto e sonolência, os quais, como seguimento, recebem respostas de mentes cansadas e desnutridas, que reflectem a sua incapacidade em defender aqueles que realmente precisam do seu apoio.
Ora, as declarações de amor dos Deputados, também, estenderam-se ao Informe do Provedor da Justiça, o Pai da Legalidade na Pérola do Índico. Contudo, como disse o Deputado Silvério Ronguane, de uma população de 30 milhões, em 1 ano, apenas 477 requerentes recorreram ao Gabinete do Provedor de Justiça (GPJ). Ou seja, o GPJ e os funcionários nele alocados receberam e deram seguimento a 1 processo por dia e, nos dias mais atarefados, 2 processos: “Que boa vida sua, Senhor Provedor da Justiça!” Apesar de esconderem outros detalhes, os números falam!
Por lei, o Provedor de Justiça, com a sua régua de justiça, deve intervir para o bom funcionamento e endireitar todos os arruamentos entorpecidos e manipulados da nossa Administração Pública, em todo o território nacional. Por dia, assistimos a muitos casos de ilegalidades que, desconhecendo os seus motivos, não pousaram nas páginas daquele informe repleto de imagens fotográficas.
Tal como o edifício que se encontra anexo à margem dos prédios da Avenida Julius Nyerere, na área nobre da Cidade das Acácias, o foco do Gabinete do Provedor de Justiça concentra-se na Cidade de Maputo. Assim, os demais Moçambicanos, espalhados pelo País, são deixados à sua sorte, na margem do esquecimento, sem gotas de justiça nem primeiros socorros diante das chagas de injustiça que, diariamente, visitam os seus corpos, sem apoio do órgão que lhes deveria defender. Por isso, o povo continua mergulhado em injustiças e pouco se faz para tirá-lo de lá!
Ademais, como referiu António Muchanga, Deputado que integra o grupo daqueles que são considerados a “ala dos sem amor à pátria” na Assembleia da República, além das fotos de edifícios e viagens pelo mundo, um martelanço de imagens, o informe do Provedor de Justiça, nas suas 63 páginas, é um álbum fotográfico… e, por isso, estava claro que ele veria navio na sua governação.
Além disso, quase tudo que se discute não apenas na Assembleia da República, mas também nas Assembleias Municipais e em diferentes órgãos e instituições deste nosso Estado, revela que nós estamos a brincar de governar. Assim, quando chega a hora de informar ao povo e ao mundo sobre os feitos da nossa governação, também, brincamos de informar. E vê-se, nessas brincadeiras, uma tendência de se recorrer ao temido Segredo de Estado para esconder informações úteis que ajudariam a resolver os caducados problemas que há muito atormentam o povo.
Já era de se esperar. Muitos daqueles senhores nunca foram depósitos de aplausos verdadeiros. Mesmo enquanto crianças, já deixavam transparecer o seu futuro conturbador. Quase todas as crianças da sua idade, na altura, reclamavam dos seus maus comportamentos intelectuais. Não se sabe ao certo, mas eles chegaram ao Parlamento, politicamente constitucional. Tudo por conta da política! E desta vez, eles não só lançavam areia nos olhos dos colegas da Casa Magna, mas, também, pelas suas artimanhas, comprometiam o futuro dos seus irmãos e das novas gerações.
A propósito, como falar da independência dos Tribunais, enquanto as dívidas ocultamente planeadas tiveram o carimbo visível daqueles Deputados, simplesmente, porque queriam defender interesses obscuros resumidos em aprovações de informes descabidos e propostas legislativas que apenas apadrinham as suas cozinhas, os seus bolsos, enchendo-os de prazeres, não apenas nas suas poucas horas de trabalho, mas, sobretudo nos seus abundantes momentos de lazer?
Será que devemos, sempre, produzir elogios aos nossos irmãos, mesmo quando fazem macaquices ao céu aberto, simplesmente porque em nós correm o mesmo líquido partidário? Será que aqueles Deputados escrevem os seus discursos conscientes ou no seu mais elevado estágio de desprezo às necessidades do já empobrecido povo esbofeteado pelos ataques da natureza, dos insurgentes no Cabo queimado e da Covid-19, que asfixia o mais básico direito à vida condiga do povo?
O anúncio pelo Ministério Público da abertura de um processo contra o advogado Chivale é o exemplo dúbio de uma justiça supersónica. Na tenda da BO foram vertidas várias situações de eventual branqueamento de capitais, como é o caso do condomínio turco na Matola e de proprietários de casas de câmbios, mas nenhum processo autónomo foi anunciado. O Ministério Público devia evitar este registo persecutório, com cheiro a vingança contra um grupo que abraçara a narrativa de que o julgamento é político, vituperando a seu bel prazer contra a PGR, num jogo de gato e rato sem qualquer interesse para a justiça. Houve indícios de práticas criminais envolvendo muitas figuras. Então, que se actue contra todos.
No passado dia 19 de Outubro, em Portugal, foi gravado no Panteão Nacional (homólogo da nossa Praça de Heróis) o nome do antigo cônsul português em Bordéus (França). Aristides de Sousa Mendes (1885-1954) fora, na altura da II Guerra Mundial, o diplomata que desobedecera o regime de Salazar emitindo, à revelia, milhares de vistos a favor de judeus e de outros em fuga das atrocidades da Alemanha Nazi.
O acto (de consciência) de Aristides Sousa Mendes custou-lhe a expulsão da carreira diplomática e a viver, com a sua família, veementes retaliações a ponto de morrer na miséria. Há quem justifique, e é plausível, que a resposta dada por Salazar fora uma característica do seu regime ditatorial. No mesmo diapasão, é também plausível que o reconhecimento e a homenagem que hoje o Estado português presta ao (desobediente) diplomata e aos seus préstimos sejam uma característica do actual quadro democrático em Portugal.
A que propósito falo disto? A propósito de saber o destino dado a funcionários públicos moçambicanos, e não só, que em circunstâncias análogas as do diplomata Aristides de Sousa Mendes tenham tomado decisões em contramão com as famosas orientações superiores.
É de crer, em jeito de nota de fecho, que no Moçambique pós-independência, mormente no tempo monopartidário, tenham existido, em acto e consequências, “os nossos Aristides de Sousa Mendes” e de que hoje, no quadro da constituição (democrática) de 1990 e seguintes, urge que o Estado os reconheça e homenageie, no mínimo aos mais destacados e exemplares desobedientes. Sob que critérios? É um outro debate.
Quando a Federação Moçambicana de Futebol foi arrastada pelos pés para fora do jogo, com seus dirigentes que passavam a vida soprando apitos de sono nos escritórios como pastores de gado, todas as bolas foram transformadas em berlindes e assim surgiu dessa devastação a Federação Moçambicana de Berlindes. O timbre da nova federação era um berlinde submerso num buraco e um enorme dedo indicador em posição de remate.
Umas das primeiras obras da Federação Moçambicana de Berlindes foi a massificação da nova modalidade; a federação comprou um rebanho de retroescavadoras para abrir buracos que facilitassem a prática da modalidade. E não houve muito trabalho, visto que em todas as regiões do país o que não faltava eram buracos. Na própria sede da federação existência um enorme buraco deixado pela direcção de futebol que servia de campo de treinos das sub-selecções.
A selecção nacional de berlindes treinava em diversos campos bem equipados que temos em todo país, mas a estrada nacional número um era o palco predilecto. Claro que fazia todo sentido ter uma selecção que aproveitasse os buracos do país do que uma federação de futebol que afundasse a selecção em buracos. O Governo apoiou muito a selecção nacional de berlindes: financiou sem medir esforços projectos que ampliassem os buracos do país.
Foi muito curioso ver a federação nacional de berlindes aproveitando-se dos enormes buracos deixados pela federação nacional de futebol para praticar a sua modalidade. A selecção nacional de berlindes ganhava tudo que fosse campeonato mundial, aliás, enquanto a federação nacional de futebol ocupava-se em encher os bolsos de moedas, a outra enchia os buracos dos bolsos com berlindes novos e taças. Se a memória não me falha, a última vez que a selecção de berlindes perdeu num campeonato mundial, a população saiu furiosa à rua armada de alcatrão, ameaçou tapar todos os buracos e assim acabar com a modalidade e todas as derrotas azedas, mas a polícia, no seu exemplar trabalho, interveio, impediu as manifestações e recolheu todas as barras de alcatrão aos seus armazéns. Tapar os buracos da selecção era, sem dúvidas, um enorme insulto ao desporto nacional e ao esforço imensurável do Governo.
A modalidade dos berlindes nos buracos cresceu; o Governo não parava de inaugurar mais buracos em todo país, a bandeira de Moçambique, pelo dom dos buracos e dos movimentos dos dedos, era erguida em todo mundo e há quem viajava para o país para conhecer os buracos onde eram formados os melhores do planeta. A federação moçambicana de futebol nunca mais fez falta; os estádios foram transformados em mercados, os camiões de batatas e cebolas invadiram o Estádio Nacional de Zimpeto, as plantações de alface e couve galgaram, como trepadeiras, as bancadas do Estádio da Machava e assim o desporto cresceu.
A selecção nacional de berlindes usava luvas, fazia jogos amigáveis nos luxuosos buracos de Burundi, Eritreia e Malawi, testava as penalidades com os dedos nos buracos oficiais dos mistérios e sempre usava as redes das balizas da antiga federação moçambicana de futebol para pescar mais vitórias em campeonatos mundiais. Os campeonatos mundiais aconteciam no nosso país, pois a FIFA dos berlindes rendia-se e curvava-se à excelente conservação que fazíamos das nossas covas. Nunca fomos reprovados por falta de covas excelentes.
Quando a Federação Moçambicana de Futebol foi arrastada pelos pés para fora do jogo, com seus dirigentes, os berlindes ganharam espaço e todos pusemo-nos a gritar as taças que nos qualificavam para os buracos das nossas satisfações. E assim fomos conhecidos como o país dos berlindes e dos buracos.