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quinta-feira, 24 junho 2021 12:24

O tiro para a independência económica

Em texto anterior partilhara uma história extraída de um livro do sociólogo Elísio Macamo, na qual uma anciã rural da província de Gaza, que desesperada e frustrada pelo rumo do país depois da independência, questiona: “Para quando o fim da independência?” Por acaso, há dias e em conversa ocasional sobre o assunto com um contemporâneo da anciã, mas urbano, este disse que a saída não é o fim da independência, mas a conquista de uma outra independência: a independência económica. Segundo ele, a independência de 1975, e desde então, é apenas política. 
 
Do pouco da conversa deu para perceber que o argumento central do cota é o de que não se pode fazer política/governar e ser, em simultâneo, um empresário ou um agente económico. “Foi isto que tramou o país”. Sentença exarada. Para ele, o país saiu ainda mais lesado porque, e nas duas áreas, o desconhecimento fora a premissa de partida. E como alternativa, quiçá uma premissa de chegada, ele aponta que para a conquista da independência económica é necessário que haja um movimento para a libertação económica cujo objecto é a separação do exercício simultâneo da governação política com o exercício da actividade económica. Quem dá o primeiro tiro? “Cabe ainda a  Nachingweia, enquanto geração/processo, essa responsabilidade”. Assim respondeu o cota da urbe.
 
E assim, para terminar, vou aproveitar o feriado dos festejos do dia da independência, que se assinala amanhã, 25 de Junho, e fazer uma viagem a Gaza. A ideia é procurar convencer a anciã rural a ter um pouco mais de paciência e acreditar que possivelmente as coisas possam melhorar e que para tal basta um pouco de colaboração de “Nachingweia”. E mesmo a terminar: espero que encontre a anciã rural ainda em vida (biológica), caso não, certamente que a encontre eleitoralmente viva.

Escrevi recentemente um artigo intitulado “A promoção da mediocridade – relações de poder e dependência na nossa sociedade”, onde abordara o escândalo das formandas de Matalane que foram abusadas sexualmente pelos instrutores, tendo algumas delas ficado grávidas. Um episódio que causou uma onda de indignação e consternação a vários níveis da sociedade e que envergonhara uma das instituições estatais de maior relevo e utilidade pública, que deve transpirar credibilidade e verticalidade.

 

Eis que mais um vergonhoso episodio abala e mancha toda uma instituição que se pretende ser de reeducação e preparação para a reinserção social de pessoas privadas da liberdade – falo do estabelecimento prisional de Ndlavela. Fruto de uma pesquisa aturada realizada pelo Centro de Integridade Pública (CIP), o vergonhoso escândalo do esquema de prostituição envolvendo presidiárias foi tornado público chocando toda uma sociedade. Na verdade estamos perante manifestações diferentes para uma mesma enfermidade – caracterizada a decadente moralidade que grassa a nossa sociedade, o sexismo exacerbado, as relações de super poder, e o sentido de impunidade.

 

Um negócio de exploração de mulheres para fins de prostituição, que choca com todos princípios atinentes a ética social e institucional e esfaqueia as entranhas da dignidade da pessoa humana em todas suas dimensões. Um acto praticado de forma sistemática, envolvendo altas patentes do estabelecimento prisional de Ndlavela e uma elite abastada que paga grandes somas  em troca de serviços sexuais.

 

Aquando do escândalo de Matalane, vozes existiram que de forma peremptória acusaram as formandas de falta de postura deontológica, oferecimento e de assédio aos instrutores. Por outras palavras, as instruendas passaram de vítimas a prevaricadoras e, entre críticas, vilipêndios e pedido de punição exemplar, a sociedade não se esqueceu mas arquivou o caso.

 

E para Ndlavela, o que diremos? O que faremos e o que poderemos esperar? O que a sociedade fará para não deixar que este e mais casos se esfumem ao sabor da indiferença e das contra narrativas existentes?

 

É de todo inegável que estamos diante de um crime público. Ou melhor, de vários crimes públicos que se alimentam em cadeia. Legalmente esta estabelecido e previsto no número 3 do Artigo 61 da CRM, que nenhuma pena na República de Moçambique implica a cessação dos direitos fundamentais. Obviamente, haverá algumas restrições advindas da tipologia da própria pena, não sendo o caso nem de um nem de outro fenómeno aqui reflectido.

 

Uma breve leitura de estudos sobre género como ferramenta metodológica, política e social para problematizar e reflectir os processos que instituem e sustentam desigualdades sociais entre homens e mulheres, e autorizam formas de subordinação feminina, facilmente poderíamos somar vários indícios que sinalizam uma trajectória de reconhecimento, incorporação  e legitimação crescentes dessa teorização. Quero com isto dizer que há indícios bastantes para afirmar a existência de uma legitimação silenciosa a nível doméstico, institucional e social de várias práticas atinentes a desvalorização, subordinação e inferiorização da mulher.

 

A história moderna e contemporânea testemunhou a partir da primeira metade do século XX a emergência de vários movimentos de mulheres e tipos de Feminismos que chamaram atenção à necessidade de se investir mais em produção de conhecimento e estudos com vista uma maior capacidade de denunciar e sobretudo compreender e explicar a subordinação social e a quase inexistência nos processos de participação política a que as mulheres estavam sujeitas até pelo menos o final do século transacto.

 

De entre várias acepções existentes, ressaltam duas diferentes e conflituantes: Por um lado, o género vem sendo usado como um conceito que se opõe ou se complementa a noção de sexo biológico e se refere aos comportamentos, atitudes ou traços de personalidade que a(s) cultura (s) inscreve (m) sobre corpos sexuados. Por outro lado, género tem sido usado, sobretudo pelas feministas para enfatizar que “a sociedade forma não só a personalidade e o comportamento, mas também as maneiras como o corpo {e portanto, também o sexo} aparece”. E nestas acepções, podemos ir buscar algumas explicações elementares para tentar pelo menos perceber a génese deste tipo de pensamento que conduz a uma acção negativa que é legal e socialmente inaceitável. 

 

Quando me refiro a capacidade de denunciar, sobretudo compreender e explicar a subordinação social, quero me insurgir quanto a normalização do anormal, a estabilização do absurdo e a perpetuação de dogmas e medos que não nos edificam enquanto sociedade. Esta sucessão de fenómenos aparentemente dispersos, pode ser ainda mais comum e mais viva em muitas instituições e em vários quadrantes do nosso vasto país. É uma sucessão perigosa  de um fenómeno indicativo daquilo a que muitas instituições se foram tornando ao longo do tempo e hoje encontram-se manchadas com nodoas de imoralidade.

 

Na verdade não se trata de um fenómeno de Matalane ou de Ndlavela apenas. É um fenómeno que tem raízes muito mais profundas e estes são apenas alguns dos resultados, e por sinal resultados da vergonha e da falta de pudor. Denominador comum nisto é que são as mulheres quem mais sofrem com isto – daí o nosso foco analítico nas relações de género e seus desdobramentos com o poder instituído. São as mulheres as maiores vítimas destas atrocidades e são elas que mais são vitimizadas em vez de protegidas (processo de normalização do anormal).

 

Numa análise profunda a estes e mais fenómenos vividos e sobejamente conhecidos por nós, facilmente se chega a conclusão que estes casos são na verdade o reflexo daquilo que somos como sociedade e da forma como olhamos e tratamos a mulher. É um sintoma grave que veemente e copiosamente vamos ignorando, pois nas relações de género nos foi ensinado que o homem é o mais poderoso e tem mais direitos que a mulher.

 

É premente fazer uma introspeção e iniciar uma reforma nas nossas casas, locais de trabalho e na sociedade. As instituições tanto estatais como privadas devem recuperar o normal funcionamento e a restauração do seu modus operandi e dos modelos de moralidade pública e privada, do respeito que outrora existiram. É preciso coragem para abordar, firmeza para desconstruir, integridade para actuar de forma imparcial,  mão dura para punir os infractores, e valores éticos no seu mais alto nível para elevar a paz e harmonia social. Talvez assim poderemos resgatar o estado e suas instituições desta tremenda imundice e promiscuidade que envergonha a todos.  Deste modo poderemos sonhar em edificar uma sociedade alicerçada em valores fundados no humanismo, na verticalidade e acima de tudo no respeito pelos direitos humanos.

 

Por Hélio Guiliche (Filósofo)

quarta-feira, 23 junho 2021 09:34

Ilha dos sonhos confiscados...

Quero compartilhar consigo, neste texto, parte de um diálogo que rabisquei enquanto pensava na actual situação da nossa Pérola do Índico, Moçambique. Espero que este curto texto o ajude a lembrar-se de algo, senão de muitas coisas, que ocorre no solo pátrio. Trata-se de uma conversa entre uma mãe e um filho a respeito do que acontecia em sua casa, aliás, no seu País.

 

FILHO: Mãe, eu tenho uma pergunta. Posso fazer?

 

A mãe, ansiosa, e com um olhar transparecendo cansaço, cautelosamente, interpelou a voz do filho, a qual cortava o seu sossego.

 

MÃE: Fala, meu herdeiro de qualidade. O que se passa?

 

FILHO: Mamã, será que o nosso Pai nos ama de verdade? Será que ele mesmo pensa em nós, nas nossas irmãs que choram pelos castigos dos guardas deformadores, pelas chamas e agressões de todos os lados, pelas dificuldades que enfrentamos para construir o nosso humilde lar, e por tantas outras coisas que acontecem aqui em casa?

 

A mãe, entusiasta, como de costume, suspirou bem fundo e retornou ao filho, soltando palavras escoltadas de atenção e cautela, interrogou:

 

MÃE: Porquê, meu filho? O que se passa de verdade?

 

E o filho, acumulando uma média de coragem nos seus pulmões, fez atravessar, passando pela laringe e faringe, dos seus largos pulmões livres do fumo das drogas palavras, numa mistura das cordas vocais, palavras compostas de sons vozeados e silábicos, fonética e fonologicamente organizados, e asseverou:

 

FILHO: Mamã, mamã… Porque o Pai é Bombeiro, e a nossa casa está em chamas, ardendo de todos os lados, porém, parece que ele nem sequer nos que socorrer... Isto é normal, mamã?

 

MÃE: Eish, mwananga, mathala (ou seja – Eish, meu filho, cala-te – traduzido da língua Sena, falada no Centro de Moçambique). Sempre que falas, só abalas! Evite, meu filho!

 

Ora, a mãe, como quem tivesse entendido a plenitude da mensagem por detrás da pergunta do filho, continuou, efusiva:

 

MÃE: Mwanawe, una passiwa xikonde iwe! (Meu filho, vais receber um golpe na cabeça, em Sena). O teu Pai está sempre atento a estes tipos de comentários. Ele tem muitos ouvidos... Até parece um Superman! Ele sempre ouve comentários de todos sobre a nossa casa, principalmente quando não são a favor da sua liderança. Ele ainda não quer aceitar que isso é para o bem de todos nós. Pensa que lhes queremos mal. Talvez sejam os seus muitos ouvidos que mal transmitem estas mensagens… Talvez sejam eles que distorcem os comentários para ganhar mais confiança e credibilidade, bem como mostrar que estão a trabalhar. Isso já se normalizou em nossa casa, infelizmente.

 

Ora, o filho, logo em seguida, alinhou as suas palavras ao discurso que a sua já cansada mãe acabara de tecer. Quase desesperado, sem saber onde recorrer por ajuda, expôs:

 

FILHO: Ahhh, yá! Só posso sair desta casa... Não quero morrer afogado, muito menos ter o meu corpo totalmente incinerado, mamã. Se eu continuar aqui, com estes meus comentários, todos os meus sonhos se tornarão em cinzas. Vão incendiá-lo como tentaram fazê-lo ao Canal de Moçambique. Há muitas coisas que não posso suportar. Não posso ver, em silêncio, as minhas irmãs vendidas na cadeia, a nossa casa a queimar no telhado, onde lutamos pela nossa libertação, e a família toda impedida de construir porque alguns senhores decidiram e não querem que nós, os mais desfavorecidos, tenhamos onde reclinar a cabeça. Até denunciaram um animal em extinção, o Dugongo.

 

Vendo que o seu filho até tremia as bochechas quando falava, transparecendo o temor que ecoava do fundo das suas entranhas, e o medo de ver o seu futuro abortado antes do raiar do astro solar, a mãe atravessou a comunicação do filho, e afirmou:

 

MÃE: Filho, fica comigo. Vamos suportar as chamas até que um dos vizinhos nos venha ajudar... Tenha Paciência, Mwananga (Meu filho, em língua Sena)! Não se precipite!

 

Após este intercalar da sua mãe, uma medida de poucas palavras, carregadas de conteúdo semântico exibido pela sensibilidade da sua voz, associadas às gotas salgadas que espreitavam pela janela do seu rosto cheios de experiências tristes, colocando a mão sobre a cabeça, procurando palavras para melhor se expressar, o filho contestou:

 

FILHO: Shiii, mamã… Já não te reconheço mais. É tudo o que me tens a dizer? Queres mesmo que vendamos o nosso carácter a preço de banana por temer a quem nos deveria proteger e lutar pelo nosso bem-estar? É isso mesmo, mamã? Sério?

 

MÃE: Tens alguma ideia melhor, meu filho? – Questionou a mãe, toda preocupada. Ela tremia tanto que abanava a única capulana que a concedia a dignidade de uma mulher emancipada. A penúria, ao de longe, denunciava-se na sua aparência.

 

FILHO: Um momento, mamã. Deixa-me consultar aos meus irmãos, amigos, colegas e vizinhos. Talvez alguém tenha alguma solução que seja melhor para nós. Talvez, mamã!

 

Após ter pronunciado estas palavras, o filho deu algumas voltas no pátio da casa, que há tempo solicitava por Primeiros Socorros. Os Bombeiros viram o incêndio, mas, quando chegaram, não tinham água para apagar as chamas. Até tentaram! Também, os guardas sabiam das suas responsabilidades, porém, a sua ganância tinha mais autoridade sobre as suas consciências. Além disso, os políticos têm a noção da nossa pobreza, contudo, preferiam defender as suas causas a lutar pelo bem comum e por aqueles que os elegeram. Os líderes, por sua vez, sabem o que é necessário fazer para resolver os vários problemas do povo, no entanto, confiaram esta responsabilidade aos Parceiros de Cooperação e organizações externas. A Sociedade Civil, por seu turno, grande parte dela, é apática ao que realmente acontece. Ela luta com vigor por sonhos e necessidades particulares. Enfim, é muito ingrediente para uma única refeição!

 

Passados alguns minutos, o filho bradou altíssimo:

 

FILHO: Por favor, alguém me ajuda… Alguém aí nos pode ajuda, please? Está a ser difícil continuar nesta ilha. Os nossos sonhos estão a ser, aos poucos, confiscados!

 

De repente, um par de silêncio invadiu o cenário onde ambos conversavam. Era visível aquela presença friorenta que alcançou toda a vizinhança, incluindo àqueles que moravam em lugares mais distantes daquela velha casa de alvenaria amarfanhada.

 

Surpreendentemente, ninguém ousou em responder ao pedido de ajuda, que ecoava dos quintais de quase todos os bairros, apesar de, literalmente, todos conseguirem ouvir. No entanto, algum tempo depois, as chamas invadiram outros pátios, os danos alastraram-se e afectaram a muitos bolsos.

 

Em seguida, algo incrível aconteceu. Agora, quase TODOS julgavam ter respostas ao pedido de socorro. Ou melhor, quase todos tinham algo por dizer sobre o assunto, pelo que vozes emanavam de todos os pontos cardeais da crosta terreste, de latitudes, altitudes e longitudes diversas.

 

Posto isso, o filho, ao deparar-se com esta realidade, soltou, espantado:

 

FILHO: Yá! Rendi... Agora somos TODOS génios! Só porque as chamas também lhes afectaram... Será que precisava mesmo de chegarmos a este ponto?... Haja MUDANÇA!

 

A mãe, tentando socorrer-se da fala do filho, asseverou:

 

MÃE: Mwananga, mwananga (meu filho, meu filho). É melhor cooperares com o silêncio. Caluda. Eu já sepultei a muitos filhos que tentaram agir como tu. Seja apenas um mero espectador, telespectador, ou ouvinte… Nada de fazer perguntas. Até porque não fizeste jornalismo, e ninguém da nossa família fez este curso. Aliás, até os jornalistas formados, renomados e outros mais novos na área, já se cansaram de perguntar e receber cheques em branco como respostas. Não te quero perder antes da lua nova!!!

 

O filho, boquiaberto pela reacção da sua mãe, com todas as suas forças, retorquiu:

 

FILHO: Mamã… Se assim for, já me perdeste há muito tempo. Acorda, mamã. Acorda, senão vamos todos perecer aqui… Nesta casa, aliás, ilha, há vendedores de sonhos!

 

Tendo terminado de dizer estas palavras, alguém gritou: – “Você aí, muito cuidado!” Assustado, de repente, o filho abriu os seus olhos. Afinal, tratava-se de um sonho. Despertou, sem saber o que fazer em seguida… Assim, ele está à procura de alguém que possa ajudá-lo a desvendar o seu sonho.

 

Alguém aí pode ajudar?

quarta-feira, 23 junho 2021 09:32

A nova e rentável bolada da terra do rand

Enquanto os brutamontes da Pérola do Índico caçam os calvos, albinos e os "magnatas de origem indiana ou asiática", na terra do pai Madiba o foco agora é outro. Já não são os diamantes, ouro, viaturas luxuosas, produtos faunísticos, assaltos ou raptos que estão na moda lá na djone.

 

Os brutamontes da terra do rand viraram o foco e passaram a olhar para um novo negócio que infelizmente abrange a pessoas dos 40 anos de idade em diante. Os tipos não querem saber de trintões, mas sim de quarentões em diante. Porque o alegado produto é mais rentável nesta faixa etária.

 

A nova e rentável bolada da terra do rand são os joelhos. Para eles, não interessa qual dos membros inferiores desde que a estrutura do mesmo esteja completa com o vasto lateral, medial, intermédio, recto femoral, bíceps, semi-tendinoso, semi-membranoso, responsáveis pela extensão e flexão do joelho estejam em condições e fortificados.

 

Os brutamontes fazem a selecção do alvo durante vários dias. Vasculham em bares, mercados, locais desportivos, prostíbulos e campos agrícolas. A ideia é conhecer a rotina da vítima. Chegando o dia da captura eles introduzem-te substâncias químicas que te deixam em coma momentânea. E durante o período de inconsciência e num sono profundo, com a anestesia aplicada, eis que é removido o joelho e interligado novamente. O esquema é altamente sofisticado. Fazem parte médicos, cirurgiões, anestesistas, enfermeiros e indivíduos das negociações.

 

O maior susto das vítimas acontece quando despertam e tentam caminhar. Acabam percebendo que uma das pernas já não tem os mesmos movimentos; e quando a anestesia acaba a dor é insuportável.

 

Os brutamontes que durante anos dedicaram-se ao extermínio de rinocerontes e outras espécies animais da vida selvagem agora viraram o foco para o ser-humano – autentica banalização da vida humana! Ou seja, enquanto o corno do rhino era/é mais rentável quando vem de um animal jovem, o negócio dos joelhos é mais rentável quando o ser-humano é adulto – que coisa! O homem caçando outro homem e criando uma nova sociedade de mutilados. Era bom que esse novo negócio rentável da terra do rand não se expandisse em outros países como o nosso – Moçambique – a barbárie seria maior.

terça-feira, 22 junho 2021 07:03

KK: Duas mortes anunciadas num só Homem

Por Jorge Ferrão & José Castiano

 

O comboio que anunciara a sua morte apitou duas vezes. Nestas ingentes palavras, comecemos pelo último apito. Oficialmente, o anúncio da sua hospitalização dava conta de que “não se tratava de Covid-19”. Não obstante, sobraram dúvidas sobre o seu estado de saúde. Ainda repercutia, em nossas recordações recentes, a odisseia do vizinho Presidente Magufuli. Para a nossa geração, nós, que crescemos contemplando a parte final dos nacionalismos e pós-independências, sabemos, como parte de uma cartilha, que nunca se anunciam os mal-estares e muito menos as patologias das lideranças.  A rigor, quando se trata dos progenitores ou Heróis das Lutas de Libertação.

 

Entre mitos ou tabus, recebemos duas heranças, se não forem mais, a saber: a das teorias de conspiração socialista, onde Kremlin ou Havana, escondiam os internamentos dos seus líderes. Era comum inventar artefactos, duplos, ou sósias, para os substituírem em ocasiões públicas.  A segunda herança é da própria tradição africana: não se devia saber que o Rei padecia, nem que sofria, como qualquer humano, de outras fraquezas. Nem mesmo depois da morte. Quem já visitou Emankhosini, lugar onde foram enterrados os Reis Zulus (menos o Shaka Zulu, é claro), saberá como aquele lugar foi mantido em segredo pelos Nkhosis. Devia manter-se o mito de uma existência ancestral.

 

A hospitalização de Kaunda foi um pré-anúncio da morte anunciada. Com Magufuli poderíamos estar distraídos, mas com um homem de 96 anos, nem tanto. Talvez a sua longevidade se devesse a vida austera que levava, pois, não bebia álcool, não fumava, vinha de uma família religiosa, fora professor, levava a sua guitarra por todo o lado onde ia (incluindo em visita oficial ao Kremlin) e, com ela ou sem ela, sempre cantava.

 

E aqui passamos à segunda parte da dupla-morte anunciada. Em 2013, nas cerimónias fúnebres de Mandela, seu companheiro na luta contra o apartheid, mantemos vivas aquelas imagens da correria desenfreada que iniciou, pelo meio da sala, para discursar e provar que estava em forma. Depois, puxou pelos pulmões entoou a música-predilecta (quiçá uma das suas inúmeras composições), tiyende pamodzi na n’tima umodzi, esse hino nacionalista que apelava à união de todos num só coração.  Nesta cerimónia fúnebre, porém, já poucos o seguiram. Era o prenúncio da sua caminhada para o final, como o último nacionalista que pregou uma era inteira de libertação, afirmação e identidade, na África Austral.

 

 

Como último dos memoráveis nacionalistas africanos, Kaunda, tinha algo em particular que o distinguia. O simbolismo com que se fazia presente em cerimónias oficiais e eventos públicos, que tipificava as glórias das lutas. Os outros líderes seguiam os mesmos exemplos. Mobutu Sese Sekou levava uma bengala-talismã, talhada de leão e outros animais; Kamuzu Banda trazia sempre consigo um rabo-de-leão; até mesmo o pacífico mwalimu Nyerere, do Ujamaa, trazia sempre uma “bengala” da sabedoria; o Mandela inaugurou as “madibas”; Samora Machel especulávamos sobre o seu relógio “mágico”. No entanto, a semelhança e, ao mesmo tempo, a diferença do Kaunda estava no seu talismã, um lenço branco, muito branco, com o qual acenava às pessoas em qualquer momento.

 

Que simbolismo arrastava aquele lenço branco no meio de uma tradição africana de leões, leopardos, elefantes, etc.? Recordemos que o Shaka Zulu se sentava sempre em cima da pele de um leão que ele próprio matava, numa luta preparada, quase que anualmente. Quando visitamos o santuário dos Macheis, em Chókwè, o nosso guia-historiador do Museu deleita-se em contar a história da luta de Machel com um crocodilo que queria comer um dos bois que ele apascentava.

 

Na autobiografia épica de Kaunda, Zambia shall be Free, conta-se da aparição de um leão enorme, ao qual ele afugentou com a sua bicicleta. Apesar da época de heróis e de misticismos nacionalistas independentistas de pais-fundadores, por quê, este homem, escolheria um “lenço branco”, tão assim que se distinguia de todas as cores?

 

Neste infausto momento, nos assalta à memória a solidão que o acompanhou, antes desta partida, cantando e dançando, sozinho, o seu tiyende pamodzi. Alguns factos ajudam a entender o enigma do lenço branco. Basta, para o efeito, que nos recordemos das imagens das negociações dos Acordos de Lusaca, assinados entre o Governo Português e a cúpula da Frelimo, chefiada por Samora Machel, em 1974. Por trás destas negociações de Paz, estava Kaunda com seu lenço branco.

 

Um ano mais tarde, em 1975, voltamos a ver o mesmo lenço branco, mítico, quando mediava a questão Zimbabwe, encontrando-se com Ian Smith e John Voster nas conversações de Victoria Falls. Ali, naquela carruagem vetusta colocada, exactamente, numa fronteira imaginária, em cima do Rio Zambeze, ele não deixou de acenar. Respondia, com humildade, às maníacas exigências dos brancos Smith e Voster, que assumiam, ainda, dominar o território “branco” da Rodésia e os nacionalistas “negros” na parte zambiana. Antes, o mesmo Kaunda tentara mediar a união entre um Mugabe e um Joshua Nkomo, dois nacionalistas relutantes, para se unirem (em abono da verdade, deve dizer-se que Kaunda inclinava-se mais para o movimento chefiado por Joshua Nkomo, que pelo seu irmão Mugabe).

 

Em 1982, voltamos a ver o lenço branco, num encontro em Botswana, desta vez com o Pik Botha, da África do Sul, com Kaunda a exigir a libertação imediata de Nelson Mandela. E, nos tempos difíceis para todos nós, nos anos oitenta do FMI e suas políticas de “austeridade” e “Estado Mínimo” do Consenso de Washington, Kaunda voltaria a exibir o seu lenço branco, recusando as imposições tanto dos Estados Unidos como da União Soviética, acenando a sua porta aberta para a China. Aliás, esta posição já era antiga. Recorde-se que ele mandara os chineses construírem o Grande Projecto Zambia Rail Ways (há uma foto famosa em que Nyerere visita este empreendimento austral).

 

Quando Mandela saiu da prisão, viajou de imediato  para Zâmbia para se encontrar com a direcção do ANC, no exílio, para eventuais  acertos  sobre as transições de poder e de reconciliação que se seguiriam; uma parte daqueles guerrilheiros tinha saído de Moçambique por causa dos Acordos de Incomáti. Lusaca e o iconoclasta Kaunda voltavam a ser a capital do lenço-branco.

 

 

Qual era a fonte desta convicção “nacionalista” de que as independências também se podem fazer em cima de um lenço branco? Kaunda lera e admirara-se profundamente por Gandhi, pela sua luta pacifista. De certa forma até tentou adaptar a non-violence politics às nossas condições afro-austrais de colonialismos e de regimes minoritários de racismos brancos, na África do Sul e da Rodésia. Hoje, como já foi especulado ontem, podemos dizer que ele queria agradar aos atenienses e aos troianos, ao mesmo tempo. O certo é que Kaunda soube estar e manter-se vivo até se tornar no último nacionalista a quem nós podemos mostrar à “geração da viragem”.

 

Como qualquer ser humano e líder, Kaunda, foi um homem com defeitos, controvérsias e outras nuances. Isso foi. Em plena onda multipartidarista, ele preferiu continuar a ver o seu partido independentista como o “único”. E pagou caro por isso: o Chiluba, perante a iminência do regresso de Kaunda às eleições e, talvez, temendo o triunfo do “histórico”, mandou instaurar um processo que o proibia de contestar as eleições por ser “estrangeiro” (nasceu de pais naturais de Niassalândia, Malawi). Uma certa teimosia, em defesa da “Soberania de Estado”, fez-lhe arrastar o povo por uma crise do cobre que, até hoje, a Zâmbia, ainda, tenta recuperar-se. Sofreu tentativas de assassinatos.

 

Mas uma coisa é certa: pelo facto do seu filho mais velho ter morrido de SIDA, continuou a sua luta nacionalista levantando o seu lenço branco contra esta doença e em prol dos zambianos. Com o seu lenço-branco foi a todos os funerais de seus antigos camaradas (Nyerere, Machel, Mandela, Mugabe, etc.) até que chegou a sua vez. Foi assim o último nacionalista de lenço-branco, o lenço da libertação e da paz negociada. Parte para a eternidade o percursor de Mandela, mas que soube fazer da sua Lusaca, a capital da paz.

 

KK continua um nome indefectível e embrenhado em nossas consciências, neste infausto momento. Não saberemos desvendar o que a eternidade o reserva. Todavia, temos a convicção de que KK perdurará como homem livre, insubmisso, fraternal e muito atento. Será sempre o fiel servo das memórias da sua revolução e dos movimentos revolucionários dos países vizinhos.

 

Com o lenço, este símbolo de Paz, Kaunda nos deixou três livros, nomeadamente The Riddle of Violence, A Humanist in Africa e Letter to my Children que agora vamos desfrutar com leituras e olhos diferentes. De uma coisa nós temos a certeza, a luta vai continuar!

segunda-feira, 21 junho 2021 09:39

Vou abandonar este pais

Nhambuli  está cansada de viver aqui, no seu próprio país, onde as pessoas, segundo ela diz, correm todos os dias e não chegam a lugar nenhum. Fumam cannabis sem parar, nas calçadas, na tentativa vã de atingir a felicidade na alucinação, e o que se vê  é a contínua degradação do tecido da carne e do espírito. O pior é que nunca mais amanhece, para se concrectizar a poesia de Jorge Rebelo, “Não importa que seja longa a noite/a verdade é que há-de amanhecer.

 

De que vale eu ter todos estes bens que alimentam a minha carcaça – desabafa Nhambuli – se aqui mesmo ao lado há crianças que dormem sem comer! De que vale toda a bebida refinada de que me disponho, se aqui mesmo as mulheres são violadas diante de toda a gente, as cerianças estupradas! De que vale tudo isso se as hienas não esperam que a gente morra para nos degustarem! De que vale viver!

 

Nhambuli é uma mulher de finos cristais por dentro, onde bate descompassado – mas firme - um coração de ouro puro filtrado pelo fogo. Admiro-a, sobretudo pela serenidade transmitida pela voz profunda, e pelo olhar perturbador. Também noto sem muito esforço que apesar de melancólica, ainda mantém a lanterna nas mãos -  no lugar das armas - a procura de outros caminhos que a possam levar a novas auroras.

 

Nhambuli venera o silêncio, por isso leva-me frequentemente – no seu carro - à praia de Guinjata, onde ficamos longas horas a ouvir a música ora tranquila, ora retumbante, interpretada pelas ondas do Índico. Neste paraíso nós somos meros mirones sexagenários, não propriamente frustrados, mas sem muita esperança. É por isso que Nhambuli diz repetidamente sem se cansar, vou abandonar este país!

 

Nhambuli nunca saíu de Inhambane, provavelmente seja por isso que de dentro dela nunca nascem farpas. Dentro dela há harpas que soam nas palavras e no olhar. Os olhos de Nhambuli cantam, ou ao pestanejar ou ao fixarem-se sobre algo como agora que contempla o Índico, agradecendo toda esta dádiva de estarmos aqui, quando muitos neste belo Moçambique, definham no desespero, sem nada para comer. É injusto!

 

Mas há uma orca dentro da Nhambuli, e Nhambuli não quer que essa orca sobreviva. Então, o melhor é fugir daqui – segundo diz nos intervalos dos goles de scotch -  no barco de Gilberto Gil, “vamos fugir deste lugar baby/Estou cansado de esperar que você me carregue”. Ela canta sempre essa poesia do Gil, sem celebração nos olhos, nem na alma, implantada na voz. Nhambuli é a rola que deseja ardentemente voar para outro horizonte, e deixar para trás esta noite que nunca mais amanhece.