Se eu fosse jovem viria para a rua gritar. Com azagaias em punho e tudo e escudos de pele. Revolveria as saiotas coloridas dos meus antepassados para proteger a virilidade de mim. Convocaria o corpo por inteiro para que as brisas das manhãs o revigorassem. Sim, faria isso se eu fosse jovem.
Se eu fosse jovem não iria dormir, nem de dia nem de moite, até que me devolvessem a minha praça, a “Praça da OJM!” , ora esplanada das tertúlias e da música em frente ao Cine-Tofo, também rebentado pelos temporais sem fim! Aquele lugar representa a borbulhante história das noites e dos finais de tarde, quando a utopia era o barco da vida. Era ali onde ao menos se acreditava que haveria um novo amanhecer, e isso já era bastante.
Se eu fosse jovem viria para a rua com todos os grupos de zorre e dançaria sem parar com o suporte do Mafanele, homem da arte jamais homenageado, mesmo tendo ele alimentado os convívios dos bitongas em noites de ostracização dos mochos. Eu faria isso, se fosse jovem, até que me devolvessem a minha praça, a “Praça da OJM, ora esplanada das tertúlias e da música”.
Se eu fosse jovem iria falar sem grilhetas nas palavras. O ilustre Guimino, edil da nossa cidade, iria ouvir as minhas canções de revolta, que eu próprio dançaria com o corpo em forma de águia. Iria transformar-me em águia. Ah, isso sim, seria uma águia, e voaria até ao Palácio do Daniel Chapo, e em voz de trovão rugiria: Chapo, manda parar aquelas obras que me ofendem bastante!
Mas já estou velho, rangem-me os ossos. Grito e a minha voz soa para dentro, ninguém a ouve senão eu mesmo. Tento dançar e os meus passos sossobram, a minha coluna vertebral quebrou-se na entrega à vida e ao trabalho e ao amor. E agora só me resta a dor de ficar aqui contemplando o silêncio da juventude que vai degenerando nessa porcaria do txiling.
Não, eu não estou velho! Recuso-me a ser trapo. É por isso que estou aqui com estas azagaias e escudos de pele dançando para guerrear. Trago as estrofes da minha fúria. A minha música é esta: Chapo, amigo, manda parar as obras que estão destruíndo a “Praça da OJM”. Guimino, amigo, vem cá fora e pára com aquilo! Que estupidez!
Voltei a passar em frente ao Gabinete do Governador de Inhambane, um edifício de fina arquitectura do tempo, cheio de lâmpadas na fachada, e notei mais uma vez que todo aquele cenário à volta, do qual já falei exaustivamente até não me cansar, continua o mesmo, sem brilho. Os dois aquários colocados no jardim defronte, projectado no sentido de oferecer à cidade uma paisagem esverdeante, e, consequentemente, trazer beleza e leveza, não têm peixe, o repucho deixou de aspergir água, e o bolor tomou conta de tudo. A estátua de Samora Machel, mal concebedida pelo arquitecto provavelmente coreano, agride violentamente o espírito dos apreciadores da arte, é uma obra deplorável, Samora não tinha pararício no dedo.
Naquele edifício trabalha o governador Daniel Chapo, pelo qual nutro uma grande simpatia. É um homem bom, mas também com o nome que tem, não tinha outra opção que não fosse praticar a honestidade e integridade. Daniel, profecta do antigo testamento, é muito atencioso e apegado a família, possui um senso maternal muito forte. É o tipo de pessoa que gosta de se sentir útil e necessário. Então, urge que o nosso “El Chapo”, como lhe chamam a brincar algumas pessoas, dê uma vista de olhos no “seu-nosso” jardim.
Passo por aqui sempre que vou à cidade, onde o silêncio tornou-se o refrão dos bitongas. E não posso voltar para casa sem chegar aos Caminhos de Ferro, cujas instalações estão em forma de escombros, não há esperança. Toda esta zona, a defunta serração que já ninguém se lembra dela nas conversas, nem do restaurante Maguluti do Dalsuco, onde conheci o Magid Mussá cantando o lado mais belo da vida, até hoje, com uma voz muito mais linda, se calhar melancólica como o canto das rolas ao final da tarde.
E é neste percurso em que sou levado pelos demónios do amor, que vejo um homem andrajoso entrado na idade, sentado no banco de madeira na Estação dos Caminhos de Ferro. Eu também sento-me ali, partilhando com um desconhecido, a memória do tempo. Há uma diferença aparente entre nós. Enquanto o ilustre desconhecido traja roupa mais do que carcomida e rota e suja e tem cabelo desgrenhado, eu visto calças e camisa de ganga e sandálias de couro, tudo limpo, sem me esquecer do boné que me proteje a calvice, mas as minhas roupas podem ser pura fantasia fantasia, o importante é saber como é que estou vestido por dentro.
Saudei hesitantemente o meu futuro companheiro de ocasião, e para o meu espanto, ele retorque: estás bem, Alexandre? Apanhei um susto como no dia em que Deus troveja numa sarsa tornada caixa vocal chamando pelo Moisés, e Moisés perguntou: que és Tu? E a voz que ressurge da sarsa, respondeu: Sou eu, o Deus de Jacob e de David e de Abrahama!
E eu também quis saber do homem que vocalizava o meu nome com carinho,“quem és tu, não me lembro de t!?“ e ele contraperguntou-me: lembras-te do Guipfodzo, teu vizinho na Fonte Azul?
Prestei mais atenção nele, mesmo assim não podia reconhecê-lo, a não ser o nome que me ribombava. Era o regresso às paródias de criança e de adolescência, ao amor e à verdadeira amizade, e tudo isso era luz.
“Não pagas uma garrafinha?” Fui com ele, o Guipfodzo, entrando pelos becos de Chalambe, onde me indicou uma gruta imunda onde se bebe thonthontho, e onde estão outros homens bebendo aguardente de jambalau e de cana-de-açúcar, sem olhar para trás.
E eu tinha uns trocados no bolso, com os quais paguei bebida a potes para o Guipfodzo e para toda a gente que estava alí. Bebi com todos eles, no mesmo copo que rodava na roda da frustração até ficar bêbado, e voltei para casa feliz, a cheirar no corpo o odor horrível do meu amigo, transmitido naquele abraço profundo de despedida.
Não me canso de percorrer o mercado Mafurreira, tenho-o entranhado todos os dias, quase todos os dias nas manhãs, sem procurar, no entanto, nada em especial a não ser a necessidade de rever as mesmas pessoas com as quais lido há anos, e assim, nas saudações que vão acontecendo quase mecanicamente, busco espraecer-me, mais do que querer comprar qualquer coisa. Todavia, vou notando em cada passo, que as minhas amigas deixaram de ser as mesmas vendedeiras dos tempos em que o negócio fluía, perderam o entusiamo.
Já são quase doze horas e muitas delas, a maioria, ainda não “fizeram” cem meticais. Outras nem sequer o mínimo que seria preciso para comprar pão para as crianças que esperam lá em casa, não há negócio. As pessoas passam nos corredores, apreciam os produtos colocados nas bancas, porém não compram, nem sequer perguntam o preço, o que torna o cenário ainda mais desesperador para as negociantes que podem voltar para casa de mãos vazias, e não poucas vezes, com os produtos deteriorados.
É triste querer comprar tomate, cebola e pimento, numa conta que não chega aos cinquenta meticais e ficar a saber que a senhora que me atende não tem troco, “nunca vi esse dinheiro desde que amanheceu”, e eram duzentos meticais que eu trazia. A companheira do lado também, sentada num saco feito esteira com as pernas flectidas e o corpo apoiado no braço, sem qualquer esperança, ainda não vendeu nada, e se vier a fazê-lo será com muita sorte. Então esta situação magoa.
Tivemos tempos em que as coisas floresciam. Havia muita conversa e risos no mercado, entre o movimento do dinheiro que entrava e dos produtos que saíam. O brilho no rosto das mulheres, que nos deixavam sentir o estado vivo da alma, ressurgia em cada gesto e isso era o sinal inequívico da aurora. Era assim, intensamente ao longo de toda a manhã, todos os dias, e aos finais de tarde quando os funcionários voltavam para casa e passavam por alí e enchiam o saco plástico para a alegria da família. Hoje não, o desespero é total, ninguém compra nada, não há “mola de impulsão”.
Os intervalos das onze para o “matabicho-almoço”, outrora passados quase em regabofe, com peixe frito, pedaços de frango, salada e pão, chá quente com limão, e bastante tagarelice para alimentar o coração, passaram a ser frustrantes e dolorosos. Há um silêncio na Mafurreira. As mulheres passam maior parte do tempo a dormir no chão sobre as capulanas sem sonho, ninguém compra nada.
Ainda no mesmo espaço temos as peixeiras que passam o tempo todo espantando as moscas sobre o marisco. “Compra, amigo! Se não tens dinheiro, leva, vais pagar amanhã! Mas essa condescendência toda pode significar que está-se no fim da linha, ou no princípio do fim da linha, e o peixe vai apodrecer, e se calhar nós também.... estamos a apodrecer!
Um país assim não tem esperança, não pode ter. O consumo de bebidas alcoólicas pela juventude em Moçambique atingiu o cume, bebe-se a descarada em todo o lado e a toda a hora, uma porcaria de bebida que está a levar, diante do olhar impávido do governo, milhares de jovens à loucura. Em muitos casos essas bebidas industrializadas que andam por aí, com fortes suspeitas sobre a sua qualidade, estão a matar, e matam pessoas de tenra idade que perdem a vida sem terem vivido.
Não sei como é que se explica que um governo inteiro como o nosso, permita a venda e consumo de “veneno” para destruir a “seiva da nação”. O que anda por aí em garrafinhas com nomes de rótulo como “Dinamite”, “Boss”, “Royal”, “Soldado”, “Tipo tinto”, é uma verdadeira promotora de chacina, mata aos poucos, o vício adquire-se imediatamente.
As mixórdias que enchem os armazéns e bancas e barraracas, tornando-se verdadeiras dinamites, são piores que a cannabis sativa, combatida ferozmente pelas autoridades policiais. A cannabis pode funcionar como medicamento, dela vai-se extrair o óleo de cânhamo, usado em alguns casos para combater o câncro, mas essas porcarias a que nos referimos, foram concebidas exclusivamente para matar.
A cannabis, no lugar de ser tratada como assunto criminal, ela é de forum social. Há camponeses que têm o hábito secular de “dar um shot” para ir trabalhar a terra, então não são criminosos. O assunto cannabis precisa urgentemente de uma outra discussão, talvez mesmo a nível do Parlamento. Mas quanto a essas “garrafinhas” que estão a massacrar jovens que vão morrer ainda imberbes, a posição do governo tem que ser radical para a salvaguarda da vida.
Entristeceu-se em tempos, ouvir uma governante de gabarito dizer que não se podia proibir a fabricação e venda dessa porcaria porque “eles pagam imposto ao Estado”. Então, em outras palavras, isso significa passar um alavará oficial para matar a nossa juventude, que efectivamente está a morrer aos pedaços perante o olhar impotente dos pais e da sociedade, e no final das contas do governo, a quem cabe a responsabilidade de nos proteger.
Mas os fabricantes e os agentes do Estado que promovem esta tragédia, podem estar a aproveitar-se das enormes fissuras que o nosso país tem. A juventude está desnorteada. Maior parte dela não trabalha, não tem ocupação. E nessas condições, torna-se vulnerável a tudo. Até as donzelas bebem isso e perdem completamente o controle de si, tornando-se, consequentemente, alvo dos oportunistas, caminhando também para a zona da morte.
É isso: amanhã podemos não ter homens suficientes para fecundar, pois, neste estado de coisas, esses “miúdos” nem força têm para subir uma mulher.
Estamos a voar sem escala no carrancudo 737 da LAM há mais de seis horas, numa viagem que devia levar pouco mais de 120 minutos, mesmo assim os comissários de bordo não páram de sorrir. A informação que temos é de que chove torrencialmente em Pemba, com descargas atmosféricas de grande magnitude. Apagaram-se as luzes da pista e de toda a cidade.
Mas porquê que não desviam a rota para outro aeroporto aqui perto? Também chove a cântaros em Nampula, com granizo em todo o lado, e na Zambézia os ventos que fustigam trazem poeiras de mau agoiro. E agora como é que vai ser? É só esperar, isto vai passar, não obstante a autonomia de voo poder estar em causa.
Estamos por cima das nuvens numa máquina cujo motor é imperceptível aqui dentro. Há um silêncio de morte no bojo, e deste modo pode ser que estejamos numa câmara de gás à espera de ser acionada pelos verdugos para que o cianeto goteje, e ainda assim trazem-nos taças de vinho em carrinhos leves para irmos bebendo, mas ninguém aceitou aquela bebida da cor de sangue, e eu então lembrei-me da música de Chico Buarque e Milton Nascimento “pai, afasta de mim esse cálice...”.
A minha cadeira está por cima da asa, que tremilica, e já atingi o limite do medo. Restam-me, todavia, as últimas reservas de esperança.
“Apertem os cintos por favor, estamos para aterrar no aeroporto de Pemba”! A ansiedade e o medo não desvaneciam, aumentavam. A voz feminina soava a música sinistra, provavelmente o comandante tenha decidido fazer o poiso sobre a própria morte, os pássaros morrem no chão. Ninguém sabe o que vai acontecer, mas seja como for, se for para morrer, já estamos mortos. Morremos todos os dias. Moçambique vive de morte em morte.
De qualquer das formas parece termos saído, após aquela voz cantante vinda dos altifalantes roufenhos que mais parecem megafones, da antecâmara do diabo. Pemba estende-se na plenitude aos nossos pés como um paraíso, entretanto essa vista será ilusória, Pemba treme em toda a placa. Senti isso quando saí do avião: todos olham para os passageiros que desembarcam com olhar profundamente inexpressivo como quem diz, o quê que eles querem aqui?
Neste momento em que chegamos, há muitos aviões que partem. De meia em meia hora uma máquina busca os ares, até não haver mais nenhum aeroplano para descolar, a não ser o “nosso” que igualmente vai voltar ao espaço daqui a pouco, com gente entulhada como no “My love” onde somos tratados tipo gado de abate.
Quando embarquei em Maputo, o meu plano era hospedar no Wimbe e ir desfrutar da vida no restaurante Dolphin, mas alguém, que está fugindo como os outros em massa, diz-me que o Dolphin está fechado, o Nazaré não está lá. Fugiu da chuva que penetra pelo tecto sem fissuras e janelas fechadas molhando tudo. O peixe conservado nas arcas ressuscitou e voltou para o mar ensanguentado. O arquipélago das Quirimbas está a tremer, as aves marinhas sucumbiram ao cheiro da pólvora e das baionetas e das facas.
Mas eu quero ir ao Wimbe, mesmo assim. Sentir a brisa no Dolphin e ouvir a música da natureza cantada pelas gaiovotas que não estarão nos galhos, fugiram inesperdamente, deixando para trás os mangais transformados em matadouros de homens. Então lá fui em contramão daqueles que deixavam o mítico Paquitequete, o Metuge e toda Pemba, e todo o Cabo Delgado.
No Dolphin não está ninguém, a não ser um homem longelíneo vestido de turba negra, que me estende a enorme bandeja de prata contendo uma cabeça humana acabada de ser decepada.
Eu ia receber a bandeja pensando tratar-se de cabeça de peixe, de xerewa. Afinal era um pesadelo, numa noite com temperaturas jamais sentidas em Inhambane.
Fui nascido com o firme propósito de reverberar com as mãos tenazes. A mulher que me deu à luz no chão, não sabia que com o andar do tempo eu estaria no cume, nem tinha capacidade de perceber que vinha ao mundo para levantar estádios inteiros. A minha missão era essa, mais do que defender as azagaias arremessadas com furor, fui escolhido entre muitos para ser o derradeiro reduto.
Ainda trago de Chimoio e de toda a província de Manica, aqui onde a vida é vivida segundo as parábolas, as lembranças de que o esteito dos matewe (tribo maniquense) era eu. Era em mim que se agarravam nas batalhas dramáticas do futebol, na esperança quase certeza, de que sobre mim ninguém vai passar. E na verdade era isso mesmo, eu serei a última esperança. A esperança infalível!
Diziam sempre, quando me vissem a passar pelas ruas de Chimoio, que a albufeira de Chicamba era eu, pois, segundo eles, sem mim não haveria iluminação no Textáfrica, mas isso era um exagero, Chicamba era toda a equipa, uma das melhores que Moçambique já teve em todos os tempos.
Mas todas essas memórias que hoje me vibram na alma neste lugar onde o futebol tornou-se música, não vão querer dizer mais nada, senão que a minha vida na terra foi uma outra forma de celebrar os sons e os batuques das vitórias, eu dançava na baliza. Ria me dos avançados que desciam em flecha ávidos de celebrar o golo, sem saberem que eu era o baluarte de Chimoio e que nas minhas veias vai circular com verve, todo o sangue dos guerreiros de Chimanimani.
Sou eu, o Zé Luís, o Gato! Rejubilo em todos os momentos neste lugar onde vivo a vida jamais imaginada e jamais esperada. Aqui nada é repetitivo, só existe o crepúsculo do amanhecer. Tudo é novo e reluz-se por si mesmo. É diferente dos dias das derrotas do Textáfrica, e da Selecção Nacional, que me entristeciam profundamente. Sobretudo aquela humilhação nos Camarões! E ainda alguém zombava de nós dizeendo: quem semeaia ventos, colhe tempestades! Mas eu já me esqueci desses vendavais que em determinados momentos tornavam-se em dilúvios.
Sou eu, o Zé Luís, o Gato! Apagaram-se em mim todas as dores, e agora passo a vida a planar, ouvindo de vez em quando a voz do João de Sousa gritando: que defesa espectacular do Zé Luis! E logo a seguir vejo o mar de gente enchendo o Estádio da Machava, ovacionando-me. Mas eu chorava sozinho, de emoção, sentindo os arrepios em todo o meu corpo e espírito, ao ser erguido pelo povo inteiro.
Pois e! Só vinha vos dizer isso, e pedir ao Textáfrica, agora que luta por se levantar outra vez, o favor de levar o canecão ao Monte Binga, como aconteceu em 1976. E para essa luta, contem comigo.
Sou eu, O Zé Luís, o Gato!
Virado para o mar, para sempre, o pórtico dos escravos guarda em silêncio as dolorosas memórias dos gemidos. Das torturas. Dos escárnios e das revoltas. Mas nem parece que será daqui onde vão partir sem regresso, os homens acorrentados e empurrados pelos açoites para o interior dos porões sombrios, sem sequer lhes darem a oportunidade de acenar pela última vez para as belíssimas paisagens em todo o percurso a partir da baía, passando por Mucucune e praia da Barra, com Linga-Linga à ilharga até ao Mar Alto, de onde a terra já não se vê.
Revisitei ainda esta semana, sem entusiamo, este lugar que fará da cidade de Inhambane inteira, um património da humanidade, e desta vez, em vez das dores vocalizadas dessa fase cruel das grilhetas, senti as canções cantadas em côro para celebrar a poesia. Então, os escravos estão vivos, despidos de mágoa e rancor. O que deixaram para trás cabe a nós preservar, não a eles.
Os escravos não carecem das nossas lágrimas, a quem gravita na órbita das luzes brilhantes do pós-morte não se chora, aclama-se como aos actores reais que usam os palcos como Céu, onde a dor não existe. É por isso que, passando por aqui hoje, não se sentem os arrepios dentro de nós, os escravos não estão mais onde jazem os cheiros dos seus corpos tatuados com ferro aquecido em fogo, eles já não se lembram disso, nós sim.
Mas não é justo que ao pórtico seja impedido o mar. O mar já não se vê a partir daqui. Barraram-no com construções que representam a anarquia e a desvalorização do belo. É como se eu estivesse a ouvir, passando por este memorial, as vozes dos escravos em torrente dizendo: derrubem essas barreiras por favor, queremos contemplar a nossa bela baía! Rebentem com isto! Liberdade!
Mas esses gritos não serão, comcerteza, dos escravos, são da minha imaginação, dos meus sentimentos, “Rebentem com isto!”. Os escravos já não reivindicam, jamais voltarão a materializar-se, eles agora cantam e dançam danças jamais vistas e cantam novas canções, diferentes das que entoavam nas plantações da prosperidade alheia, já não se lembram das feridas da carne e da própria alma agora livre para sempre.
Rebentem com essas construções em frente ao Pórtico dos escravos, porque queremos contemplar o mar e perscrutar os sons da história produzidos pelos pés descalços dos escravos chapinhando na água para terras de longe. O mar é a nossa poesia, é a nossa música. Então rebentem com isso, e deixem os escravos livres!
Fiquei feliz, eufórica como nunca, no dia em que o meu corpo descia para sempre ao depósito das ossadas. O centro era eu, de todas as vossas comoções. Senti o amor inteiro que tendes por mim, da mesma forma que acontecia em palcos infinitos, todos queriam me ver. E abraçar. E dançar comigo. Parecia que o sol nascia de novo depois de fenecer em noites de promessa e de loucura. Mas eu era erguida por vós. Oh, meu Deus, como foi bom! Obrigada!
Lembro-me que toda a av. Eduardo Mondlane na cidade de Maputo, enquanto era transportada a minha carcaça pelas ruas do povo, tornou-se palco também, igual aos espaços de música onde me colocavam como estrela que enloquecia a todos vocês. A “24 de Julho”, a Av. de Moçambique! Senti meu coração a engordar ao ver nos prédios gente espreitando e atirando flores imaginárias e beijos para mim, dizendo, hamba kalhe, Zaida (vai em paz, Zaida). E eu dançava em espírito, sem que me vissem.
Todos queriam testemunhar a derradeira partida do meu corpo, sabendo que nunca mais o veriam nos movimentos sensuais que serão o vosso delírio. Queriam tocar minha carne pela última vez, e na impossibilidade de fazerem isso, muitos penduravam-se nas árvores do cemitério à volta do sepúlcuro e choravam lágrimas de amor como se eu fosse a deusa deles. Outros ainda, em vários cantos da cidade e do país, em cachos humanos, deixavam minha música tocar em aparelhos de vários tipos, resignados perante algo irreversível. O meu corpo é irreversível.
Mas a culpa de toda esta glória da qual desfruto hoje, é do Carlos Lhongo, meu marido, rendido ao encanto da minha postura em palco e do meu corpo esbelto feito para se desembrulhar por inteiro na dança, sem preconceitos. A minha vocação não era o microfone, era o chão que sempre vesti com os pés nus, porém acabei cedendo ao chamamento do Carlos que dizia, Zaida, daqui para frente vais cantar e dançar. E eu disse que sim. “Se você quer que assim seja, eu também quero que assim seja”.
Agora é que percebo que a música não é escutada em função da língua ou da sua origem, música é música, em todo o lado, basta que ela nos penetre o coração. É como a dança, quando é bonita será celebrada. Se assim não fosse, então eu não seria aclamada em Pemba, em Nampula, em Niassa, em Tete, na Zambézia, em Sofala, em Manica, onde não entendem a minha língua. Mas todos desejavam ir aos palcos onde eu estivesse, não queriam me perder.
E hoje sou uma mulher feliz, tão feliz como quando estava imbutida no meu corpo sem limites. Estou no cosmos insondável onde não há gravidade, vivo leve como a pluma que não poisa. Exulto sobretudo quando me lembro das noites soberbas em que ninguém queria que amanhecesse.
Sou eu a Zaida Lhongo, vossa maluca. Os vossos aplausos eram a minha rampa, faziam-me voar. Cada vez que me ovacionassem, eu ficava mais maluca ainda, então a culpa não é minha, é vossa.
Muito obrigada a todos.
A primeira impressão que tenho dele, ao vê-lo, é de que estamos perante uma figura frágil, pela forma como se move pisando a terra na vertical. Fica-nos a imagem de um taciturno. Um indivíduo com medo de avançar. Ele tacteia o chão com a perna direita que baila no ar antes de assentar a leve planta do pé. Dança hesitante uma dança desconhecida, em contraste com a voz límpida onde mora toda a sua alma. Aliás, é com a voz timbrada que combate todas as vicissitudes, e leva os delírios dos estádios à todos os cantos das nossas casas. E a todos os lugares.
Mas também com o nome de João, tinha poucas possibilidades de não luzir, e ele fez isso, como se as auroras lhe pertencessem. João de Sousa é um megafone elegido, através do qual vamos receber todo o turbilhão dos campos de jogos, que agora voltam a vibrar depois do silêncio após o último suspiro de uma estrela que nunca descansou. E se a vida é inesperada, então a própria morte também o é. Como agora, que ruíu para sempre esse pilar que sustentava na sua medida e peso, a plataforma do desporto nacional.
Os xiricos e os grundigs e os philips, derrubados pela tecnologia imparável, lembram-se com certeza, mesmo nas catacumbas, da voz do João de Sousa. Ele vibrava com as multidões que foi alimentando durante tempos sem fim. Como se cada relato fosse o último, ou o primeiro, numa longa jornada de vida levada na intensidade. A sua arma era o microfone, funcionando como escafandro na penetração das peripécias do jogo. E tudo o que ele fazia, passava primeiro pela filtração do fogo, como o ouro que se pretende puro.
É esta a figura que excedeu os limites, mostrando igualmente, a par do conhecimento profundo sobre o desporto, a sua desmedida paixão pela música. Pela boa música. E nunca será repetitivo dizer isso, pois, programas como “O fio da memória” e “História das Músicas”, trazem-nos uma pessoa culta e preocupada em renovar as memórias. Ele tinha medo que a juventude se perdesse, por não saber de onde vêm estes ventos todos que fundamentam a arte e a cultura. Não queria ser cúmplice da falta de testemunho.
Agora cabe-nos prestar vénia ao homem de convicções inabaláveis. Que se recusou a abandonar os mares, pois sem as águas, as guelras do João de Sousa deixariam de insuflar oxigénio para alma. Haveria a morte por dentro. É por isso que estava sempre alí, no centro social da Rádio Moçambique onde se juntava aos amigos, aos velhos amigos, atraindo também a juventude que queria ser como ele. Eram as pessoas e os jogadores e os amantes do desporto que lhe faziam viver, como se estivesse no marulhar dos grandes estádios, onde a sua voz de ouro misturava-se com o entusiasmo das multidões.
João de Sousa, um facebookista generoso, nunca se cansou de nos lembrar os feitos de grandes figuras do desporto e da cultura, e também da política. Esse gesto deixava-lhe com o coração cheio. Os likes e os comentários que recebia de inúmeros facebookistas que lhe seguiam, eram o sinal de que a vida só é bela quando a partilhamos. E João fazia isso com alegria. Com entusiasmo. Com engajamento. E continuou a fazê-lo mesmo estando no derradeiro desfiladeiro da vida, sem saber que estava.
Quando ele partiu, para sempre, era como se o estádio da Machava estivesse abarrotado no tempo dos Xiricos e dos Grundgs e dos Philips, aplaudindo um jogo que vai começar daqui a pouco. Os que não puderam ir estão em casa colados aos receptores, ansiosos, e no estúdio da Rádio Moçambique está um locutor que chama: alô João de Sousa, alô João de Sousa! E o relator não consegue entrar em linha, há um problema de retorno. Alô João de Sousa, alô João de Sousa! Nada!
Os técnicos que estão no campo, e outros técnicos que estão na sede, entram em pânico porque não conseguem ouvir do outro lado a voz do João. Alô João de Sousa, alô João de Sousa! Também nada!
O ambiente do público é que triunfa: hooooooooooo!!!! Hooooooooo! Mas João de Sousa, nada! Os técnicos insistem e....nada! E o jogo já decorre há meia hora, intenso, com a nossa selecção a ganhar por duas bolas a zero.
Alô João de Sousa, alô João de Sousa! Até que o relator, finalmente, passado o tempo de sofrimento, responde quando decorria o segundo tempo: Boa tarde estimados ouvintes! Faltam dez minutos para terminar a partida, Moçambique ganha por duas bolas a zero. O estádio está completamente cheio, com pessoas penduradas nos postes de iluminação. A nossa selecção está endiabrada. É indiscritível o que está a acontecer no Estádio da Machava......
Apesar de nos dizer que é indiscritível o que está a acontecer, ele descreve tudo de forma detalhada, numa situação em que o tempo não lhe dá muito pano para mangas. O juiz apitou pela última vez, permitindo a que João de Sousa gritasse: termina a partida! Moçambique ganhou por três bolas a zero!
Mas o guerreiro deixou as armas cá fora para quem as quiser aproveitar. O cheiro do João de Sousa impregna-nos como país, que ainda tem muitos golos por marcar. Ainda teremos muitos jogos por realizar, com a voz do João em “off” na memória. As músicas do “O fio da memória” e de “História das Músicas”, iremos cantá-las nas madrugadas em que já não seremos nós os ouvintes, mas o João que nos escutará no silêncio do pós-atmosfera. Também os pavilhões de básquetebol ressurgirão sem o João, lembrando as noites de glória. Era o João que gritava: sacôôôôôô!!!!!!!
*Texto em homenagem a João de Sousa, pela pasagem dos quatro anos após a sua morte
Mas o que retornou ao pó de onde veio é a minha carne, não sou eu. Eu continuo viva em espírito, levitando nos mesmos palcos que fizeram de mim a parte pequena da luz do universo. Estou nesses escaparates em silêncio, sem dizer nada, mantendo porém o entusiasmo e a euforia dos tempos em que, como uma das pétalas do Eyuphuru, esvoaçava com alegria, usando a minha voz de passarinha matinal. Não me canso de agradecer aos briosos rapazes macuas que me encontraram na rua sem direcção e disseram, Zena, venha connosco!
Vivi os momentos mais felizes da minha vida, amalgamada numa banda alimentada por búzios de Muhipiti, parecia eu o motor, mas não, o motor era o próprio Eyuphuru, então esses rapazes eram a minha catapulta, sem eles jamais seria alguma coisa.
Recordo-me ainda das actuações inolvidáveis que fizemos no Mundo, com batuques e violas acústicas, aplaudidos sem parar pelas massas populares que vinham até nós, de vários cantos, atraídos pela nossa perfomance e pela voz do Gimo e da minha também. O Eyuphuru colocava-me como a estrela deles, são eles que me davam a luz, como o sol que faz isso à lua. Na verdade a luz que acendia em mim não era minha.
Hoje estou aqui de novo para agradecer ao Eyuphuru, não me canso, é por isso que sou feliz. Quando eles vão aos palcos, agora que sou uma galaxina, vou também e fico em silêncio ouvindo tudo e no fim do espectáculo recuso-me a ir com eles aos camarins, desço ao chão da plateia onde me junto ao mar de gente e ovaciono juntamente com aqueles que sempre nos aplaudiram. E como tenho esta possibilidade, aclamo também o Gimo Remane lá longe.
Sou eu, a vossa paixão, que um dia teve o privilégio de ser um poço elegido, ao mesmo tempo uma passarinha, como é bom! Afinal o meu corpo não passava de uma carcaça onde minha alma morava! Mas passei toda a vida cuidando dessa carne agora putrefatacta e tornada banquete dos vermes, com banhos diários e perfumes e batons e cremes, para que houvesse nela o brilho. Porém isso não me entristece, sem o corpo que me acolhia, não teria sido conhecida por vós.
Agora estou aqui em cima ouvindo música sem fim, e cantando também em coros transcendentais no seio dos meus antepassados e dos anjos anunciados. Os movimentos que aqui se fazem são comandados pelas harpas e cítaras e solfejos. E tudo isso faz-me lembrar os tempos áureos do Eyuphuru, é por isso que vim hoje para dizer Ochukuru!