Ainda fui a tempo, no início da carreira jornalística, anos oitenta até finais dos anos noventa, de ouvir histórias de tirar o cabelo, de electrizar um ser humano normal. Foram muitas e de diversa índole e que, de alguma forma, habitam no meu imaginário - alicerçadas, com efeito, em muito semelhante ao que vinha ouvindo desde a infância lá nas terras interiores de Chibuto. Uma rezava que um ministro visitou um certo distrito no âmbito das suas atribuições governamentais. O administrador mandou organizar uma recepção à altura do responsável que ia receber, como de praxe: uns grupos culturais locais. De facto, mal os carros da comitiva pararam e o chefe saiu da viatura, os grupos culturais puseram-se a fazer com mais intensidade o melhor do que sabem: batucadas, cantadas e dançadas, bastante bem harmonizadas. Um dos grupos tinha cobras que condimentavam a sua coreografia. Cobras vivas. E eis que o maestro se abeira do chefe, pega numa das cobras que tinha no seu próprio colo e enrola-a no do chefe. O chefe foi “homem”, não colapsou. Mas confessou, mais tarde, que esteve fora de si naquele e nos subsequentes momentos, tremendo foi o susto que apanhou, apesar de a cobra não ter feito muitos movimentos. Percebendo que o chefe estava bastante assustado, o administrador tratou de orientar ao maestro para tirar a cobra do corpo do chefe. Doravante, o ministro passou a andar menos pelos distritos e confessaria que aquela cena vive com ele no seu imaginário!
Histórias destas existem às milhentas, quer tendo como personagens principais administradores e ou governadores, quer directores nacionais. O querido leitor certamente que terá muitas mais ainda… - e pode acrescentá-las na versão do Facebook deste artigo.
Ouvíamos, igualmente, de administradores distritais que só iam dormir nos palácios passado bom tempo após a nomeação, seis meses ou ano, ano e meio. Não me perguntem ‘depois de, eles próprios, terem feito o quê exactamente’. O que se conta são mil e uma coisas: ou que durante a noite ouviam sons estranhos, ou gente conversando, multidão barulhando, por vezes cantando, ou andando, marchando; ou ainda cavalos ou burros galopando à volta da casa; para além de frequentes visitas nocturnas de animais selvagens, incluindo cobras, mas, dia seguinte, não se via uma única pegada de nada. Por tudo isto, não ocupavam de imediato os palácios, viviam nas casas de hóspedes por um período indeterminado... Mas também existem histórias daqueles responsáveis que não vão directamente ocupar os gabinetes dos predecessores, trabalhando a partir de outras salas; ou que mandam mudar todo o mobiliário na sala do antecessor...
Estas histórias (ou estórias) não surpreendem assim tanto para muitos de nós que crescemos a ouvir coisas e coisas do gênero. Por exemplo, crescemos a ouvir que para se ser rico, ter-se êxito na vida, em todas as áreas, era/é preciso “khendlar” (ir a um curandeiro ser tratado para tal). Na nossa filosofia bantu, aparentemente o sucesso não decorre de procedimentos metodológicos rigorosos, científicos, racionais, eficientes; mas, sim, de ter sido tratado por um grande curandeiro. Na nossa tradição, a ciência, ela sozinha, não leva ao sucesso, mas um excelente curandeiro sim. Muitos, até hoje, ainda acreditam nesta abordagem. Mesmo com o avanço da educação, da ciência e da tecnologia, há os que continuam amarrados a este pensar.
E, geralmente, dizia-se que os melhores curandeiros são os de longe e que os locais são aqueles “santos da casa”, que não fazem milagres! Foi assim que fomos ouvindo de locais bem distantes como os que tinham os melhores curandeiros, os mais, mais. Sítios como Panda Mudjekene, Funhalouro, Chigubo, Mabote, Mussapa, Inhassoro e …Govuro!, estão entre os locais com os melhores curandeiros. Dizendo simplesmente Govuro, pode passar despercebido a muitos; mas dizer… Mambone, já toda a gente fica em sentido! Mambone figura no top, fala-se dos maiores curandeiros da terra… com o seu famoso Nengue wa nsuna (pé de mosquito), que faz todos os milagres que o paciente quer - ser rico, ser saudável, conseguir não sei mais o que... E mais: a força/fama que Mambone tem, o medo que se tem são tais que só mencionar que… “já esteve em Mambone”… confere outras valências, consideração ou tratamento.
Sobre Govuro, aliás, Mambone, fala-se de curandeiros para cuja casa não precisa de guia, basta se decidir por ele, apanhar autocarro e descer na paragem certa, alguma coisa vai-lhe guiar até lá! E terminado o tratamento só sai estando o curandeiro satisfeito! Fala-se de outros em cuja casa só entra mediante certos rituais e que paga o tratamento com “catorzinhas”, tendo ele já uma quantidade incontável de “mulheres”; ou de uns outros que, gostando da paciente (mulher que pretende o tratamento), torna-a esposa, no lugar de a tratar e deixá-la ir para a sua vida! Fala-se de tudo mais alguma coisa…
Foi assim que conhecer Mambone ficou uma obsessão. Não para ir ao tratamento, khendlar, mas para ir compreender um pouco mais a dimensão humana, a abordagem da vida que torna as pessoas ricas sem trabalho árduo, mas através de magia. Nunca consegui oportunidade. Contudo, há dias, fui dar a Mambone - a famosa Mambone - e, depois, a Nova Mambone! Bem gostaria de ter ido a casa de uns tantos desses curandeiros famosos, conversar com eles, entrevistá-los, reportar o ambiente diário que os rodeia, entender a lógica, a vida deles e registar em obra. Mas… fica a consolação de ter conhecido Mambone, o famoso Mambone. Um dia… talvez!
Mambone que, afinal, em termos de geografia natural, física, é uma terra, com tudo o que uma terra normal compreende, pesem as suas especificidades, famas, complexidades, particularidades e riquezas em, entre outras coisas… curandeiros destros, exímios e famosos!
ME Mabunda
A informação começou como boato vindo de lá do norte, como aqueles “ventos que sopraram do norte”; ninguém a assumia - estava a ser difícil encontrar-se candidatos a candidatos. Isto ainda no período de pré-selecção. Todo o mundo teve que ligar para Nampula, para saber quem eram os candidatos, afinal. Eu próprio tive que ligar para o João, meu amigo de longa data que lá trabalha e bem posicionado. Ele confirmou o que andava nos documentos oficiais, que os candidatos a cabeças de listas eram aqueles que vinham nas listas e que tinham sido divulgados. No entanto, o parto estava a ser à cesariana… depois, confirmou-se: aos candidatos das bases, a direcção tinha imposto um nome, o do actual governador, eleito em sufrágio universal. E, quando parecia estar tudo encerrado e fechado, eis-nos diante daquilo que começou por ser o segundo boato… também vindo do norte, claro!
O eleito com 100 por cento dos votos não queria/quer ser o candidato! A princípio, como na primeira situação, quase ninguém tinha a informação; depois, pouca gente conhecia. Ninguém a assumia, muito menos confirmar, mas também ninguém a desmentia… até que um jornal ousou colocar a informação em manchete: Manuel Rodrigues não quer ser o candidato do seu Partido na cidade de Nampula. E citava as “tradicionais fontes anónimas”. O que credibilizava aquela informação é que o referido jornal tinha abordado dirigentes de proa que não desmentiam, embora também não a confirmassem!
Mas mesmo depois de ser pública, a informação continuou órfã de fonte assumida e de confirmador! E no seio do partido reinou e reina, até hoje, uma incredulidade de bradar aos céus. Ninguém acreditou e há os que continuam sem acreditar. No entanto, continuou-se em surdina a trabalhar-se afincadamente, entenda-se, a buscar-se sorrateiramente um outro candidato para a substituição forçada pelo jogador. Em surdina também se preparou a segunda conferência electiva, até que… ela se realizou e outro nome foi consagrado. Digamos que a notícia sobre a indisponibilidade de Manuel Rodrigues para cabeça de lista na capital provincial nampulense foi uma notícia sem fonte, sem confirmação e muito menos objecto de comunicação oficial.
Esta ausência de comunicação oficial mostra claramente o quão melindrosa é/foi internamente a questão. Em surdina também, vai-se mandando recados a Manuel Rodrigues e a outros membros internamente: ora que na nossa gloriosa ninguém recusa tarefas, ora que ninguém é mais forte do que o partido; ora que a disciplina partidária foi beliscada, que é o prelúdio da indisciplina… ora, ora, ora!
Pode, sim, a disciplina partidária interna ter sido quebrada. Mas, há um valor humano supremo que deve (ou devia) falar, sempre e sempre, mais alto: a consciência própria do indivíduo. O que a nossa consciência nos diz sobre um determinado facto, fenômeno ou realidade. Eu sou apóstolo de que a consciência do indivíduo deve falar mais alto do que tudo em que nos envolvemos.
Desconheço em absoluto as razões que leva(ra)m Manuel Rodrigues a abdicar da posição de cabeça de lista - e sejam quais forem, não vêm ao caso -, acredito que a sua própria consciência falou mais alto. Assim sendo, sou de tomar boa nota da atitude do nosso compatriota. Considero esta ser uma lição a ter em conta na nossa vida moçambicana! Na nossa cidadania e no nosso dia-a-dia. Se assim procedêssemos, obedecêssemos às nossas consciências, teríamos, de certeza, um Moçambique diferente!
Milhentas de vezes, vemos compatriotas a aceitarem realidades inaceitáveis, a aceitarem tarefas inaceitáveis, a aceitarem responsabilidades inaceitáveis. Outrossim, e não menos vezes, a aceitarem e assumirem tarefas, responsabilidades e incumbências para as quais NÃO estão preparados, NÃO se acham capazes. Sabendo que não têm competências, nem capacidades para uma certa tarefa, as pessoas assumem… escudando-se na teoria de disciplina partidária e ou irrecusabilidade de tarefas recebidas.
E esta atitude tem tido as consequências que todos nós conhecemos: fracassos atrás de fracassos, maus desempenhos atrás de maus desempenhos. Perde o compatriota que aceitou o cargo/tarefa para o qual não está capaz, correndo o risco de sair pela porta pequena e com a sua carreira, honra e prestígio beliscados, perde o país, perdemos todos nós.
Julgo esta ser uma boa lição de Manuel Rodrigues. Ele começou! Vamos aprender com ela. O que nos dita a nossa consciência… é o que deve prevalecer: sagrado isso. Não podemos/devemos ir contra as nossas consciências, assumir tarefas para as quais não sentimos capazes, sob o risco de morrermos vivos - e matarmos a nossa sociedade, retardando o seu desenvolvimento!
ME Mabunda
Estavam criadas todas, mas todas mesmo, as condições para ser um dia bastante memorável na palhota dos Cossa. O pai da família, a esposa, os filhos e suas namoradas tinham combinado visitar a nossa Feira Agro Comercial e Industrial de Moçambique (FACIM), na sua designação inicial, que se mantém até hoje, sábado e, depois disso, sentarem-se, todos juntos, almoçarem, pôr a conversa familiar em dia e reforçarem os laços! A feira estava a correr, todos tinham disponibilidade, curiosidade de ver e conhecer o que lá estava a ser exibido e estômago para degustar certas iguarias, como a tilápia que lhes tinha sido recomendada por um amigo - todos os condimentos reunidos para um dia especial.
No entanto, nem sempre vence o provérbio segundo o qual “querer é poder”!
Primeira contrariedade é que, por volta das 11 horas, começaram a circular nas redes sociais mensagens segundo as quais as portas da nossa maior exposição nacional estavam encerradas por conta de um programa superior que duraria até às 13. Os dois chefes de estado - o nosso e o de Gana - iam visitar a exposição. A indignação tomou conta dos Cossa. É/era mesmo necessário fechar as portas ao público?!… já ouvimos falar de chefes de estado que visita, eventos e eventos, mas, mandar vedar ao público… afinal, o objectivo não era bater o recorde de 50 mil pessoas a visitarem a FACIM-2023? Orgulho para todos nós! Se sim, como é que se ia bater tal recorde com… restrições desta envergadura! O sábado, que as pessoas tinham reservado para “perderem” todo o seu tempo lá, como o fizeram tradicionalmente, desde a fundação do evento, vendo e conhecendo coisas de outras e muitas realidades e culturas do seu país e de outros que lá se fizeram presentes, num total de… 26!?… Pareceu uma medida completamente insensata, mas… como se diz, manda quem pode! No entanto, veio-se a saber que, afinal, tal ordem não era “superior” como muitas outras… era dum boisse aí pelo meio e mandou-se cancelar. Mas a confusão já estava decretada, em curso e a florescer.
A segunda, maior e mais dramática, foi o acesso. Que se saiba, o trajecto para se chegar à FACIM é, necessariamente, a EN1-Cruzamento da FACIM e virar-se à esquerda ou à direita, consoante a proveniência. Da paragem do bairro Agostinho Neto até ao cruzamento, levava-se cerca de uma hora e meia naquele sábado. Durante perto de 40 minutos, os carros que pretendiam entrar para a feira não se moviam meio centímetro… Passado esse tempão todo… uma escolta militar imponente, sumptuosa, com todos os sirenes e tudo, lá veio da FACIM e fez-se à EN1 - precisamos de tudo isso? Todos respiraram de alívio, mas… o calvário só prosseguiu. Os polícias de trânsito, no lugar de permitir que os automobilistas seguissem pela ruela que dá acesso à feira, mandaram todos fazer u-turn para os que vinham da cidade de Maputo, com a indicação de irem entrar pela via de saída! Que tamanha enormidade. Lá seguiram os carros e, na arenosa via, vieram mais dissabores: estrada estreita, de areia, rural, de… terceira, mas os carros, uns atrás dos outros, tinham que se cruzar certos a saírem e outros, muitos, a entrarem; e as viaturas ligeiras, de pequena cilindrada e sem tração, iam ou “sentando” no chão, ou… enterrando-se. Pior, foi quando se chega ao último troço, rente à entrada. A confusão entre viaturas que vinham e as que iam era total! TOTAL, agravada com os enterros que a estrada arenosa ia proporcionando! O QUE CUSTOU (CUSTA) PAVIMENTAR A ESTRADA RURAL DE SAÍDA DA MAIOR FEIRA DE MOÇAMBIQUE - desde que foi transloucada da cidade de Maputo? Uma FEIRA NACIONAL!…
De modo que, das 11 horas programadas para começar o programa dos Cossa, só conseguiram acesso cerca das… 17 horas! E os filhos e respectivas namoradas, 18:40!… Cossa e esposa, que tinham conseguido chegar primeiro, ainda foram ver às correrias este mais aquele pavilhão, mas não completaram, era impossível completar àquela hora. Aos rapazes, que chegaram depois… ainda que tenham entrado, porque tinham que inutilizar os bilhetes, não lhes foi permitido ver… nada de nada. Em todo o lado por onde passavam, “já estamos a fechar”… era-lhes dito pelo pessoal dos stands, que, ao mesmo tempo, já desmobilizavam os materiais.
Porque cabia aos pais encontrar o local para o almoço em família, Cossa e esposa tiveram que interromper a visita aos pavilhões. Tinha-lhes sido recomendado para irem saborear a tilápia num restaurante dentro do pavilhão de um ministério. Agoiro: “Já não temos tilápia… já não temos nada, estamos a fechar!” Estas palavras iriam ouvi-las por todo o percurso… Desceram para os restaurantes da parte baixa… mesmas palavras! Subiram para os de entrada, que pareciam mais luxuosos, mesmíssimas palavras! E estava-se por aí 18:40…
Grandiosíssima indignação: sábado, como é que às 18:30 horas os restaurantes já não tinham comida e estavam a fechar na FACIM, a maior e mais importante exposição nacional? Não era suposto funcionarem até às tantas, em se tratando do último dia? Algo errado não está certo. Se calhar, a velha questão da localização da instituição e sem transporte efectivo. É esta a FACIM que queremos?!… Pondo melhor: esta é a FACIM que não queremos? Custa organizarmos um evento de excelência? Top. Sem máculas?!…
E tudo o que era um programa de uma família foi por água abaixo! E quantas famílias?
ME Mabunda
Graças às férias de passagem do segundo para o terceiro trimestre do ano escolar, foi-nos possível reencontrar o antigo colega Crisóstomo Júlio Dumangane na Escola Secundária de Chókwè, nos anos 1981, 82 e 83. De certeza que alguns dos colegas não se lembrarão de Crisóstomo Júlio Dumangane, mas, sim, e muito facilmente, do Mendoza Colt! Resultado de muitas leituras de livros de cowboy, o Crisóstomo Júlio Dumangane adoptara o nome do grandioso personagem policial Mendoza Colt. Não só adoptara o nome, mas quase todo o modo de vida, estilo e ser daquele actor. Não só ele, alguns de nós também, mas a isso iremos mais adiante.
Terminara eu a leitura do livro O cheiro da chuva - um contributo importante para o entendimento da nosso história imediatamente a seguir à nossa independência - e quase obrigava o Júnior a lê-lo de seguida, durante os seus quinze dias de férias, ao que me responder que não podia porque o seu professor de português lhe mandara ler o Jesusalém de Mia Couto. Júnior está na 12a classe numa das escolas da capital. Fiquei curioso de ouvir isso, porque é como nós estudamos. Os professores de português sempre nos mandavam ler qualquer coisa nas férias e depois fazermos o resumo num caderno próprio - tínhamos três cadernos, um de apontamentos, outro de resumos e o terceiro para escrever qualquer coisa, como poesia, conto, uma história. E então pergunto ao jovem quem é esse seu professor de português que lhe mandou ler Mia Couto. “Crisóstomo Júlio Dumangane!” - respondeu.
Desatei a rir e a bom rir ante o espanto do filho; muita coisa estava explicada: foi meu colega de escola e passamos pelos mesmos processos. Depois, recomendei-lhe que num desses dias fosse dizer ao seu professor de português que “papá lhe manda cumprimentos”. Reportou, o Júnior, que, após lhe dizer o nome do seu pai, também ele, o professor Crisóstomo, riu-se a bom rir. Estavam criadas as condições para o reencontro com o Mendoza Colt, aliás, Crisóstomo Júlio Dumangane! Voltemos a Chókwè!
Cada um vindo de onde vinha, em 1981, muitos alunos foram dar a Chókwè para prosseguir com os estudos na Escola Secundária de Chókwè. Calhou todos a vivermos no centro internato. Por aí 200 estudantes. No internato, havia camarata para os alunos e outra para as alunas. A camarata dos rapazes estava em forma de L. Na parte baixa do L, estavam os beliches do Crisóstomo, Isaías, Pedro e o Ombe. Esta parte do dormitório era chamada de… Califórnia, a terra dos grandes cowboys, e o Crisóstomo Mendoza Colt…
Durante os três anos, o Centro Internato de Chókwè conheceu um dinamismo jamais vivido. A própria cidadezinha conheceu uma intensidade diferente, era a primeira vez que recebia tamanha quantidade de estudantes oriundos de quase todos os distritos da província de Gaza, incluindo de Xai-Xai, a capital, e não só: havia também gente de Maputo e outra do centro do país. Por conseguinte, havia todo o tipo de estudantes e pessoas ali. Bem comportadas umas, mal outras, assim-assim outras tantas ainda; tudo havia lá. Alguns de nós gostavam muito de leitura: trocavámos entre nós livros e livros e íamos à biblioteca distrital levantar outros e/ou… “roubar”. “Roubamos” livros! Aproveito pedir desculpas à sociedade, pelo grupo todo; aquele “roubo” não era/é comum, decorria da avidez de saber um pouco mais… de toda a forma, era roubo e dele nos penitenciamos... Mas também fugíamos frequentes vezes para o cinema, à noite, no clube, o que nos valia punição severa da parte do chefe do internato Sondo, sempre que descobrisse.
Líamos a bom ler alguns de nós; devorámos a colecção 6 Balas, a colecção Vampiro, etc., etc. Identificávamos o herói e/ou as personagens principais; admirávamos-lhes as acções e bravuras e fervilhávamos por dentro. Entre os que gostavam de ler a sério, contavam-se o Crisóstomo Dumangane, o Paulito Tete, o Rui Nhanzilo, o Israel (os três já falecidos, que Deus os tenha), o Leitão, o Lopes (eu, este era o nome que me tinham dado), o Pedro, o Catine, o Germano, a Mondlanita e poucos mais; nem todos os alunos liam (perdão aos que não mencionei). Isto tudo criou em nós uma competência comunicativa acima do normal, que se traduzia em boa performance na disciplina de português e no à vontade em quase todas as situações extra-aulas. E isto, por seu turno, criava-nos outros problemas, quais sejam, chefes e docentes sentirem-se de alguma forma afrontados e alguma inveja de colegas…
Mas, além de competência comunicativa, linguística, acabamos também adoptando atitudes e comportamentos dos cowboys, até hoje. O Crisóstomo, o Pedro e os falecidos Paulito e o Rui destacavam-se por andar quase sempre, todo o dia, fizesse frio ou calor, de sobretudos (gabardines), com aqueles chapéus de abas grandes, justamente ao estilo dos cowboys de… Far West! Eu e o Baluine (nome também cunhado dos romances policiais que o falecido Israel adoptara) acabamos apaixonados pelos chapéus dos cowboys, esses de abas grandes, até hoje. Mais do que as vestes, os nossos comportamentos caminhavam para o “cowboyismo”: destemidos, mais ou menos bem elaborados, activos, um pouco agitadores. A agitação no internato foi tal que alguns de nós acabamos expulsos por atitudes incorrectas, outros suspensos e outros ainda mandados trazer os encarregados de educação; mas conseguimos fazer a última classe da escola.
Marcámos uma fase da Escola Secundária de Chókwè. E esta será para sempre a nossa segunda cidade: temos um grupo de WhatsApp a que chamamos de FORJADOS NO CHÓKWÈ… Terminada a nona classe, cada um de nós foi enviado para diferentes frentes, como era prática. O Crisóstomo foi para o professorado e nós outros para outras coisas. Assim, perdemo-nos ao longo destes 40 anos! O Mendoza lecionou em Xai-Xai, depois na Macia e Manjacaze e, agora, na cidade de Maputo.
Foi assim que nos reencontramos - não todos, ou com a maioria, como seria de desejar, mas o Crisóstomo, o Pedro, o Germano Mutane, o Justino, eu, o Pedro Chauque, o grande David Bila e a Ana Paula Cardoso numa casa de pasto por aí e… matamo-nos e matamos as saudades e saudades de Chókwè, de nós mesmos e do “cowboyismo”, na companhia de uns bons copos de vinho!
O Mendoza Colt continua aquele falante fino de português, mas voltou a Crisóstomo Júlio Dumangane!
Uma vez mais, a apreciação, debate e aprovação da lei sobre o Fundo Soberano pela nossa Assembleia da República foi adiada para… mais tarde, não se sabendo se será na próxima sessão ou não. A primeira proposta deste instrumento legal foi desenhada no início do segundo semestre do ano passado e esperava-se que na sessão de Outubro do mesmo ano fosse à apreciação e aprovação, dado que em Novembro iríamos receber os primeiros dividendos da exploração do gás, o que não aconteceu. Muitos, incluindo eu, então, sentiram-se desconfortados com a proposta de lei, ou de todo excluídos e clamaram por mais auscultação popular, inclusão e mais debate. A AR anuiu e o projecto acabou sendo retirado para próxima oportunidade.
Tudo indicava que tal oportunidade seria na sessão do primeiro semestre do presente ano, mas, uma vez mais, não aconteceu. Entre o desencontro de ideias entre deputados das três bancadas, as desavenças da AR e o Banco de Moçambique, com o governador deste a humilhar completamente os deputados/moçambicanos ao não comparecer nem se justificar a uma sessão de esclarecimento na comissão parlamentar especializada, veio de nova à tona que a tal auscultação não tinha sido mais abrangente como se requer e nem acomodava as contribuições apresentadas por várias sensibilidades.
Houve, novamente, recomendação de mais auscultação.
Daí para cá, houve uma correria louca do Executivo e, quando se convocou a sessão extraordinária da semana passada, havia quase certeza de que o projecto de lei, uma vez constante da agenda, iria ser abordado. De novo… nada!
Em causa, a ausência de consenso. Prevalecem divergências nos pontos essenciais, designadamente, sobre a natureza e essência do fundo, se uma conta bancária domiciliada no Banco Central ou noutro; quem vai efectivamente geri-lo; e onde e como será aplicado. Por outras palavras, estamos no mesmo sítio onde estávamos quando ainda não recebíamos dividendos da exploração dos nossos recursos naturais. Entretanto, já estamos a recebê-los.
Mas, ouvindo e analisando alguns dos pronunciamentos de certos concidadãos, dá para perceber que a questão da essência ainda não está ultrapassada e é bicuda. O professor Severino Ngwenha questiona se, numa situação como esta em que nos encontramos - de crianças estudando ao ar livre e no chão; apenas 30 por cento de compatriotas com três refeições por dia (ao contrário do que propalou Celso Correia); 50 por cento com acesso à água de fonte segura e energia eléctrica; défice de hospitais e os existentes sem medicamentos essenciais para a maioria da população; país com grande défice de infra-estruturas (estradas, linhas férreas, pontes, acesso à comunicação (telefonia); etc. - vale a pena guardar dinheiro para as futuras gerações. Esta é a questão de fundo: tendo compatriotas sucumbindo, sobrevivendo; com uma refeição por dia, sem emprego, sem acesso à água segura, energia, estrada, telefone, ie., condições de vida básicas, vale a pena guardar dinheiro?… grande encruzilhada!
Num artigo de Outubro do ano passado, escrevia eu: “Minha visão é que devemos definir aqui e agora o que fazemos com o Fundo Soberano, a parte que irá para a conta a ser aberta no Banco de Moçambique. A lei sobre o Fundo Soberano deve estar completa e estar completa significa que deve também especificar o destino dos valores a entrarem. Não acho que devamos ser como a maioria dos criadores de gado do nosso país, que se contenta apenas em contemplar a quantidade de cabeças que tem no curral e está à espera de ver o que vai fazer com elas… tipo nós que só vamos ver o saldo da nossa conta e não temos ideia clara do que fazer com aqueles fundos… que até são magros… estamos à espera de decidir o que fazer com eles. Não. Esta questão tem que estar fechada já. Tomarmos uma decisão colectiva e consensual sobre onde aplicar os fundos provenientes da exploração dos recursos naturais.
Já agora: acho que o Fundo Soberano deve ser aplicado na construção e reabilitação de infra-estruturas, só e somente só. Por infra-estruturas, quero dizer estradas estratégicas e estruturantes, isto é, as primárias e secundárias, pontes estratégicas, nacionais, regionais e provinciais; linhas férreas regionais e nacionais; e barragens e centrais eléctricas de âmbito nacional e regional. Penso que um país com excelentes infra-estruturas será um bom “legado” para as gerações vindouras.”
Considero pertinente a questão colocada acima, mas mantenho este posicionamento, que me parece que cobre a preocupação levantada, de se guardar dinheiro quando compatriotas soçobram, com a ressalva de que também não vejo com bons olhos que a gestão do fundo seja por uma equipa subordinada ao governo do dia; deve, sim, prestar contas à Assembleia da República.