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segunda-feira, 23 novembro 2020 07:06

Kekobad Patel e as intervenções de Carlos Cardoso na indústria do Caju: “Propôs-nos a levar o assunto [políticas do Banco Mundial] à Arbitragem do Banco Mundial”

Assinalou-se, este domingo, a passagem do vigésimo aniversário, após o assassinato do jornalista Carlos Cardoso, um dos ícones do jornalismo investigativo, em Moçambique. O ponto mais alto das celebrações da vida e obra de Carlos Cardoso terá lugar esta tarde, num debate virtual que irá juntar algumas personalidades que trabalharam e/ou conviveram com o finado. Uma das personalidades convidadas é Kekobad Patel, Presidente da Associação Industrial do Caju (AICAJU) entre 1995 e 1998, que trabalhou em estreita colaboração com Carlos Cardoso na defesa da indústria do caju, perante as políticas do Banco Mundial, que defendiam, por exemplo, a exportação da matéria-prima e não da castanha processada, alegadamente porque a segunda opção não acrescentava valor ao nosso país.

 

À “Carta”, Patel explica que foi sob proposta de Carlos Cardoso que a AICAJU levou o assunto à Arbitragem do Banco Mundial para demonstrar que as políticas impostas por aquela instituição da Bretton Woods estavam erradas. Patel descreve Cardoso como uma pessoa que, num determinando período difícil da nossa história, demonstrou que “nós não podemos desistir”.

 

Acompanhe:

 

Que memórias ainda guarda de Carlos Cardoso?

 

“Às vezes torna-se difícil separar a pessoa de um amigo. E essa amizade, neste caso, foi cimentada porque ambos tínhamos, como defesa, os interesses do nosso país. Primeiro, olharmos para Moçambique e depois olharmos para os outros. Primeiro, olharmos para a nossa população e depois olharmos para nós. Então, identificamo-nos nesse aspecto e isso criou uma forma de ser e estar com Carlos Cardoso que, num determinando período difícil da nossa história, foi alguém que demonstrou que nós não podemos desistir. Um dos aspectos que me levou a admirar este jornalista foi o facto de que, com muitos poucos meios, criou o seu jornal, numa pequena garagem e conseguiu realizar o seu trabalho, numa época em que não existiam estas Tecnologias. Esse foi um dos aspectos que me marcou: como do pouco pode-se fazer tanto? Pois, com os seus artigos conseguiu chegar ao mundo inteiro. Portanto, isso mostra que, às vezes, não é preciso muita coisa e nem muita propaganda porque a melhor propaganda é o trabalho que eu faço e ele fez um trabalho que o colocou no lugar onde merecia”.

 

“Entretanto, a estória do caju é que nos aproximou e ele sempre esteve do lado dos moçambicanos. Ele sempre ouviu os comerciantes e os industriais e o interesse que havia para que a indústria proliferasse, neste país. Infelizmente, quando veio a cena do Banco Mundial, ao impor um determinado tipo de regras e uma delas foi uma chantagem miserável, quando advogou a Política do Caju, onde defendia a privatização e adopção do mercado livre, porém, se esquecendo de que o mercado livre tem regras. Uma das imposições é de que o Estado tinha de sair das empresas estatais que processavam a castanha de caju (havia uma política, herdada da época colonial, em que quem analisa as estatísticas do caju, em 1975, vai perceber que o aumento da produção da castanha esteve relacionada ao aumento do processamento. Ou seja, os investidores investiram na indústria porque tinham garantia da matéria-prima e é isto que, muitas vezes, os dirigentes deste país não entenderam: que ninguém investe numa indústria se não tem segurança da disponibilidade da matéria-prima suficiente porque pensar que vai fazer uma indústria com matéria-prima importada é criar uma indústria que não vai viver muito tempo, sobretudo, em países como o nosso em que há muita oscilação cambial”.

 

“Quando começamos a preparar a nossa defesa, porque tivemos conhecimento desse estudo do Banco Mundial, que dizia que depois de privatizada a indústria, forçaram o Governo a mudar as regras do jogo, o que nós achamos um aspecto pouco credível e inaceitável e só mais tarde é que soubemos que para emprestar dinheiro ao país impôs como uma das condições que tinha de liberalizar a importação da castanha de caju e depois veio a teoria de que o país ganhava mais exportando a matéria-prima que a castanha processada. Então, Cardoso foi escrevendo isto nos seus artigos porque nós íamos-lhe municiando para que tivesse informação sobre esta matéria. Aliás, ele foi trabalhar para mostrar que os números usados pelo Banco Mundial para convencer o governo de que o país não acrescentava valor industrializando eram falaciosos. A denúncia sobre a atitude do Banco Mundial levou a que, num determinado momento, Carlos Cardoso propôs-nos a levar o assunto à Arbitragem do Banco Mundial e foi assim que levamos este processo à sede do Banco Mundial para mostrar que a política que o Banco Mundial estava a seguir era uma política de pobreza e não de desenvolvimento. Infelizmente, e apesar de reconhecerem o mérito da nossa preocupação, simplesmente disseram-nos que o apoio era dado ao Governo e não à Associação Industrial do Caju (AICAJU). Para além de desmontarmos os números do Banco Mundial, desafiamos o Banco, um ano depois, a realizar um estudo de avaliação dessas políticas e concluiu que Moçambique ganhava mais processando que exportando matéria-prima”.

 

“O outro aspecto que lembro do Cardoso são as suas denúncias sobre a corrupção e tudo me leva a crer que foi essa denúncia que levou ao assassinato dele, ao expor, inclusive, os princípios do partido Frelimo do qual ele era membro. O terceiro aspecto que me lembro e que defendeu veementemente é de que estávamos a gastar rios de dinheiro a fazer estradas onerosas e de manutenção difícil e quando nós queríamos criar emprego podemos usar outros meios, foi quando se fez aquele prolongamento da Vladimir Lenine com pavês e que ainda está lá. Aliás, gostava que fosse feito um trabalho a mostrar-se quanto foi gasto pela manutenção daquela via, desde a sua construção, comparativamente a outro sítio, onde é alcatroada. Infelizmente, o projecto não avançou muito. Penso que ele deixou marcas em alguns dos seus colegas, que continuam a trilhar pelo caminho da verdade e pelo jornalismo de investigação, que era sua marca”.

 

Sente que o sector do caju reflecte a luta travada por Cardoso?

 

“Infelizmente, hoje temos uma outra situação bem difícil e complicada. Se o meu amigo Cardoso estivesse vivo, ia morrer de ataque cardíaco, porque a indústria desenvolveu-se, mas ainda não está tranquila, pois, há players aí metidos, desde os paraquedistas, que aparecem na época da campanha de comercialização da castanha de caju, que usam alguns nacionais para dar cara. Aparecem com dinheiro que a gente não sabe de onde vem e que vão à campanha comprar a castanha ao preço que quiserem e que a indústria não consegue pagar”.

 

Como é que recebeu a informação do assassinato de Carlos Cardoso?

 

“Estava em Maputo e, naturalmente, recebi como um choque muito grande, porque ver uma pessoa que deu tanto por este país e recebeu tão pouco (em dinheiro), tivesse sido abatido como um criminoso, que nunca foi. E hoje temos, no nosso país, miseráveis criminosos e que nenhum deles é abatido. Como é que houve força, naquele momento, para abater uma pessoa que sequer estava armada. Portanto, fiquei muito chocado com a notícia”.

 

Sente que houve justiça na morte de Cardoso?

 

“Nestas coisas, há muitos aspectos subjectivos. É evidente que foram presas algumas pessoas, coisa que hoje nem sequer acontece. Quando olhamos para a evolução, sentimos que pelo menos ali houve alguma penalização. Porém, tenho dúvidas de dizer se a pena foi suficiente ou não porque a seguir morreram outras pessoas. Custou ver também o filho dele”. (Abílio Maolela)

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