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segunda-feira, 08 junho 2020 06:51

Eugénio Lisboa aos 90! – Por Nelson Saúte

O Eugénio Lisboa faz hoje 90 anos (25 de Maio). É, indubitavelmente, uma das personagens marcantes no contexto da literatura moçambicana e portuguesa. Foi, no tempo anterior à Independência, uma das mais assertivas e viperinas vozes, das poucas, melhor dizendo, que campeavam no domínio da imprensa cultural e do cosmopolitismo que a então cidade de Lourenço Marques, de alguma forma, arremedava, e que valiam a pena cultivar.

 

Conheci-o na mesma ocasião em que a Noémia de Sousa me levou aos ombros do Rui Knopfli, nos corredores da Gulbenkian, em Fevereiro de 1989, aquando do mítico I Congresso de Escritores de Língua Portuguesa. Tinha, já na altura, uma imensa admiração pela sua língua afiadíssima. Lera-o, pela primeira vez, no prefácio, avinagradíssimo, que redigira para o Mangas Verdes com Sal do Knopfli. Dali para os dois volumes, em nome próprio, da Crónica dos Anos da Peste foi um passo. Isto num tempo em que ler, ou melhor, ater- se ao que um escol de antigos lourenço-marquinos debitara, quer em verso ou em prosa, poderia configurar crime de lesa-pátria. A revolução era disjuntiva e não permitia ter ou olhar ou praticar alguma “tolerância”, à falta de melhor termo, sobre essa época e as suas personagens.

 

Eu andava abduzido pela descoberta juvenil que fizera ao ler O Reino Submarino do Rui Knopfli e estava-me nas tintas para os ditames da revolução. Aliás, quando retornámos daquela viagem a Lisboa, na qual abraçámos, sem rebuços, o Knopfli, o Lisboa, a Glória de Sant´Anna, entre outros, redigi, nas páginas da Tempo, onde coordenava a “Gazeta”, o meu entusiasmado panegírico ao poeta de O País dos Outros. O Sérgio Vieira, que promovera um almoço para o rescaldo da viagem – fora o nosso chefe da comitiva – só não vociferou muito mais porque eu tinha o respaldo da Fátima Mendonça e a compreensão e cumplicidade do José Craveirinha.

 

Craveirinha nunca enjeitou estes velhos companheiros da tertúlia, pese embora, no final das contas, ele regressasse para o subúrbio, enquanto eles habitavam a Polana. E tive do mestre da Mafalala inúmeros depoimentos que satisfaziam a minha curiosidade, quase pueril, sobre esta geração. A Noémia, a quem o Lisboa dedica, no aludido prefácio, alguma mofina poética, não tinha por eles nenhum ressentimento. Aliás, ela compreendia a minha paixão knopfliliana e foi ela quem me levou a conhecê-lo. Malicioso, com um sorriso mefistofélico, este virou-se para o Lisboa e disse-lhe com ênfase: “Noémia de Sousa!”

 

Nesse mesmo ano, o Eugénio Lisboa foi a Moçambique, depois de se ter visto na contingência de abandonar o país onde nascera, nos tempos em que decorria uma revolução, um tempo em que ele classificaria como “verdadeiro vento de loucura destruidora”, nas páginas das suas vastas e saborosas e não menos avinagradas memórias Acta Est Fabula.

 

Ao ler estes volumes destas vastas memórias, percebi melhor aquelas ácidas palavras dedicadas aos tempos em que viveu “dias trágicos, em que se assistiu, impotente, à destruição vertiginosa de um país”. Não tenho nenhum embuço em reconhecer que o Lisboa, como tantos outros, viveram estas agruras e sobre eles se praticou alguma (muita) injustiça.

 

Alguns deles, e o Lisboa por certo, tinham a ciência de que a circunstância histórica iria alterar-se. E seria-o dramaticamente. Avulta, aliás, o poema “Winds of change”, do Knopfli. A impreparação com que os moçambicanos quitariam, historicamente, um novo país para governar, deveria assacar-se, no meu entendimento, ao regime colonial que manteve, obscura e relutantemente, um povo deseducado, impreparado e vocacionado para o improviso. O disparate seria óbvio. Não intuir isso, ou não compreender isso, é que me espanta ainda hoje. Como é que queriam que o fosse?

 

Não sou daqueles que ainda hoje querem determinar o nosso infortúnio encontrando subterfúgios no nosso passado colonial. Longe disso. Mas tenho para mim que manter um povo sem educá-lo, sem prepará-lo, sem cultivá-lo, sem promover uma elite culta e treinada não permite, por mágica, encontrar soluções que sejam ou estejam à altura das nossas melhores expectativas. Disto isto, sou até capaz de assentir no seguinte: não obstante, aquele primeiro governo estava ou tinha melhor preparação do que muitos ulteriores, não havia, contudo, na sociedade, uma base que o sustentasse. Dos ulteriores, furto-me aqui de dizer seja o que for.

 

Quando o Eugénio Lisboa revisita a “capital da memória”, como Maria de Lourdes Cortez haveria de designar a capital moçambicana, encontra uma nova geração de escritores, que está nos antípodas das certezas revolucionárias e fazem dele e de outros da sua geração e condição seus concidadãos no país das letras.

 

Foi nesta ocasião que o entrevistei para a revista Tempo e falámos, longamente, de quase tudo: o pai, que fora funcionário dos Correios, da sua infância, da ida para Portugal para cursar Engenharia, de Portalegre, o encontro com José Régio, o regresso, a Escola Industrial onde lecionou Electrotecnia e Mecânica, a colaboração no “Diário de Moçambique”, no “Paralelo 20” e, mais tarde, na “Voz de Moçambique”, publicações de onde iria resgatar textos que fariam parte do seu livro Crónica dos Anos da Peste, título sugerido pelo Rui Knopfli, a partir das “Crónicas dos anos da peste” que o Lisboa publicava então. Falámos do seu tempo na Beira, do “Notícias da Beira”, do Cine-Clube de Lourenço Marques onde se viam filmes marcantes, dos soviéticos Eisenstein ou Pudovkin, do polaco Wadja, entre outros. Falámos de Jorge de Sena. Da Associação dos Naturais de Moçambique. Abordei as polémicas com Alfredo Margarido ou Rodrigues Júnior. Quis saber mais sobre Caliban, Knopfli, Grabato Dias. Falámos do Rádio Clube e da memória do poeta Reinaldo Ferreira, que morreu a 30 de Junho de 1959. Nesse ano, Knopfli publicou O País dos Outros e começa a amizade entre ambos e do Eugénio com Carlos Adrião Rodrigues, um brilhante e culto advogado, que um dia disse uma das frases mais luminosas: “Craveirinha e Knopfli, o verso e anverso de uma poesia em evolução”. Cito-a de memória. Falámos da sua paixão pelo teatro, ele lembrou Sara Pinto Coelho, a mãe do meu saudoso amigo Carlos Pinto Coelho, que dirigia um programa de teatro no Rádio Clube, onde o Lisboa iria promover Racine, Régio, Montherlant, Ibsen. Falámos das suas empreitadas poéticas e do seu retorno a Moçambique, vastamente cartografado nas suas memórias.

 

Uma entrevista não dá para tudo, mas aquela é uma primeira arqueologia literária que eu estabelecia com ajuda de um dos protagonistas da cena literária no meu país antes do advento da independência. No volume III da Acta Es Fabula iria encontrar pormenores e detalhes que iriam satisfazer a minha gulosice pela nossa história literária. Craveirinha, disse-o, deu-me, nas nossas longas conversas, depoimentos inesquecíveis dessa fase. O Eugénio Lisboa escreveu páginas fascinantes sobre essa época. Sobretudo do seu magistério soberano. Tive o benefício de o ouvir, também, no contacto pessoal, muitas vezes. E sinto-me grato. Para sempre.

 

A primeira vez que fui a Londres foi a convite do King´s College por sugestão do Lisboa. O Hélder Macedo acolheu a ideia e aquela viagem, de 1992, foi marcante. Não apenas em termos literários. O Lisboa sugeriu-me um roteiro por museus e o Knopfli iniciou-me no jazz. Fui certa ocasião seu hóspede, como fora do Rui. Lembro-me sobretudo da sua mulher, Maria Antonieta, cuja morte, em 2016, está na origem de um livro dilacerante e desolador: o Epílogo da Acta Est Fabula. A sua mulher era de uma grande elegância. Nunca terei palavras para lhe agradecer a forma como me recebeu e me tratou em sua casa. Da sua empatia e simpatia sempre.

 

Quando organizei a reedição dos cadernos Caliban pedi-lhe, há 30 anos, colaboração, e o Eugénio foi prestimoso. Quando organizei a antologia da poesia moçambicana Nunca Mais é Sábado, pedi que ele a fosse apresentar. Discordou de mim nos critérios, criticou a presença de certos nomes, debitou o seu mítico vinagre. Não poderia ser de outro modo. Ali estava o Lisboa de sempre: desassombrado e espírito independente, viperino. Afinal, fora esse mesmo Lisboa que concitara o meu entusiasmo ao ler aquelas páginas lancinantes que precedem o belíssimo Mangas Verdes com Sal. Não concordei com ele, nem tinha que concordar. Cada um de nós tem a sua perspectiva histórica e cultural das coisas. Uma antologia, creio eu, não é apenas o escol dos prodigiosos. Cabem todos, sobretudo de uma nação em formação. Aliás, num texto que eu redigi sobre o Fonseca Amaral também discordei profundamente do Lisboa quanto ao papel das ciências exactas na grandeza da poesia. Creio que a poesia, a grande poesia, vem de outras galáxias. Mas hoje não me quero ater às minhas discordâncias com ele. Antes pelo contrário.

 

Diria dele o que ele disse do Alberto de Lacerda aquando da visita do poeta de Exílio a Moçambique nos anos 60: “Conversar com ele era um prazer interminável e inesgotável. Era prodigiosamente culto, assassinamente observador, genialmente parcial, guloso de literatura, de pintura, de música, de escultura e de liberdade. Era um dos poucos génios da arte de conversar, que até hoje conheci. Diz um provérbio qualquer que não se deve falar a não ser que, com isso, se faça melhor do que o silêncio. A conversa do Alberto melhorava extraordinariamente o silêncio.” Com o Lisboa é isto que acontece.

 

As conversas em Londres, nas poucas vezes que lá o visitei, em Maputo, sobretudo na casa do saudoso José Soares Martins, e foram algumas essas ocasiões, em Lisboa, na sua casa ou em casa do Rui Knopfli, são inesquecíveis. Falasse ele do Gide ou do Montherlant, dos seus gatos e dos filmes que vira, era sempre avassalador, brilhante, luminoso, espantoso.

 

Não o vejo há anos, mas tenho notícias dele, ou através da Fátima Mendonça ou do Álvaro Carmo Vaz, meu autor e amigo. Leio-o, sim. Não tenho aqui a sua obra ensaística, essa tenho-a em Moçambique. Leio as suas memórias e os seus diários. Continuo a ler com a mesma admiração e espanto com que o lia há décadas quando o descobri. Leio-lhe menos a poesia. Nesse domínio ele está menos protegido pelos deuses. Quanto ao mais, tem uma informada e sedutora escrita ensaística, exibe um aparato e uma erudição, a sua língua é sempre afiada, o que para mim é um tónico. Vivemos um tempo medíocre e é uma redenção ler o Eugénio Lisboa, que sempre cauterizou e com ele tenho aprendido a prosseguir este mesmo desígnio. 

 

Cidade do Cabo, 25 de Maio de 2020

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