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quarta-feira, 06 julho 2022 07:09

A Leste, Algo Novo

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Volvidos quatro meses do início das hostilidades na Ucrânia, o denominado exército medieval do Kremlin, que fora escorraçado das cercanias de Kiev, ocupa agora um quinto do seu território. No entanto, na praça Maidan ouvem-se ainda promessas de uma vitória retumbante na Primavera.

 

Acto engendrado por ex-consultores de Wall Street,  colocados no leme das nações mais poderosas da Europa para reviver uma nova idade das trevas,  o conflito ucraniano foi propiciado por mudanças profundas e fracturantes em todos os sectores da sociedade ocidental, como consequência directa da expansão do Paradigma 4.0, que já estava a eliminar, de forma massiva e desproporcional, empregos de baixa qualificação ou rotineiros nos países da OCDE, susceptíveis de serem substituídos por baratíssimas soluções de inteligência artificial.

 

E neste grande desafio, a República Popular da China era quem melhor se posicionava face aos seus concorrentes americanos e europeus. Não tardou por isso que as agendas políticas do chamado mundo civilizado judaico-cristão começassem a impor uma regulação do ciberespaço, blindando as oportunidades de mercado e soluções inovadoras aos perigosos competidores vindos de Leste. Estava assim lançado o pretexto para uma nova confrontação este-oeste.

 

Que teve como ponto de partida a cruzada mediática anti-Huawei, durante a qual, celebraram-se memorandos de entendimento entre a NATO e a União Europeia no domínio da segurança cibernética, enfiando no caixote de lixo da história as tenebrosas revelações feitas por Edward Snowden anos antes. E por iniciativa norte-americana, instituiu-se o Quinto Domínio da guerra na cimeira da NATO de Londres em 2019, para conter a ascensão do 5G chinês quando, providencialmente, um misterioso COVID-19 surgiu para retirar da opinião pública mundial a atenção para o que já estava planificado para acontecer.

 

A tragédia ucraniana era, portanto, há muito anunciada. Com os avisos que não faltaram de Moscovo, que foram ostensivamente ridicularizados nos fóruns internacionais, onde se evidenciou o papel hipócrita e subalterno da intelligentsia europeia na resolução da quezília.

 

Como se provou com os malogrados Acordos de Minsk e confirmado recentemente por declarações de Petro Poroshenko ou de Jens Stoltenberg, era preciso dar tempo à Ucrânia para que, com o apoio da NATO, expulsasse qualquer vestígio russo do seu território. O que nos induz hoje a estranha sensação de que a presença do errático Trump na Casa Branca foi o único factor que travou uma guerra aberta no Donbass.

 

Pelos vistos, será preciso esperar que os republicanos voltem aos comandos Washington em Novembro, para que o mundo volte a respirar com um pouco mais de alívio por algum tempo.

 

Tarefa que não se afigura fácil considerando que o eleitorado norte-americano vota essencialmente com o seu bolso ou ao sabor da doutrina do falso moralismo constitucional.

 

Por isso, a iminente recessão económica causada pelas políticas dos democratas pode-se transformar numa espada de dois gumes para os republicanos com a provável desqualificação de Trump por causa dos fait-divers do Capitólio e do Aborto, ou o retorno positivo do maior endividamento europeu de longo-prazo desde o Plano Marshall de 1948-51.

 

Eis porque o comediante de Kiev insiste energicamente numa vitória de Primavera. Quão importante seria para o seu principal credor e associados europeus um acordo de Paz em condições favoráveis, antes das eleições intercalares dos EUA ou do pior inverno europeu do sec. XXI. O que torna as ondas de choque do conflito mais perigosas e imprevisíveis para o resto do mundo, pois a sua escalada obriga ao emprego de armamento mais sofisticado em mãos de governos politicamente irresponsáveis. É que a Leste, há algo novo. Uma nova frente foi aberta em Kaliningrado.

 

Isolado desde meados de Junho por terra e ar, a este altamente militarizado enclave russo somente resta a via marítima para manter a sua economia em funcionamento. Este singular acto hostil da pequena Lituânia contra a poderosa Rússia teve a solidariedade imediata da Polónia, país que há muito contesta a hegemonia de Moscovo e de Berlim na região.

 

Simultaneamente, a NATO anunciou que a força de reacção rápida no flanco leste europeu seria elevada de 40 para 300 mil homens. E a resposta já é de se esperar. Mais mísseis estratégicos e equipamento militar sofisticado russo vai ser fornecido à Bielorrússia, levando a uma provável nuclearização da região do Báltico, algo que os então pacifistas Finlândia e Suécia nunca imaginariam ver a acontecer no seu quintal.

 

Mas o ponto fundamental do conflito no Leste europeu é o que sucederá no pós-guerra. Porque a perspectiva inicial do mundo ocidental de reviver o cenário bipolar da Guerra Fria falhou rotundamente. O mundo actual mostra o seu carácter cada vez mais multipolar, com a Europa cada vez atrelada ao objectivo primário de Washington de resolver o problema chinês enfraquecendo a Rússia. O que não obviará o desejo britânico de recriar uma nova EFTA na Europa do Leste, para servir de muleta a um Brexit feito por cima do joelho.

 

E o aclamado estado social europeu, do pleno emprego e dos direitos adquiridos se extinguirá em breve sem as matérias-primas e a mão-de-obra baratas da Rússia e da China.

 

Mais ainda, por se ter revelado uma extensão de um bloco militar expansionista como a NATO, a União Europeia colhe agora consequências nefastas nas suas relações bilaterais com aliados tradicionais como a Índia, Arábia Saudita, Turquia e Israel.

 

A Índia serve-se do momento actual para refinar o crude russo a preço de banana, para depois repassá-lo à sedenta Europa ao valor de mercado. A Turquia faz o mesmo em relação ao gás natural e aos cereais. E a Arábia Saudita mostra que a vingança é um prato que se serve frio. Algo que o sr. Biden jamais esquecerá, quando tiver de negociar novamente o preço do crude com a OPEP.

 

E Israel vive mergulhado num dilema existencial, ao sonhar com os proventos do gás natural de alto mar que espera fornecer a Bruxelas saqueado aos palestinos e libaneses.

 

Preso por uma neutralidade forçada, o Estado Judeu tem de apartar simultaneamente os interesses dos EUA e da Rússia. Telavive sabe que uma aproximação à posição pró-russa lhe retira do clube dos meninos mimados do ocidente. Mas uma posição deliberadamente pró-ocidental pode culminar com Moscovo a armar Teerão com um arsenal similar ao Bielorrusso.

 

Mas é sobretudo a credibilidade do euro, que viu as suas reservas a diminuírem drasticamente no sistema financeiro dos BRICS, que foi posta em causa. Desde o início da bateria de sanções draconianas contra Moscovo, muitas das economias emergentes passaram a apostar no ouro e nas transacções financeiras bilaterais em moeda nacional. Esquema que agrada a Argentina e o Irão que já submeteram o pedido de adesão aquele bloco.

 

Em suma, nas chamadas economias emergentes, o rationale dois pesos, duas medidas do chamado mundo civilizado para congelar bens russos e bielorrussos foi suficientemente claro para alertá-los para os cuidados que devem passar a ter com as suas economias no relacionamento com os países da OCDE.

 

A confiança nas grandes instituições financeiras criada pela globalização foi quebrada, abrindo a porta ao revivalismo do Movimento dos Não-Alinhados, onde agora reside uma neutralidade diplomática, aspecto muito discutível, sobretudo em países cujo orçamento do estado depende de programas do FMI e do Banco Mundial.

 

Com o H.R.7311 – Countering Malign Russian Activities in Africa Act do Congresso dos EUA na forja é uma questão de tempo para ver se as boas vontades de África em relação à paz na Ucrânia não se alinham com quem servir mais almoços grátis.

 

Mas tudo se coaduna para que a cimeira do G-20 a realizar em Novembro, na Indonésia, possa ser o primeiro acto simbólico da comunidade internacional para encerrar a orgia dos loucos que tomou conta do Leste Europeu. Até lá, a pobre Ucrânia continuará a ser carne para canhão, para o gáudio dos fabricantes mundiais de armamento e dos amigos da onça com quem se tem enfiado na cama.

Ricardo Santos

Sir Motors

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