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sexta-feira, 16 dezembro 2022 09:02

WIRIAMU, 50 ANOS

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“Na manhã de 16 de Dezembro de 1972, tropas coloniais portuguesas reuniram os habitantes de Wiriamu, incluindo mulheres e crianças, no largo principal da povoação e ordenaram-lhes que batessem palmas que cantassem para se despedirem da vida. Em seguida, os soldados abriram fogo. Os que escaparam às balas foram mortos por granadas. Incitados pelo brado ´Matem-nos a todos´, os militares levaram o morticínio a quatro povoações vizinhas ao longo do Rio Zambeze, onde o território de Moçambique se estende para o Zimbabwe (Rodésia, à data dos acontecimentos), a Zâmbia e o Malawi – uma região designada pelos missionários católicos como ´a terra esquecida por Deus`. No final do dia, perto de 400 aldeãos tinham sido mortos, e os seus corpos eram lentamente consumidos pelas chamas em piras funerárias ateadas pelos soldados com o capim que cobria as palhotas” – esta descrição é feita pelo jornalista britânico Peter Pringle no prefácio ao magistral livro “O Massacre Português de Wiriamu, Moçambique 1972” do moçambicano Mustafah Dhada.

 

O dia 16 de dezembro de 1972, passam hoje 50 anos, calhou num sábado e a população de Wiriamu preparava-se para agradecer aos deuses pelos dias de chuva que tivera. Os dias tinham sido de fermentação de pombe e cachassu. A chuva era uma bênção que se conquistava muitas vezes à custa de mphondoro. Na manhã desse sábado longínquo, a celebração não aconteceu em Wiriamu. Sobre aquele lugar caiu uma chuva de balas, que estão na origem de um dos mais ignominiosos actos promovidos pelos portugueses e que marcam, de forma sangrenta, a história da sua colonização em Moçambique. Peter Pringle, um dos jornalistas britânicos que conseguiu ludibriar as autoridades portuguesas conseguiria confirmar as denúncias que tinham sido despoletadas no jornal “London Times” pelos Padres de Burgos que corajosamente fizeram chegar ao Padre Adrian Hastings esta página ominosa da história.

 

A 10 de Julho de 1973, o jornal britânico “London Times” publicou a história do massacre de Wiriamu, facto que seria corroborado pelo Insight Team do “Sunday Times”, dias depois, numa extensa cobertura deste infausto acontecimento. Portugal procurou, por todos os meios, desmentir os factos e desacreditar aqueles que promoviam o conhecimento desta macabra verdade. Usaram os mais hediondos argumentos: conspiração internacional, Wiriamu não existia, invenção dos padres, ficção. Marcello Caetano estava de visita a Londres para a comemoração dos 600 anos da aliança Luso-Britânica. Para além dos jornais e das notícias sobre a brutalidade do regime que representava, tinha manifestações nas ruas de Londres.

 

A história chegara a Londres por intermédio dos Padres de Burgos que haviam promovido a criminação. A intervenção de Adrian Hastings é decisiva.  Os documentos tinham saído clandestinamente de Moçambique para Espanha pela mão de Miguel Buendia. Mas a história vem de longe. Tete fez parte da diocese da Beira até 1962. O Bispo D. Sorares de Resende foi quem convidou as sociedades missionárias dos Combonianos, dos Sagrados Corações de Jesus e Marias, dos Padres Brancos e da Sociedade de São Francisco Xavier (Burgos) para trabalharem na sua diocese onde havia, manifestantemente, falta de padres. A Igreja iria tornar-se num agente transformador da sociedade, sobretudo através da acção das ordens dos Padres de Burgos e outros, na diocese de Tete, que então se autonomiza. A açcão deles, sobretudo a sua formação de cidadãos moçambicanos, é crucial. Muitos deles foram presos, outros tantos interrogados. Os padres, afirmando-se equidistantes tanto das forças portuguesas como das nacionalistas, colaboravam, inequivocamente, com os libertadores. E tiveram uma postura activa na denúncia das atrocidades praticadas contra as populações, contra os moçambicanos.

 

Mustafah Dhada: “O papel da Igreja no massacre de Wiriamu não é singular, nem simples. Uma das razões que o explicam prende-se com o surgimento de uma liderança senciente disposta a deixar-se moldar pelo ardor da experiência vivida. Soares de Resende, o novo bispo, mudou o rumo da igreja de Tete. Felizmente, a escassez de sacerdotes em Portugal permitiu-lhe selecionar padres que considerava adequados às necessidades de Tete sob o seu episcopado. Daqui resultou um grupo de sacerdotes “importados” extremamente diversificado e ecléctico, que assumiu as responsabilidades inerentes à sua missão com grande seriedade e acolheu uma vida de isolamento nos lugares mais recônditos de Tete como um trunfo para a construção de uma comunidade de crentes socialmente activa. Os Padres Brancos e os Padres de Burgos notabilizaram-se neste tipo de trabalho: os primeiros, graças á sua experiência sacerdotal em África, e os segundos, devido à sua formação e experiência com paróquias assoladas pela pobreza em Espanha franquista e pelas suas personalidades individuais”.

 

A frente da denúncia, que irá provocar um terramoto, que inclui uma apresentação nas Nações Unidas, foi assumida por Adrian Hastings. O seu relato foi baseado nas denúncias dos padres que estavam no terreno e será corroborado por vários jornalistas, entre os quais Peter Pringle. Esta história não é apenas importante pelo embaraço que criou a Marcello Caetano e ao regime que liderava, ao expor a sua natureza e desumanidade, mas porque estará na origem, a par de outros acontecimentos, do colapso do mesmo, o que acontece a 25 de Abril de 1974, menos de 1 anos depois de ser despoletada. A acção destes padres, que eram uma verdadeira barreira de defesa das populações e que apoiavam a luta pela nossa independência, não é valorizado nem devidamente reconhecido. A história oficial se não a rasura, não a sublinha.

 

O relatório sobre o massacre de Wiriamu foi inicialmente redigido pelo padre Domingos Ferrão, o primeiro padre negro da diocese de Tete. Os Padres de Burgos protegeram-no dado que ele tinha sido preso anteriormente. Os dados mais importantes destes acontecimentos são conhecidos desde 1972: o número de mortos, o local, as causas – o facto de ser um corredor da frente nacionalista na sua marcha para sul, frente Manica Sofala – e aqueles que o perpetraram.

 

Vicente Berenguer: “Após o massacre, eu, juntamente com o padre Ferrão e padre Sangalo, fizemos um relatório que foi publicado pelo padre Hastings na Inglaterra. Isto criou uma polêmica, mas Marcello Caetano mesmo assim desmentiu os factos. (...) Viajámos para vários países europeus para expor as atrocidades cometidas pelo regime colonial contra o§ povo moçambicano”.

 

À distância destes 50 anos, há lugar para que reconheçamos o papel daqueles que assumiram corajosamente o papel da denúncia – redigiram o relatório, levaram-no daqui para Espanha – foi Miguel Buendia que corajosamente o fez -, conseguiram que um jornal britânico desse primeira página e tornaram insustentável a posição e o regime fascista português. Estes padres não só assumiram este importante papel de denúncia das atrocidades, mas deram um contributo decisivo na libertação de Moçambique.

 

Mustafah Dhada: “O padre Catellá serviu-se engenhosamente dos dois protagonistas do conflito para servir a sua Igreja. Enrique Ferrando recorreu à sua escrita para registar situações de violência em massa e, ao mesmo tempo, defender os direitos dos mais pobres. Alfonso Valverde de León não descansou enquanto não expôs o que considerava ser a verdade nua e crua. Miguel Buendia tinha a habilidade de convencer os colegas mais indecisos a tomarem uma posição apresentando os argumentos adequados com ardor e paixão. Dividido entre o medo e a fé, o padre Ferrão registou o número de mortos na sua lista de vítimas, enfrentando o risco de prisão. Entre eles estava também o padre Berenguer. Os seus truques de magia conquistaram a lealdade dos rapazes mais novos da sua paróquia. A sua calma aristocrática permitiu preservar a consistência da história apesar das tentativas dos detractores para ferir a sua veracidade. O mais excêntrico de todos talvez fosse o padre Sangalo, filho de um toureiro e um ás ao volante de uma Suzuki. O seu dom para travar amizade com representantes da autoridade em pleno território inimigo salvou a sua vida e a de uma testemunha, o que acabou por inverter o rumo da contranarrativa promovida por Portugal.”

 

Mustafah Dhada nasceu perto do triângulo de Wiriamu onde aconteceu este massacre que este estuda e divulga, com uma notável pesquisa de fontes orais, primárias e documentais, entrevistas. “O Massacre Português de Wiriamu, Moçambique 1972” é uma obra importantíssima para a demanda da história deste massacre e uma denúncia documentadíssima do mesmo. Não sei se a nossa academia a estuda ou promove. Não fosse a nossa congénita distração, o moçambicano Dhada teria sido convidado para falar sobre esta sua investigação e sobre esse seu notável trabalho, o mais importante desenvolvido sobre este tema, aquando desta efeméride. Mais: as instituições que deviam cuidar da nossa memória estariam obrigadas a promover, sobre esta mesma efeméride, iniciativas que a levassem ao conhecimento sobretudo dos mais jovens. Mas ficamo-nos pelo circunstancial e pela instrumentalização política da história. A história não se escreve com slogans ufanos. A história é saber contar os episódios da vida de um povo e este é, indubitavelmente, um deles.

 

A história oficial ou oficiosa é lacunar e não conta as histórias que fazem a História e oculta o nome de protagonistas importantes. Aí estão e alguns deles vivos. O país deve-lhes um tributo. A todos eles. De Ferrão a Hastings, de Sangalo a Berenguer ou Buendia, entre tantos outros. Hoje passam 50 anos, teria sido uma ocasião soberana para o país lembrar-se destes homens altruístas, generosos, magnânimos, corajosos, que ajudaram a denunciar um regime decrépito - a sua brutalidade, a sua insanidade, a sua desumanidade - e tiveram um papel libertador no futuro do nosso país. Não tenho notícia de que alguma vez estas figuras tenham merecido um reconhecimento oficial, uma homenagem nacional, o que nos honraria a todos como moçambicanos. 

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