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quinta-feira, 25 maio 2023 10:24

TINA

Escrito por

NelsonSaute

Nelson Saúte

 

Ooh, you´re simply the best

Better than all the rest

Better than anyone

Anyone I´ve ever met.

 

 

(Holly Knight e Mike Chapman)

 

Tenho 17 anos, subo lesta e distraidamente as escadas do prédio onde vivo,  na vetusta Rua Simões da Silva, que entronca na Eduardo Mondlane, mesmo em frente do Arcebispado. Os  elevadores estão irremediavelmente avariados, o edifício resiste ao milagre do tempo e tudo à volta é o arremedo do belo livro de Manuel Rui “Quem me dera ser onda”, que lemos com gáudio, onde tudo cabe nas nossas incongruências e nos usos idiossincráticos da cidade. Estamos no final do ano de 1984. Vivo no segundo andar. Elevador para quê? Subo as escadas entregue aos meus pensamentos e, de repente, sou abalroado por uma mulher.

 

Do vão que se abre no meu andar, numa balaustrada interior, ouve-se a poderosíssima voz de Tina Turner. Ela canta poderosamente “What´s Love Got to Do Whit It”, uma das faixas do disco “Private Dancer” e eu entrego-me à beleza visceral daquela música. O som era da telefonia de uma das casas vizinhas. Naquele tempo, a Rádio Moçambique era a fonte da nossa educação musical. A TVE também, sobretudo nos inesquecíveis programas do Jorge Morgado, ou nos chamados interlúdios musicais. Foi ali onde aprendi tudo o que sei de R&B.

 

Creio, aliás, que seria na televisão com imagens trêmulas – porque era difícil acertar com a antena e o sinal – que vi, pela primeira vez, deslumbrado e arrebatado, Tina Turner. Era brutal no palco, tinha uma poderosa presença. A sua voz. Depois, na casa do Manuel Maurício, que está lá nos mesmos páramos para onde a Tina agora emigra, íamos ver aqueles vídeos que vinham das Américas nas cassetes Betamax, antes das VHS, na companhia do meu mano Luís Loforte.

 

Os anos 80 foram anos extraordinários. Anos miseráveis materialmente, mas anos de um humanismo irrepetível.  As pessoas eram solidárias, partilhavam o que não tinham. As portas ficavam abertas para os amigos e os vizinhos, ou os  familiares que vinham de longe. Víamos televisão na casa dos amigos ou nos grupos dinamizadores. Nem todos tínhamos a fortuna daquela caixa mágica. Eu tinha, na casa de família de Ajamia e Fausto Loforte, que me haviam sufragado como oitavo filho.

 

Eram anos de fome, de bichas de tudo, nas lojas do povo, nas cooperativas de consumo, nas padarias. As pedras serviam para marcar o lugar que nos caberia na refrega, seja para o que quer que fosse, nas bichas. Na escola tínhamos a benesse das maçãs do Botha ou o queijo que vinha da América e que nos animava aos intervalos na Josina Machel. Quando regressávamos da escola, da rua sentíamos, invariavelmente, a inescapável fragrância do repolho das casas. Éramos felizes e não sabíamos.

 

Em casa do Manuel tínhamos sessões para ver e discutir se Michael Jackson era ou não melhor que o Prince. Creio que, à excepção do anfitrião, não tínhamos dúvidas de que o autor do “Thriller” era melhor que o do “Purple Rain”. Foi no ano da morte de Marvin Gaye (morto a tiro pelo pai) e chorávamos a ver o vídeo de “Missing You” que Diana Ross cantava pungentemente para ele. Havia a malta do “break dance” que tinha o entusiasmo consentido das miúdas que nos eram inacessíveis. Lionel Richie cantava “All Night Long” e tinha já abandonado os Commodores, que faziam sucesso com “Nightshift”. As bangas eram as nossas festas com cerveja a barril e feijoada que desenrascávamos por aí! Madonna iria cantar “Live to Tell”. Gregory Abbout, “Shake you Down”. Cometíamos as nossas iniciais empreitadas líricas.

 

Foi assim que Tina Turner entrou estrondosamente nas nossas vidas, com aquele seu vozeirão,  com aquelas míticas pernas, aquela cabeleira inadjectivável e o mais belo sorriso do mundo. Aquela sua beleza exuberante. Mais tarde saberia da sua história tumultuosa com Ike Turner, de quem herdaria o apelido e um passado assombrado. Também saberia que “Private Dancer” era afinal uma música composta por Mark Knopfler, dos “Dire Straits”, que eu iria admirar intransigentemente.

 

Os sucessos de Tina viriam em catadupa. Ela era um animal enérgico e eléctrico solto no palco. No estrado saiam-lhe todos os espíritos em vertiginosas actuações. Vieram os Grammys, veio Maracanã e 180 mil espectadores, ulteriormente o veio sucesso global, sobretudo com “Break Every Rule”, ainda nesses faustos anos 80. No final da década, consigo uma bolsa e vou estudar para fora. Levo comigo um pequeno reprodutor de cassetes e as músicas que eram a banda sonora da minha vida. Tina Turner fazia parte da lista. Ouvi-a obsessivamente. “Simple the best”.

 

Quem hoje tem o desagravo do YouTube, dos telemóveis e de todos os avatares da tecnologia e acede a isto tudo com facilidade não pode imaginar o que era a nossa vida para chegarmos à música que não era do nosso quintal. Tínhamos sempre a Rádio Moçambique, é certo. Agora, tudo isto mudou. O tempo em que a brasileira Regina Casé, na novela “Cambalacho”, parodiava a cantora, na belíssima interpretação da Tina Pepper, não existe mais. O mundo cabe-nos na palma da mão e num telefone celular. Os anos passaram vorazmente.

 

Tina Turner soube envelhecer. Soube sair do palco. Mudou-se para a Suíça. Casou no outono da vida, a sua primavera. Parecia, nos últimos tempos, ter superado os ditames da doença. Não há muito vi-a a falar das provações por que passara. Ela fora, afinal, uma sobrevivente sempre. Saberia sobreviver. Como sempre. A solo no palco ou em duetos inesquecíveis. De todos, sou indefectível de “Cosas de la Vida” com Eros Ramazzotti. Ainda hoje revi este dueto e deixei-me comover.

 

Agora que os jornais e as televisões anunciam que Tina Turner partiu, agora que se fazem todos os obituários, agora que vejo a sua fotografia nos “status” de tantos telemóveis, agora que os sinos dobram, agora que não me prostro no silêncio mas sim na sua música, agora que a tristeza me tolhe, aquele miúdo de 17 anos, no lanço das escadas do prédio da Rua Simões da Silva, volta a ficar totalmente enfeitiçado, totalmente subjugado, totalmente deslumbrado, totalmente atordoado e totalmente paralisado por aquela voz fascinante e possante, nos quase quatro minutos que dura aquele maravilhamento. Afinal, ali, naquele dia e naquele lugar, tivera uma epifania, uma revelação. Aquilo foi mesmo um arroubo, um arrebatamento, um enlevo. Parecia que a ouvia pela primeira vez. Sempre a ouviria pela primeira vez. Com o mesmo espanto do menino de 17 anos.

 

Oiço-a a cantar de novo, passaram-se quase quatro décadas, tenho agora 56 anos e me comovo até às lágrimas. Sinto a mesma fascinação pelo sortilégio daquela voz. Tina Turner será sempre “simply the best”, como queriam Holly Knight e Mike Chapman numa das músicas que a celebrizou. “Proud Mary”, cantou e dançou ela. Como se tivesse mandinga na voz e no corpo. “Proud Tina”, escrevo eu esta noite.

 

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