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sexta-feira, 20 dezembro 2024 14:07

Uma tempestade chamada POVO e seus Tentáculos

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O nosso país enfrenta uma doença grave, que afecta a todos, ainda que em proporções diferentes. Essa doença foi identificada há já algum tempo, mas tratada com descaso. Durante décadas, seus primeiros sintomas foram ignorados, permitindo que se enraizasse no tecido social, afectando todos os segmentos de Moçambique. Hoje, ela não distingue entre a alta e a baixa sociedade, abrangendo a todos e colocando o país em estado de alarme, medo e incerteza. Essa enfermidade tem nome: má governação, caracterizada pela corrupção institucionalizada, desigualdades sociais gritantes e exclusão social.

 

Esse mal foi se instalando de forma lenta, como um câncer que cresceu e começou a fazer suas primeiras vítimas. Suas manifestações iniciais incluem as homenagens pacíficas aquando da morte do rapper Azagaia em 2023, o repúdio aos resultados das eleições legislativas do mesmo ano e, finalmente, a mobilização popular contra o que se considera manipulação eleitoral nas eleições de 2024. Esses eventos não são isolados; reflectem a pobreza generalizada, o desemprego, a precariedade dos serviços de saúde e educação, a insegurança pública, entre outros problemas estruturais. Soma-se a isso a forte repressão policial, com o uso indiscriminado da força contra civis, violência gratuita e o desdém pelos eleitores que confiaram nos governantes.

 

Milhões de moçambicanos sentem-se traídos por promessas vazias de um “futuro melhor”. Eles acreditaram que “o sol de junho para sempre brilharia” e que “nenhum tirano os escravizaria”. Contudo, viram o sol perder seu brilho e uma nuvem cinzenta anunciar uma nova era. Viram elites predatórias, mascaradas de libertadoras, empobrecerem ainda mais o povo e lhes retirarem aquilo que possuem de mais precioso: sua dignidade.

 

A frustração, a revolta e o desejo de mudança intensificaram os ânimos, desencadeando protestos que evoluíram para confrontos, saques e destruição. Não foi fruto do acaso. O povo clamava silenciosamente, por alguma dignidade. Pensou-se que as balas e o gás seriam suficientes para calá-lo e confiná-lo à miséria. No entanto, surgiu um novo fenómeno com o qual teremos de lidar: a perda do medo por parte do povo oprimido e a consequente retirada de legitimidade das autoridades e das instituições.

 

O gatilho social está prestes a disparar, levando-nos, em ritmo acelerado, para o caos total. Há um silêncio ensurdecedor por parte daqueles que deveriam agir para conter essa crise e evitar o caos. Tentativas de escamotear a realidade, discursos de ódio e narrativas que desumanizam o “outro” aprofundam a marcha rumo ao abismo. Falamos de tudo, menos da raiz do problema. Ignoramos os motivos que nos trouxeram até este ponto, onde o luto rima com a indiferença estatal, e as mortes são apenas números e estatísticas diante de discursos que priorizam perdas económicas e materiais.

 

E depois? Quando mergulharmos no caos, como reconstruiremos a visão de Estado, de Instituições e de defesa e promoção inclusão social?

 

De um lado, há uma classe saturada, cansada e exausta com anos e, talvez até décadas de uma má governação, que busca a reposição da verdade eleitoral como algum alento e um passo em frente na emancipação do povo, símbolo de justiça social. De outro, há uma elite governante, isolada no cimo das suas torres de marfim, que ignora os clamores populares e acredita ser merecedora de seus privilégios, mesmo que isso custe luto, lágrimas, sangue e vidas humanas. Em nome da ordem pública, essa classe autoriza o uso indiscriminado da força, acreditando poder silenciar o povo com balas e gás.

 

Chegamos a um ponto em que até as autoridades parecem algo desnorteadas e desorientadas, percebendo que nada é mais forte do que o povo. Antes, supunha-se que seu papel era proteger os cidadãos. Hoje, está claro que esse papel foi subvertido: as armas que deveriam defender o povo são usadas para semear luto em nome da segurança e pacificação do Estado. Esse mesmo Estado, que foi capturado por políticos ambiciosos e gananciosos, que ignoraram os sinais de revolta. Agora, encontram-se encurralados em um ciclo desumano, arrogante e cada vez mais promíscuo.

 

O povo, por sua vez, avança porque já não tem nada a perder. Uma vez arrancada sua dignidade e violados seus direitos fundamentais, o que resta da vida? É apenas o pulsar de um coração angustiado, um estômago vazio, uma cabeça confusa e pulmões sufocados por gás. O pouco de vida que resta transforma-se em arma para libertar e inspirar os mais jovens, que ainda não podem marchar.

 

Escrevi, em 2023, o texto “A Demissão do Povo”, no qual afirmei: “O povo foi demitido da sua função de fiscalizador da ação governativa” como que, de um prelúdio se tratasse. Hoje, essa percepção tornou-se ainda mais evidente. O povo sente-se marginalizado, irrelevante e tratado com desprezo pelos líderes que deveriam ser o garante do bem-estar social, da coesão e servir ao bem colectivo. Face a essa exclusão, os movimentos populares mais ou menos estruturados, emergem como o único instrumento para manifestar suas demandas e buscar a transformação tão necessária.

 

A escrita não deve pretender prever o futuro nem ser um exercício de alarmismo. De certeza não é isso que busco quando escrevo e quando faço minhas absrações. No entanto, o exercício de escrever, nos convida a analisar e reflectir os acontecimentos, passados, presentes até futuros, mesmo que, às vezes, suas interpretações sejam apenas compreensíveis a quem as escreve. Não se trata de um tarot literário, mas de observar a sociedade com lentes socio-antropológicas e uma perspectiva filosófica que transcenda os limites do óbvio.

 

Tenho receio pelo futuro. A semente do ódio foi plantada, e o terreno para sua germinação é mais do que fértil. Minhas preocupações e meus medos, se agravam ao perceber a apatia e a fraqueza de nossas instituições e daqueles que as dirigem, que parecem atreladas a interesses individuais, e incapazes de promover o diálogo, o entendimento e um meio termo ou superar as adversidades do agora. Essa fragilidade se reflecte no desprezo pelas autoridades e na deterioração do respeito aos símbolos nacionais.

 

O futuro, exigirá muito mais do que um governo seja ele de esquerda ou de dreita — independentemente de sua orientação ideológica ou partidária. Ele demandará que a sociedade reencontre sua identidade e reinicie o ciclo da reconstrução da moçambicanidade. Será necessário o esforço conjunto de milhões de braços para realizar um profundo trabalho de reconstrução sociológica, psicológica, antropológica, literária, histórica e filosófica. Mais do que narrar os acontecimentos, precisaremos curar as feridas do corpo e da alma, e de seguida desenhar um novo ideal de país.

 

O barril de pólvora está prestes a explodir, e a chaleira social encontra-se em ebulição. A tampa já está quase saltando. Se não encontrarmos uma válvula de escape, será o vapor que nos queimará sem dó nem piedade.

 

Na minha recente reflexão, intitulada - “Premissas para um Diálogo Nacional Profícuo”, mencionei que, “ainda não fomos capazes de criar um diálogo consistente, promover o perdão e a reconciliação”. Em vez disso, recorremos a tácticas ilusórias, enganando a nós mesmos e aos outros.

 

Escrevo estas palavras com um profundo pesar. Para além de Cabo Delgado que sofre com a insurgência, todo Moçambique está em chamas, caminhando para a barbárie. A questão inevitável é: será que precisaremos afundar ainda mais em um banho de sangue para que o luto assuma o controle de nossa história e de nossas vidas?

 

Finalizo com uma citação de Paulo Coelho: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor.” Parafraseando, acrescento em minhas palavras: quando a governação não é inclusiva, orientada a resultados e dialogante, o risco de criar fissuras e fragmentações sociais é imenso. O excluído, então, transforma-se em parte de um problema gerado e perpetuado pela própria má governação.

 

Disse!!!

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