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BCI
quarta-feira, 09 outubro 2019 05:59

Sou amado... e não percebo nada

Escrito por

- Não levas o guarda-chuva?

 

- Para quê!

 

Lá fora já se começam a ouvir as primeiras notas daquilo que daqui a pouco pode vir a ser o descer da  música da chuva. Há um prenúncio. De longe os trovões ribombam, lembrando enormes tambores metálicos vazios rolando por sobre o asfalto, empurrados pelos operários exaltados por Samora Machel.

 

- Viva a classe operário-camponesa!

 

- Vivaaaaaaaa!

 

Os relâmpagos são o sinal do maestro, e logo a seguir entra em acção a orquestra. Sustentada nos trovões. É bela esta canção. Indepedentemente da tragédia que pode vir depois de todas as claves. Mas enquanto não vem o dilúvio, deixem-me dançar por dentro este rugido de Deus.

 

O céu está negro. Enclausurado em si mesmo. De quando em quando rasgado em longas fendas pelos raios que depois caem por entre os coqueiros que também dançam como eu, no palco do vento, sem perceberem que toda aquela exuberância pode vir cá abaixo,  em derrocada. Eu também, posso sucumbir aqui mesmo. Como todos aqueles que não obedeceram ao Noa. Mas eu quero sair.

 

- Amor, leva o guarda-chuva!

 

Sou relutante. Já aconteceram muitas vezes estes sinais, em dias sem memória, e nenhuma gota de chuva caíu. Hoje também pode-se repetir isso. E seria uma grande maçada andar com esse acessório num dia sem chuva. Posso parecer um maluco. Não, eu não levo o guarda-chuva. Não vai chover!

 

Por causa da baixa temperatura (22 graus de máxima e 15 de mínima em Inhambane), visto uma gabardina de ganga, forrada por dentro. Na cabeça trago um chapéu, não propriamente à Tomaz Salomão, mas provavelmente à Pablo Neruda, ou à um italiano qualquer da máfia siciliana. Meus pés estão enfiados confortavelmente em duas sapatilhas de marca,  que ainda matêm o ritmo. Tudo isso adquirido nas xicalamidade, e a sensação que tenho, vestido assim, é de leveza.

 

Dou um beijo à minha companheira, que traz um guarda-chuva na mão, insistIndo, e eu volto a recusar amavelmente.

 

- Não se preocupe, amor, não vai chover.

 

Voltei a beijá-la, e desta vez não resisti ao impulso de abraçá-la profundamente. Ela também abraçou-me profundamente, no mesmo instante em que trovejava fortemente, agora muito perto de nós, por cima da nossa casa. Senti o amor verdadeiro que vem da parte dela. Dado a um sabujo que sou, que não aceita o protector que vem do carinho de uma mulher mansa.

 

Largo suavemente o corpo quente de uma criatura cândida, e sinto que ela deseja ainda manter-me no seus braços. Mas eu tenho que ir.  Saio sem olhar uma única vez para trás. Meto as mãos nos bolsos do casaco e recebo em retorno uma imensa paz de espírito. Caminho despreocupado. Nem os relâmpagos, nem os trovões me impedem de andar. Livre. Nem o céu negro, que não me assusta, mesmo sabendo que posso ser executado pelo mínimo sopro.

 

Passo pela licheira da Mafurreira e vejo um homem na gandaia, também desinteressado como eu. Quer lá saber dos relâmpagos e dos trovões! Mesmo que chova, qual é o problema? Deixa chover. A chuva não vem de Deus? E eu, não venho de Deus? Então, eu e a chuva somos irmãos do mesmo sangue. Vamos nos abraçar.

 

Não passam cinco minutos desde que saí de casa e lá está a descarga. Forte. O céu negro liberta em catadupa todo aquele vapor cumulado. Sou apanhado em cheio. Nem para trás, nem para frente. E em menos de trinta segundos já estou ensopado. Danado. E não me resta mais nada senão voltar para casa, onde a minha mulher, vendo-me entrar no quintal como um pintainho por demais molhado, vem a correr ao meu encontro, sem o guarda-chuva. Abraçou-me, ali mesmo, debaixo das fortes bátegas, e disse-me assim, és maluco, meu amor!

Sir Motors

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