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quinta-feira, 30 abril 2020 09:10

A última demão

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Sempre que o visse passar em frente a minha casa, lembrava-me Noa. Levava nas mãos o martelo, o formão, o escopro, o serrote...... e a determinação de construir um barco e pô-lo a boiar. Descia nas manhãs, à doca, e de lá só regressava ao princípio da noite, pelo mesmo caminho, com os mesmos materiais de trabalho, com a mesma verve, e com a mesma ansiedade de ver a nau das suas mãos navegando entre as cidades de Inhambane e Maxixe, transportando passageiros insondáveis.

 

Eu nunca acreditei naquela saga. Ou seja, jamais um homem sozinho poderá construir uma embarcação das dimensões que ele pretendia, a não ser que este desafio seja assumido por um personagem de ficção, o que não é o caso, a menos que eu estivesse alucinado. Aliás, o único ser que ergueu uma arca inteira sem ajuda de ninguém, é Noa. Porque ele tinha Deus como o Próprio Armador. E este indivíduo que passa sempre por aqui, em frente a minha casa, parece caminhar no escuro. Deve ter armadores invisíveis que se apossaram dele para o atormentar.

 

Foram anos a fio de trabalho, e a medida que o tempo passava, o meu pessimismo parecia que ia sendo desmentido. Aparentemente! Porque o barco compunha-se, gradualmente, para arrepio de todos. Como é que uma pessoa sozinha, sem ajuda de ninguém, é capaz de protagonizar tamanha proeza! E logo lembrei-me de um homem que, olhando para arca de Noa pronta para a navegação, ridicularizou-a e disse assim, isto não vai a lugar nenhum. E Deus esbofeteou-lhe na boca.

 

Eu também estou a ser vergastado, não pela Mão de Deus, mas pelos meus próprios pensamentos. Este armador solitário está a avançar, rindo-se silenciosamente de todos aqueles que lhe diziam, você não vai fazer nada sozinho. E ainda lhe diziam mais, isto não é uma almadia!

 

Mas essas palavras todas, eram o granizo que caía por sobre a plataforma de betão, desfazia-se em pequenos grãos, e a casa continuava firme, ela própria construída  em cima das pedras, onde moram as águias. Mesmo assim, eu continuava com as minhas dúvidas. Oscilava entre a possibilidade de tudo aquilo vir a ser real, e o cepticismo. Era como se eu estivesse numa sala de cinema, vendo Marlon Brando, no filme Apocalipse Now, de Francis Coppola.

 

Todavia, e para que tudo se materializasse, eis que o homem passa num dia desses - em substituição do martelo e do escopro e do formão -  com duas enormes latas de tinta e diz-me assim, hoje vou dar a última demão (última pincelada de tinta). Fiquei estarrecido.

 

“A arca do Noa” está pronta! A notícia corre devastadora em toda a cidade, e ninguém queria acreditar no que ouvia. E segundo se dizia por aqui, ele construíu o barco sozinho, e é bonito. Meu Deus!

 

Prapara-se o champanhe para a vistoria e consequente aprovação das autoridades marítimas. O dito cujo está confiante como o Noa, que se avulta na proa, desdenhando o dilúvio que vai engolir casas e árvores e montes e montanhas. E o dilúvio é a boca das pessoas. Da minha, também. Pois, o que mata, não é aquilo que entra pela boca, mas o que sai através dela.

 

Agora só nos resta esperar por aquilo que vai acontecer com o testemunho das gaivotas e dos flamingos e de outros pássaros marinhos, e do próprio mar que estará calmo, dando-nos a sensação de paz. Há uma expectativa envergonhada por tudo o que falamos sem medida, diante do silêncio do homem que construía aquilo que ele pensava ser a própria vida. Um sonho que entretanto foi destruído pelos vistoriadores que não tiveram meias palavras, “este barco tem que ser desconstruído e recomeçado, tem erros graves”.

 

Raios! O que aconteceu é que a embarcação voltou para a doca, de onde nunca mais saíu. Aliás, foi sendo retirada aos pedaços, para produção de lenha.

Sir Motors

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