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quarta-feira, 10 junho 2020 06:33

Estatuto Especial do Líder do Segundo Partido com Assento Parlamentar

Escrito por

Um avanço democrático com elevados riscos para a Renamo

 

Por Ericino de Salema[1]

 

*  Actual presidente da Renamo se destaca como “homem de Estado” ao aceitar o Estatuto de Líder da Oposição, mas corre o risco de ver o seu partido transformado em “organização de massas” do partido no poder

 

*  Ossufo Momade perdeu, ainda que ilegalmente, o direito de fixar o seu próprio salário (privilégio que Armando Guebuza concedera a Afonso Dhlakama em 2014), mas ganhou direito a subsídio de reintegração...

 

Embora a Constituição da República de Moçambique (CRM) já conferisse um certo estatuto ao segundo candidato presidencial mais votado, ao considerar-lhe membro de pleno direito do Conselho de Estado, em termos de legislação ordinária nada havia no país até finais de 2014, momento no qual foi aprovado o Estatuto Especial do Líder do Segundo Partido com Assento Parlamentar, através da Lei número 33/2014, de 30 de Dezembro, que efectivasse tal situação.

 

Finalmente regulamentada no passado mês de Maio (mais de cinco anos depois da sua aprovação), através do Decreto número 27/2020, de 8 de Maio, o Estatuto Especial do Líder do Segundo Partido com Assento Parlamentar – que é, na prática, Estatuto do Líder da Oposição, apesar de o legislador ter-se escusado a usar essa terminologia – é visto, nalguns círculos, como uma “almofada política” visando, supostamente, acomodar Ossufo Momade, o líder da Renamo, qual sucedâneo do finado Afonso Dhlakama, que terá deixado claro, desde o início, que não aceitaria aquele estatuto.

 

Seja como for, o que é facto é que a outorga de estatuto especial ao líder da oposição ou do segundo maior partido com assento parlamentar e que não faça parte do governo não é algo exclusivo de Moçambique, mas uma prática em quase todas as democracias dignas do mundo, sendo ele representante de uma franja significativa da população e, por isso, merecedor de dignidade por parte dos próprios estados. Contudo, o contexto em que o mesmo surge[2] e se consolida em Moçambique há-de estar a suscitar as desconfianças que existem à volta do mesmo[3].

 

No Reino Unido da Grã-Bretanha e no Canadá, por exemplo, o líder da oposição, que deve ser sempre um parlamentar, tem um estatuto especial. No Reino Unido, o líder da oposição ganha anualmente perto de 145 mil libras esterlinas, o equivalente a pouco mais de 12 milhões de meticais, quase o dobro do salário de um parlamentar ordinário. No Canadá, a mesma figura leva anualmente para casa pouco mais de 260 mil dólares canadianos, o equivalente a cerca de 13 milhões de meticais, o mesmo que aufere um membro do governo.

 

Na África do Sul, o líder da oposição leva anualmente para casa cerca de 1.600.000,00 randes, o equivalente a cerca de sete milhões de meticais. Além do salário, possui uma panóplia quase infindável de benefícios e regalias, incluindo, por exemplo, cerca de 100 viagens pagas por ano, mobiliário para o seu gabinete de trabalho, assessoria paga pelo Estado, viagens pagas para os seus dependentes, acomodação luxuosa quando em actividade parlamentar e seguro de acidentes pessoais.

 

 O regime jurídico do Líder da Oposição é, na verdade, aplicável “ao dirigente do partido da oposição que, por acórdão do Conselho Constitucional de validação e proclamação dos resultados das eleições gerais, seja considerado o Segundo Partido Mais Votado”[4], num quadro em que “É Líder do Segundo Partido com Assento Parlamentar aquele que, nos termos dos respectivos estatutos, reconhecidos pelo órgão competente do Governo, tenha sido legitimamente designado seu dirigente máximo”[5].

 

Se o diploma legal que aprova o Estatuto do Líder da Oposição estabelece que “o primeiro cidadão que beneficiar do presente estatuto tem o direito de fixar a [sua] remuneração e os subsídios correspondentes, nos termos da lei”[6], o regulamento do respectivo estatuto vem estabelecer, em moldes diversos, que “o Líder do Segundo Partido com Assento Parlamentar tem direito à remuneração equiparada à da função de Vice-Presidente da Assembleia da República”[7].

 

Sendo pouco crível que Afonso Dhlakama, que era líder da Renamo aquando da aprovação e entrada em vigor da lei, ainda que carecesse ainda de regulamentação, tenha escolhido a sobredita remuneração mensal por equiparação – até porque parece não restarem dúvidas de que ele abdicou dessas benesses –, o que é certo é que acha-se evidente um downgrading de Ossufo Momade…e com uma clara violação à técnica jurídica e à hierarquia das leis, não sendo aceitável que um regulamento contrarie uma lei, que lhe é superior.

 

Mesmo assim, e ainda que Ossufo Momade mantenha o amplo leque de direitos e regalias constantes do Estatuto do Líder da Oposição – tendo, aliás, até conseguido de bónus o direito ao “subsídio de reintegração”, tal como se desenvolverá mais adiante –, para algumas situações concretas ele é equiparado aos membros do Governo (ministros).

 

Tal é o caso, por exemplo, da viatura de trabalho, estabelecendo o Estatuto do Líder da Oposição o seguinte: “o Líder do Segundo Partido com Assento Parlamentar tem direito (…) a uma viatura protocolar da marca, cor, série e cilindradas idênticas aos dos membros do Governo”. Do parque automóvel de Ossufo Momade, constam ainda uma viatura ligeira, para o seu “expediente residencial”, além de uma outra para alienação.

 

Dignidade genuína?

 

Se, tal como dissemos acima, a atribuição de estatuto especial ao líder da oposição é algo por demais normal em democracias avançadas, em Moçambique tal é visto como tendo o potencial de enfraquecer o segundo maior partido da oposição, probabilidade que há-de estar a ser considerada tendo-se como base a “jurisprudência” fixada por Afonso Dhlakama, alegadamente de recusar tal estatuto.

 

“As pessoas confundem esse estatuto como se fosse para Dhlakama. Por isso andam rumores de que fui comprado por uma casa e salário…mas não é isso que eu quero. Eu quero uma democracia efectiva no país”, terá assim reagido o falecido líder da Renamo, quando interpelado a propósito por jornalistas na cidade da Beira[8]. Dias depois, em artigo intitulado “AR legaliza instrumento de golpe eleitoral”, o CanalMoz referiu que “Dhlakama já disse que não quer tal estatuto”[9].  

 

Dada a relevância política em ser-se oposição oficial, num contexto em que o líder do partido político nessa condição é o líder formal da oposição, há até partidos políticos que aplicam-se ao máximo para conseguirem esse desiderato, tendo presente, à partida, que ganhar eleições é-lhes algo impossível, pelo menos em certa eleição em concreto. É o que se viu, por exemplo, com o partido Economic Freedom Fighters (EFF) nas eleições de 2019, na vizinha África do Sul, nas quais o seu objectivo cimeiro era destronar o Democratic Alliance dessa posição. 

 

A essência do que significa liderar a oposição é nestes termos descrita pelo político neo-zelandês Don Brash, na altura líder do National Party:

 

“O principal papel da oposição é questionar o governo do dia e pô-lo a prestar contas ao público. O partido que é oposição oficial representa uma alternativa ao governo, sendo responsável em desafiar as políticas do governo do dia e em produzir políticas alternativas onde tal se mostrar apropriado”[10].

 

Não sendo barato fazer política a sério e sendo os partidos políticos plataformas por excelência para a contínua participação dos cidadãos na gestão da coisa pública, é por isso que todos os partidos com assento parlamentar recebem dos governos dos seus países, Moçambique incluso, recursos financeiro para as suas actividades políticas. O que se assume como líder da oposição recebe muito mais quando comparado com os demais, competindo-lhe fazer essas políticas alternativas. 

 

Comumente, a oposição oficial possui acesso privilegiado aos órgãos públicos de comunicação social, para neles fazer réplica política. Em Moçambique, a CRM[11] reconhece esse direito aos partidos representados na Assembleia da República (AR), mas o mesmo sempre se manteve letra morta, supostamente, tal como tem alegado, ao longo dos anos, a Televisão de Moçambique (TVM) e a Rádio Moçambique (RM), por carecer de regulamentação. Estranhamente, nem na lei que aprova o Estatuto do Líder da Oposição, muito menos no decreto que a regulamenta, tal se acha finalmente acolhido, o que é uma oportunidade perdida para a Renamo fazer política a sério.

 

Condições teóricas para a Renamo melhorar, mas…

 

Numa altura em que a sociedade ainda digere as notícias sobre os subsídios de reintegração que são legalmente atribuídos a deputados e outros governantes em Moçambique, ainda que em desarmonia com o princípio constitucional de justiça social, o decreto que regulamenta[12] o Estatuto do Líder da Oposição trás uma “grande inovação”: a atribuição, ao político que seja dirigente máximo do segundo partido mais votado, de um subsídio de reintegração.

 

O mesmo “corresponde a 75% do vencimento base, por cada doze meses de exercício efectivo do cargo, desde que a perda da qualidade de Líder do Segundo Partido com Assento Parlamentar não tenha sido fundada em condenação à pena de prisão maior, pela prática de crime doloso[13]”.

 

Além de remuneração equivalente à de Vice-Presidente da AR, subsídio de representação (20% do salário base), meios de transporte, subsídio de comunicação e viagem em primeira classe, figuram na lista das regalias do líder da oposição moçambicana, que neste momento é Ossufo Momade:

 

§  Gabinete de Trabalho, alocado, equipado e mantido pelo Ministério da Economia e Finanças (MEF), com pessoal de confiança (assessor, assistente financeiro, secretário particular, motorista e estafeta) pago por fundos públicos;

 

§  Residência oficial, igualmente alocada, equipada e mantida pelo MEF, de que faz parte pessoal de apoio (motorista, cozinheiro, servente de mesa, servente de limpeza, mainato e jardineiro) pago pelo Estado;

 

§  Assistência médica e medicamentosa para o líder da oposição como tal, bem assim para o seu cônjuge e filhos menores e incapazes;

 

§  Regime especial de segurança e protecção, que sejam exclusivamente garantidos pela Polícia da República de Moçambique;

 

§  Ajudas de custo, em caso de deslocações nas missões de serviço do Estado, dentro ou fora do país, incluindo as incumbidas pelo Chefe do Estado.

 

Quanto às contratações do acima referido pessoal de confiança, o regulamento do Estatuto do Líder da Oposição diz que os mesmos são engajados por via de contrato por tempo certo, nos termos da Lei do Trabalho, para um período máximo de cinco anos, carecendo esses contratos de visto do Tribunal Administrativo, do que ressalta mais um problema jurídico: a prazo certo, a Lei do Trabalho não permite contratações por períodos superiores a dois anos, renovável uma única vez, o que perfaz um máximo de quatro anos[14].

 

Embora existam os que olhem com desconfiança à flexibilidade de Ossufo Momade de se alinhar com o que sucede por outras geografias, o facto de ele não estar a associar a questão da consolidação do Estatuto do Líder da Oposição com a regulamentação, por exemplo, de institutos jurídicos que possuem dignidade constitucional há cerca de 30 anos, como a réplica política, pode dar razão a leituras tais, sobretudo num quadro em que, como que à guisa de um clientelismo dissimulado, até ganha o direito ao subsídio de reintegração, mas sem se movimentar substancialmente no sentido de essas condições materiais se traduzirem em investimento qualitativo da democracia moçambicana.

 

Registos em nosso poder indicam que a única vez que a Renamo – que em todas as eleições legislativas realizadas no país foi sempre, formalmente, o segundo partido mais votado – constituiu, de forma sistemática, um ‘Governo Sombra’, qual apanágio da oposição oficial, foi em princípios de 2005, meses depois do recrutamento, a partir da academia, de políticos como Eduardo Namburete, Ismael Mussá, João Colaço e Manuel de Araújo.

 

Contudo, Ossufo Momade tem uma soberba oportunidade de desmentir os seus críticos, transformando a Renamo numa oposição cada vez mais profissional, tendo nisso sempre presente os riscos associados ao Estatuto de Líder da Oposição, sob pena de, sem se aperceber, tornar o partido de que é dirigente máximo na mais nóvel organização de massas do partido no poder, a Frelimo.

 

Eis algumas das acções que, a nosso ver, Ossufo Momade deveria considerar urgentemente, para honrar a contribuição dos moçambicanos...até com subsídio de reintegração:    

 

1.           Ossufo Momade deve tornar público o Plano de Actividades e Orçamento para o seu gabinete, com o que estará a efectivar a prestação de contas aos contribuintes, em geral, e, em particular, aos moçambicanos que votaram em si e nele acreditam como “alternativa política” para Moçambique. Idealmente, poderia, mesmo com recurso às Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), elaborar o referido plano de forma participativa;

 

2.           Sendo, enquanto líder da oposição, materialmente um servidor público, Ossufo Momade deve ter presente que lhe são aplicáveis as normas éticas constantes da Lei de Probidade Pública, além, naturalmente, das normas de gestão de fundos públicos, devendo ter presente que agir em sentido desconforme com instrumentos tais pode ser-lhe, um dia, politicamente desvantajoso e fatal;

 

3.           Ossufo Momade deve considerar fortemente a formação de um ‘Governo Sombra’, que seja, de resto, responsável pela execução do seu “programa quinquenal”, com o que estará a fazer oposição política de forma sistemática e justificando os fundos públicos que lhe são alocados entanto que líder da oposição;

 

4.         Por outro lado, há que cuidar da aprovação de uma Lei de Réplica Política, com a qual passaria, por exemplo, a ter acesso aos media públicos, sucedendo o mesmo com os membros do seu ‘Governo Sombra’;   

 

5.           Desenvolver uma agenda que mostre que o estatuto a ele atribuído não é uma dádiva do poder do dia, mas um processo institucional de consolidação da democracia.

  

[1] O autor é Director Residente do EISA em Moçambique. O texto foi retirado do Policy Brief 6 do EISA, publicado ontem, 9 de Junho.

 

[3] Reinstalação nos meios urbanos de Ossufo Momade, presidente da Renamo, no âmado do processo de Desarmamento, Desmobilização e Reintegração (DDR).

 

[5] Número 2 do artigo 2 da Lei número 33/2014, de 30 de Dezembro.

 

[7] Artigo 2 do Decreto número 28/2020, de 8 de Maio.

 

[11] Artigo 49.

 

[13] Número 2 do artigo 10 do Decreto número 28/2020, de 8 de Maio.

 

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