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segunda-feira, 08 novembro 2021 05:24

Restos mortais de um País…

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Quando a funerária meteu-se no cemitério com o cadáver do país enrolado num pano branco e trancado no caixão, os soluços dos presentes começaram a espumar. Eram soluços breves que decaíam das gargantas como pequenas cascatas. O país estreava-se no cemitério depois anos e anos lutando contra um cancro da corrupção.

Um fulano qualquer, metido em uma gigante bata, com o pescoço preso por colarinho branco como uma cadela, tropeçava a vista em páginas da constituição procurando pelos cânticos da despedida. Organizava a cerimónia e, de instante a instante, chamava o povo para perguntá-lo sobre os dados do óbito; nome, data de nascimento, filiação.

O caixão foi poisado e a boca da cova com dentes bem afiados por pás aguardava para engolir os restos do país. O país estava nu no caixão, tal qual sempre andou em vida. Depois de morrer não foi preciso deslizar as pestanas dos seus olhos, o país sempre andou de olhos fechados. Os coveiros da função pública ali estavam com canhões de pás para disparar contra o cadáver do país e irem-se embora antes das quinze e trinta.

 

E todos queriam despedir-se do país que foi evacuado pelos pés pelo cancro da corrupção no hospital central. Os tribunais envelhecidos por processos arquivados, os ex-presidentes suportando a velhice em muletas de poder, os senhores deputados sonecando sobre o fardo das suas barrigas cheias de subsídios.

 

Recordo-me de ter visto todas as províncias metidas em luto e evacuando bolhas de lágrimas em lencinhos. Um bando de jornalistas, sem dó, disparava setas de flash ao caixão do país e um exército de moscas, nas bordas do caixão, afinava as antenas para roer o muco do cadáver e os restos que o cancro não conseguiu engolir.

 

O fulano que dirigia a cerimónia leu artigos de consolação, recitou versos do hino nacional, encheu o cemitério de cânticos e decretos de esperança e desparafusou o caixão para a última despedida; as moscas antenaram-se sobre os despojos do país. “Esse país cheira mal”, disse um ministro.

 

No adeus. Primeiro foram os tribunais que foram sacudir uma vénia ao caixão, depois seguiram os ministros que tentavam fermentar lágrimas, depois seguiram as forças armadas que se comprometeram a proteger com honra e coragem o túmulo do país e depois os senhores deputados saindo, um a um, do túnel da soneca foram dizer adeus ao país.

 

O povo foi o último a despedir-se do país. Como sempre, apresentou-se com uma camisa descosida que não escondia a enorme barriga cheia de tripas e coágulos de fome, o povo que assistiu ao cancro do país sem se importar, o povo que no lugar de correr com as receitas para curar o país, corria com boletins de voto, o povo que elegia o melhor cancro para o país. O povo chorou perante o cadáver do país, mas a cerimónia teve de continuar, porque o povo nunca fez nada para que o país continuasse vivo.

 

O caixão desceu à boca da cova, as pás começaram a fazer o seu trabalho e as formigas exigiram subsídio, pois não queriam devorar um cadáver que já tinha sido esvaziado pela corrupção.

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