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quarta-feira, 05 janeiro 2022 06:18

Poucas vezes vi a minha mãe inteira

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Parece que a única coisa que as mulheres sabem fazer é dividir tudo e dividir-se em várias. Aos 04 anos via sempre a minha mãe correndo em toda casa, não era a minha mãe, eram as minhas mães porque eram tantas, imensas e atropelavam-se na porta; umas saindo e outras entrando. Uma corria para vestir-me, uma desenhava um nó liso na gravata do meu pai, uma corria com um fósforo em chama para lenhas unidas na fogueira, uma cimentava um botão na blusa da minha irmã, uma removia o silêncio das paredes com espanador de cançonetas e outra varria a casa inteira sem se importar com a outra que entrava de pernas sujas para acordar os meus irmãos que dormiam no mesmo quarto. A minha mãe dividia-se em várias e dividia tudo.

 

À hora do almoço sentava-se connosco à mesa, tirava do saco de pão uma enorme fatia de tempo e começava a dividi-la em pedaços: a fatia mais enorme era do meu pai, as outras médias eram dos meus irmãos e eu ficava com a última fatia; tinha tempo para todos, menos para ela. Ela dava-nos pedaços de tempo com a manteiga do seu sorriso e por vezes esquecia-se de deixar um pedaço para si. As migalhas de tempo que sobravam dava aos gatos e cães. E fui crescendo com a ideia de que uma mulher só vem ao mundo para dividir-se em várias e dividir tudo.

 

Poucas vezes vi a minha mãe inteira, completa comigo, sem partes dela mexendo em diversas coisas ao mesmo tempo; todas vezes chegava-me em um pedaço tão inteiro e cheiroso e ninguém, em casa, reclamava da sua ausência pois sabia dividir-se em várias.

 

Não sei se é por amor que ela se dividia, mas havia algo tão quente quando ela se dividia em várias, tão intenso e mais pesado que o amor. Recordo-me das noites em que a febre incendiava o desgraçado do meu pai e ela conversando com ele no quarto, mas mesmo assim ouvindo-a aquecendo água na sala, mas mesmo assim ouvindo a sua voz falando com os meus irmãos.

 

Ela dividia-nos a todos a fatia de tempo sem a deixar para ela, ela que já nos tinha dividido o leite do seu peito, seu colo cheio de baloiços de carinho, suas mãos ocupadas em carregar o mundo inteiro. O meu pai dividia-se apenas em dois: ele e ele. E sempre dizia à minha mãe: “quero água quente para o banho, ponha os miúdos limpos, o aparador está cheio de poeira, peço um chá bem quente”; e a minha mãe dividia-se em tudo, fazia tudo.

 

Chegavam os dias em que o meu pai trancava a minha mãe no quarto e todos entalados na sala ouvíamos ela a chorar, objectos sendo derrubados e insultos evaporando em toda casa; depois de tanto tempo saía com o rosto inchado e naquele momento dividia-se em duas mulheres: uma triste e outra feliz que nos lambia as cabeças com a língua das mãos. Nos dias tristes a minha mãe peneirava a tristeza e a colocava de lado e punha-se a dividir com todos os poucos bagos de alegria que encontrava dentro dela.

 

Falei agora com uma cabo-verdiana que me disse que sentia a voz da mãe em sua casa; a mãe que faleceu em 2005. E eu iniciei a conversa com ela do jeito que agora termino este texto: “as mães dividem-se em todos momentos, nem a morte divide o ofício de se dividir das mães”.

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