Quem de nós não morre quando todos morremos em Muidumbe?
Quem sobrevive incólume diante dos impiedosos algozes
daqueles nossos infaustos concidadãos de Muidumbe?
O sacrifício dos que foram assassinados em Muidumbe
não é bastante para sangrar os jornais além das efémeras notícias
que não abalam a nossa moçambicaníssima complacência?
Quem fica de joelhos pelos mortos de Muidumbe?
A galhardia daqueles que foram metralhados
sem comiseração
em Muidumbe
não sufraga a honra das nossas ruas?
Por que nada exigimos?
Por que razão nenhum clamor fazemos?
Os nossos punhos não se compadecem
por todos os que morreram por nós em Muidumbe?
Os mortos de Muidumbe não concitam a nossa dor?
Os mortos de Muidumbe desmerecem a nossa compaixão?
Os mortos de Muidumbe não tributam o nosso sofrimento?
Somos misericordiosos com os outros mortos
e postergarmos os nossos mortos de Muidumbe.
O sangue vertido em Muidumbe não é nosso sangue?
Onde estão as vigílias
as velas
as praças exaltadas?
As missas
liturgias
eucaristias.
Nenhuma cidade se levanta perante os mortos de Muidumbe.
Porquê?
Os mortos de Muidumbe resistem sem rosto.
Os mortos de Muidumbe são apenas um número
para a estatística
para o cadastro
para o catálogo da nossa humilhação colectiva
para a recensão da desonra
para o arquivo e para o esquecimento.
Os mortos de Muidumbe não cantam.
Os mortos de Muidumbe não falam.
Os mortos de Muidumbe não reclamam.
Os mortos de Muidumbe não sonham.
Os mortos de Muidumbe não gabam a quimera dos seus epitáfios.
Nem esperam o requiem dos outros defuntos.
Os seus gritos não conclamam os deuses
porque os deuses estão ensimesmados com outros mortos.
Os mortos de Muidumbe foram enterrados
mas permanecem insepultos.
Nenhuma necrologia inscreve os seus nomes.
Os jornais não têm letras de sangue
para os que morreram em Muidumbe.
Não há obituários para os mortos de Muidumbe.
Os jornais são omissos quanto ao massacre de Muidumbe
o genocídio de Muidumbe
os fuzilamentos de Muidumbe
o extermínio de Muidumbe
a carnificina de Muidumbe.
Os mortos de Muidumbe perseveram no anonimato
como os decapitados de Mocímboa da Praia
Quissanga
Mueda
Palma
Metuge
Macomia
a Norte onde se aniquila o futuro do nosso passado.
Os mortos de Muidumbe não desconsolam o mundo
o mundo está assoberbado com outros mortos
o mundo urge para os outros mortos
o mundo não tem empatia com os mortos de Muidumbe.
Há um pérfido alheamento pelos mortos de Muidumbe.
Os mortos de Muidumbe não fazem parangonas
não abrem telejornais.
Quem morremos com os mortos de Muidumbe?
Será que não morremos todos com os mortos de Muidumbe?
Ninguém de nós se condói pelos mortos de Muidumbe?
Que país é este que não se enternece com os mortos de Muidumbe?
Os nossos pêsames
a nossa consternação
a nossa comiseração
a nossa humanidade
não são dignos dos mortos de Muidumbe?
Que luto é este que escolhe não velar os mortos de Muidumbe?
Que mortos sufragamos nós para carpir as nossas lágrimas?
Que angústia é essa tão insolente quanto aos mortos de Muidumbe?
Que silêncio é este perante o silêncio dos que foram silenciados em Muidumbe?
Quem de nós não morre quando todos morremos em Muidumbe?
Nelson Saúte
Junho de 2020
Está no fim da estrada e mantém a dignidade dos tempos. Não verga. Quanto mais perto da meta, mais pujança na sua personalidade. É como se estivesse num grande estádio a abarrotar, sentido as palmas que a catapultam. Sabe que já não terá mais forças do que estas que estão no limite, por isso usa-as até ao limite. Não recorre aos anabolizantes, os anabolizantes é a música do passado, que repete sem se cansar no seu inacreditável gira-discos, daí a frescura transbordante da Mwali, recolhida numa casa transformada em Meca, onde os amigos vão regularmente para ouvir as histórias de uma era pura, que parece voltar em cada palavra.
Vive na orla do mar, de onde continua a usufruir, como sempre desde a nascença, da pompa de uma paisagem fascinante que se estende a seus pés. Dali ela acompanha o movimento dos pescadores, que muitas vezes voltam com os cestos vazios, depois de longas horas puxando as redes de emalhar ou de arrasto, ou ainda das mulheres, que ao cair da noite descem com as pequenas redes de pesca de camarão, e regressam também derrotadas, sem nada. Mas há muitos momentos também, que Mwali testemunha o festejar da faina farta.
Ela é a nossa secerdotisa, colocada no lugar de sumo pontífice, posto conquistado pelas “homilias” inacabáveis que inocula para que, segundo ela própria, pelo menos nos recordemos da existência do Criador do Céu e da Terra. E dos Homens. Mas Mwali por vezes exagera, se calhar levada pelas emoções de um ambiente borbulhante, que nos espicaça a querer voltar sem cessar, num ciclo vicioso, para aquele lugar que nos entusiasma. Citou, numa das recentes ocasiões, sem saber que provocaria um efervescente debate, uma vez que está habituada a ser ouvida sem grandes questionamentos quando evoca a bíblia, uma passagem que nos pareceu ser um contra-senso.
Normalmente nunca temos o livro Sagrado por sobre a mesa, para aferir o que vamos ouvindo da Mwali. O que ela diz é por demais caudaloso, tão profuso que nos limitamos a abanar a cabeça em sinal de consentimento, como vassalos, virando goela à baixo, de vez em quando, uma cachaçazita sempre disponível, para aclarar a mente. Mas nesse dia as coisas mudaram de rumo. Segundo Mwali, no Salmos, cap. 21, David diz o seguinte: “o que me magoa, é que o Altíssimo já não é o mesmo”. Perante esta afirmação, um dos companheiros virou-se para Mwali e disse, isso não é verdade! Não sou leitor da bíblia mas Deus sempre foi o mesmo desde que existe, quem não é o mesmo somos nós. Deus não é metamorfo.
No lugar de o ambiente gelar, uma vez que a “raínha” era posta em causa pela primeira vez, a “afronta” tornou-se motivo para voltarmos a encher os copos e desligar o gira-discos que tocava, em disco de vinil, a música de Percy Sledge, When a man loves a woman. Pedimos a bíblia, e Mwali disse que não tinha bíblia, porém - como nos afiançava - o que ela dizia era a pura verdade, e que se quisessemos nos certificar disso, então podemos ir consultar nas nossas casas. E é o que vamos fazer, enquanto aguardamos o próximo enconto que já está a criar emormes expectativas.
Quando os tamancos se comunicaram com o chão da terminal rodoviária da “junta” na periferia da cidade de Maputo, produziram um estrépito chamativo. O jovem que os calçava não se importou com os olhares folgazes de que era alvo.
Foi um dos últimos a desembarcar do autocarro interprovincial proveniente de Chókwè na província de Gaza.
Os seus admiradores miravam-no curiosos e deixavam escapar uma risada, o recém-chegado percebeu que criava impacto no seio das pessoas próximas.
- Onde apanho um chapa para a baixa? – questionou para um dos utentes da terminal rodoviária
Caminhou sereno segurando uma mala velha e pesada, usava um chapéu de palha com abas pequenas, a jaqueta de couro castanho desgastada e ligeiramente pesada descaía no ombro direito, exactamente do lado da mão que segurava a mala. A camisa de capulana com as cores amarelo e vermelho era suplantado pelo casaco, as calças eram de caqui verde-escuro.
Não demorou para embarcar no chapa, os passageiros abriram alas para deixa-lo passar admirando suas vestes, uma moça vagou o lugar e o ofereceu.
- Obrigado! - proferiu com um sorriso alegre no rosto.
O chapa marchava velozmente ultrapassando os outros carros, este malabarismo perigoso agradava a Carlos Wena que vinha pela primeira vez a cidade de Maputo com a mente repleta de sonhos que pretendia realizar. Vinha animado depois de receber o convite do seu primo que triunfara na grande metrópole.
O desembarque na baixa da cidade deixou-o atónito, olhava para cada canto da cidade intimidado pelos monstros de cimento que se erguiam por todo lado, os carros que circulavam velozmente dum lado para outro deixavam-no desorientado. Ficou parado por um tempo, estudando o ambiente que morava ao seu redor, temia dar um passo em falso que podia comprometer a sua chegada a grande cidade.
Posicionou a sua mala no chão, sentou sobre ela e procurou organizar as ideias, já passavam das 15h00.
Uma turba de petizes em gozo de férias escolares deu com o alegórico personagem de Carlos, pararam e olharam-no maravilhados, riam e trocavam conversa.
Já descansado pegou na sua maleta e iniciou a caminhada seguida de perto pelos meninos que multiplicaram as suas risadas agora que o viam em movimento.
A sua derradeira jornada seria até a casa do primo no bairro suburbano da polana caniço nos arredores da cidade.
Os meninos depois de consumirem momentos de alegria gratuita partiram para outras brincadeiras.
A vitrina com letras garrafais do nome do estabelecimento avivaram sua mente e recuperou uma imagem que guardava num canto especial da sua mente.
O jovem forasteiro entrou para o estabelecimento comercial, abeirou-se do balcão, descansou a sua mala no chão.
- Sim, se faz favor? Investiu o balconista.
Ainda distraído, o recém-chegado apreciou o ambiente que por ali morava durante um tempo e cabisbaixo falou para o balconista.
- Quero falar com o rei – disse convicto.
O balconista vigiou demoradamente o estranho cliente, e ainda perplexo perguntou:
- Como disse?
- Quero falar com o rei - repetiu o forasteiro seguro do que buscava.
Pela indumentária e o gesto meio aparvalhado, o atendedor ajuizou que o homenzinho devia estar desprovido de sanidade mental. Então decidiu embarcar na brincadeira.
- Meu senhor, somos um estado semipresidencialista, isto para dizer que temos um presidente que por coincidência foi reeleito a bem pouco tempo. – gabou-se o balconista dos seus dotes políticos.
- Mas eu quero falar com o rei! – insistiu sereno, o estranho cliente.
- Meu jovem, nós, a República de Moçambique não é uma monarquia. – frisou o balconista cada vez mais convicto dos seus saberes.
- Meu senhor, saiu na televisão a dizer que o rei chegou, até falam em inglês “the king is here” – assegurou Carlos sereno de que a sua explicação poderia elucidar o balconista.
Já meio irritado com a insistência parva do cliente, o atendedor procurou ignorar a investida do recém-chegado e deu atenção a um outro cliente.
Um curioso que destrinçava o diálogo entre o balconista e o pomposo cliente, processou a pretensão de Carlos, levantou-se e o abordou.
Depois de uma breve intersecção verbal, o curioso pousou teatralmente uma garrafa no balcão, Carlos abriu os olhos e largou um sorriso rasgado, segurou a garrafa que o ofereciam e agradeceu imensamente aquele anjo que soubera interpretar as suas aspirações.
- Eu sabia que o rei estava aqui! Afirmou felicíssimo – Muito obrigado mano.
E então bebeu, bebeu prazerosamente a cerveja.
Sinceramente! Será que era mesmo necessário que a Assembleia da República enviasse uma carta ao Tribunal Administrativo a solicitar um atestado sobre o estado de ética de Gustavo? Precisava mesmo?! Será que a dúvida sobre o dito cujo ser detentor de uma mão-leve era assim tão grande?! Será que não se podia esclarecer isso internamente, em vez de se gastar papel, tonner, carimbo, assinatura, agrafador, envelope, cola, combustível, tempo, etecetera, do Estado?!
Mas, também era necessário o Tribunal Administrativo fazer uma esteira daquele tamanho para responder à solicitação da Assembleia da República?! Aquele festival de vocábulos todo só para dizer que Gustavo roubou - sim -, foi condenado e ele não gostou da condenação e recorreu?! Custava alguma coisa dizerem simplesmente "senhores deputados, respondendo à vossa solicitação, temos a dizer, sem evasivas nem subterfúgios, que esse madala aí não presta... é gatuno, mas ele não não gosta de assumir!" e ponto final?! Aquelas voltas todas eram desnecessárias.
Também acho desnecessário o tempo de espera para ter uma resposta a um recurso da decisão do tribunal. Quase uma década a espera da tramitação de um recurso?! Assim qualquer ladrão esquece que roubou! Quer dizer, as vezes o Gustavo chega mesmo a acreditar que é inocente. É que já mamou a mola e esqueceu e, como nunca entrou na "djela", acaba acreditando mesmo que nunca roubou. Com o avanço da idade, coadjuvado por consumo desproporcional de poções etílicas e ervas daninhas, é normal que o Gustavo diminua paulatinamente os seus intervalos de lucidez e passe a acreditar na sua esquizofrenia de bom moço. Pode ser que, quando ele diz que é inocente e que nunca roubou, esteja a falar de boa fé. Pode ser que, no fundo do seu coração, o Gustavo acredite mesmo que seja um cidadão ético. É muito tempo de liberdade para um gatuno!
Enfim, está aí a certidão do acórdão do Tribunal Administrativo para "clarificar e aferir a idoneidade de um dos candidatos a membro da Comissão Central de Ética Pública" que mostra claramente que o fulano em questão não passa de um insurgente urbano de terno e gravata e português polido que se aproveita dos corredores do lambe-botismo criados pela FRELIMO para sequestrar o Estado moçambicano. Um charlatão de perigosidade nível 4.
- Co'licença!
O 1º presidente da FRELIMO, Eduardo Mondlane (1920-1969), sociólogo e antropólogo, completa 100 primaveras a 20 de Junho. Em jeito de antecipada celebração seguem as duas cenas abaixo e retorno mais abaixo.
Cena 1
Mondlane é apontado como o arquitecto da unidade nacional. Amiúde tem aparecido em discursos políticos, sobretudo de membros de sucessivos Governos e do partido que o suporta. Em tais discursos oiço apenas terceiros (falando dele), mas não o oiço (a voz de Mondlane). E sobre ele não consta que tivesse sido mudo. É estranho que um arquitecto nunca fale da sua obra, particularmente das que fazem diferença. Idem para as obras problemáticas: o arquitecto vem sempre a terreiro em sua própria defesa. E Mondlane quando virá a terreiro? Espero que seja durante as celebrações oficiais dos redondos 100 anos de Eduardo Mondlane.
Que desta vez seja diferente e no lugar do silêncio de sempre, o poder e seus suportes, possam, através da imprensa, exibir vídeos, áudios e escritos de entrevistas, discursos e de outras intervenções de Eduardo Mondlane. Foi e é assim com a figura do 1º presidente do Estado moçambicano Samora Machel (1933-1986), o sucessor de Mondlane na chefia da FRELIMO. Oxalá que desta o partido FRELIMO faça jus a uma das suas marcas: a valorização da tradição e dos bons costumes.
Cena 2
Um pouco antes do 1º período do estado de emergência um amigo levou-me pelo copo a um roteiro nocturno pelos bares do Bairro do Alto-Maé. Já madrugada dentro sai de uma das casas de pasto para apanhar ar puro. Dei alguns passos e sentei-me nas escadas da estátua de Eduardo Mondlane, no mesmo bairro, para um dedinho de conversa com o arquitecto da Unidade Nacional. E em jeito de prenda antecipada pelo 100º aniversário levei-o a um passeio pela avenida com o seu nome. Era o meu segundo roteiro do dia e desta em companhia de alguém que mostrara o roteiro para a independência e não o de bares (risos).
Foi um passeio interessante e de “encontros históricos” com ilustres figuras de gabarito internacional, perfilados em certos cruzamentos da Av. Eduardo Mondlane. Todos lamentaram que o Mondlane tivesse partido tão cedo. O primeiro encontro foi com o ex-presidente da Somália Mohamed Siad Barre (1919-1995) que contara que esteve no Estádio da Machava quando Machel proclamara a independência total e completa de Moçambique. Em seguida foi com o ex-presidente do ANC (África do Sul) Albert Lithuli (1898-1967) que a par de Salvador Allende (1908-1973), ex-presidente do Chile, deposto e assassinado num golpe de estado, agradeceram o apoio e a solidariedade de Moçambique à causa do ANC e a da luta do povo chileno contra a ditadura, respectivamente. Os encontros mais demorados foram com o filósofo alemão Karl Marx (1818-1883) e com o ex- primeiro-ministro da então União Soviética, o russo Vladimir Lenine (1870-1924). Ambos questionaram a Mondlane se a via seguida por Moçambique, no período pós-independência, seria a mesma que ele pensara e, ainda, deploraram a falta de solidariedade da liderança do bloco socialista quando Moçambique mais precisou de seu apoio na década de 1980.
Entre Marx e Lenine, o encontro foi com o ex-primeiro-ministro sueco Olof Palm (1927-1986). Palm, relatara que fora assassinado à saída de um cinema cujo inquérito ainda se encontra em banho-maria. No final, desejou que o país de Mondlane alcançasse um nível de desenvolvimento semelhante ao do seu país. Em seguida e o mais estimulante - talvez porque fora o único que decorrera em língua portuguesa - foi o encontro com o Amílcar Cabral (1924-1973), o líder da revolução guineense e cabo-verdiana, um contemporâneo de Mondlane na luta pelas independências dos países colonizados por Portugal. Cabral contara que um pouco depois da morte de Mondlane também o assassinaram e de que diferente do assassinato de Mondlane, que não se sabe ainda o desfecho, o seu fora esclarecido. O último encontro foi com o ex-presidente tanzaniano Julius Nyerere (1922-1999), velho amigo e quem dera guarida à Mondlane para a libertação de Moçambique. Nyerere lamentar-se-á das lideranças das independências dos países africanos que não souberam traduzir as suas boas intenções em boas e melhores condições de vida para os seus povos.
Depois do encontro com Nyerere, a passeata pela Av. Eduardo Mondlane e com o Eduardo Mondlane chegara ao fim sem que o meu comparsa de passeio abrisse a boca, limitando-se apenas a ouvir. “As tantas é mesmo surdo” pensava eu. Fiz um gesto de que podíamos regressar e nesse instante, Mondlane, apontando para a zona envolvente da esquina da avenida Eduardo Mondlane com a Julius Nyerere, pergunta: “Pelo rumo seguido depois da independência a estátua não devia estar por aqui?”. Em seguida e para o meu susto, ele ainda recomenda: “Pense nisso, Assis Macaé”. Digo susto porque Mondlane tratou-me pelo meu nome.
Antes que o meu amigo desse por minha falta e por isso não demorasse, propus a Mondlane que voltássemos de Chapa, transporte semi-colectivo de passageiros. Pegamos o único Chapa sobrevivente da rota Jardim-Costa do Sol. Eram seis da manhã. Mondlane não cabia em nenhum dos assentos e pedi ao motorista que o deixasse conduzir. E assim e sem que ninguém o reconhecesse, o que é estranho, chegamos ao destino. Neste, tudo estava intacto, incluindo o livro que ele deixara à vista de todos e com a intenção que fosse lido ou levado. Enquanto ele se posicionava, ia abanando a cabeça como quem diz “Esta gente não muda”. Já posicionado e em jeito de despedida, uma leve vénia de cada um e o meu obrigado e um silencioso “Saravá, Mondlane!”.
Regresso ao bar e o meu amigo já lá não estava. De volta à casa fui matutando no que Mondlane quis dizer com a posição da estátua. Lembrei-me que em tempos, em conversa com amigos, foi sugerida a ideia de que a estátua de Mondlane estaria politicamente e melhor no Bairro da Polana, no ponto referido por Mondlane. Nesse local e de costas para a Embaixada de Portugal, o antigo colonizador e da esfera capitalista ocidental, a estátua de Mondlane sinalizaria de que dava costas ao capitalismo ocidental e rumava em direcção ao povo/socialismo. Onde a estátua se encontra, no Bairro do Alto-Maé, Mondlane dá costas ao povo/socialismo e olha/caminha em direcção ao capitalismo ocidental. Porventura tenha sido esta a mensagem quando, em 1989, em plena época de mudanças, a inauguraram. Haja dúvidas? Que Mondlane venha a terreiro.
PS 1: É interessante que o local onde se encontra a estátua de Eduardo Mondlane seja o ponto de referência para a partida de muitas manifestações da sociedade civil, e não só, e em itinerário até a praça da independência. Um fenómeno interessante e algo simbólico, pois se recorre à Mondlane (o ponto de partida) para reivindicar direitos que deviam ser dados por adquiridos com a independência (o ponto de chegada) ou que a partir dela, a independência, os direitos fossem renovados e adequados aos padrões de cada época.
PS 2: No texto passado prometera de que em Junho publicaria apenas dois textos. Um deles é este e o próximo nas vésperas do dia da independência. Este é inspirado em um anterior (Pai, Mondlane não fala?) que publicara, faz um tempo, num outro jornal da praça. No ano passado, recebi de um amigo, que lera o anterior texto, um áudio curto de uma intervenção de Mondlane. A única vez que escutara a fala de Mondlane.
África, a história consagrou-te como sendo o “Berço da Humanidade” e, paradoxalmente hoje te consideram “o novo continente”. Mas não é sobre este paradoxo que aqui pretendo dissertar. É a história que testemunhou desde muito cedo a apetência das potências imperialistas ávidas em explorar os seus recursos, o seu povo e toda uma riqueza que humana, cultural e intelectual.
É sem sombra de dúvidas um continente bafejado pela existência de enormes quantidades de recursos naturais que foram inicialmente vistos como uma bênção mas que muito cedo se tornaram numa maldição que adia o desenvolvimento pleno do continente. Esta maldição traduzida em guerras, genocídios, corrupção, má governação que perpetua a fome, a miséria, as desigualdades entre o povo e adia o grito de liberdade total e completa que tanto almejamos.
Foram mais de 500 anos de uma colonização que quase tudo tirou do chamado “novo continente”. 500 anos de uma epopeia imperialista desenhada e implementada pelo Ocidente e que iniciou com a procura de matéria prima para a incipiente indústria europeia e procura de novos mercados. Com a narrativa das supostas viagens dos descobrimentos a geografia mundial ganhou outra dimensão económica, religiosa, cultural e humana – a hegemonia do norte para o sul foi cimentada e o mundo passou a ser dominado pela palavra civilização que era apanágio do Ocidente imperialista. Seguiu-se ocupação efectiva e partilha de África decidida na célebre Conferência de Berlin onde o continente negro foi dividido em fatias e suas fronteiras redesenhadas ao sabor das potências capitalistas.
A ocupação e exploração de África não respeitou a dignidade da pessoa humana – na verdade ela violou os direitos fundamentais do homem e mostrou uma face arrogante e prepotente do homem branco que escravizou e desumanizou o homem negro; Não se preocupou com a cultura, com a religião nem com a ontologia do africano. Diga-se em viva voz que a escravatura foi um dos actos mais vis, desumanos e vergonhosos que o Ocidente carrega consigo até os dias de hoje. Milhões de homens foram levados em navios cargueiros, do seu habitat original e retirados das suas terras com destino incerto dentro do próprio continente negro, para América do Norte, do Sul (concretamente no Brasil), e espalhados pelas Antilhas Francesas e protectorados Ingleses para os campos de cultivo de cacau, cana-de-açucar, borracha, e outras matérias primas para alimentar a indústria e a economia ocidental.
Em nome da civilização, povos foram separados e culturas foram destruídas; novos hábitos, costumes e maneiras foram instituídas – desafiando o africano a negar sua origem, a envergonhar-se da sua cultura e a declinar seus traços identitários; O novo africano deveria ser instruído para poder fazer parte do mundo dito civilizado.
A civilização permitiu a instrução, a escolaridade e o acesso a um pensar mais elaborado, mais crítico e reflexivo. Um pensar interventivo, mais comprometido com a causa africana e com o direito a autodeterminação. Surge a primeira nata intelectual de afrodescendentes e africanos da diáspora com ideias claras sobre a libertação e independências de África.
Eis que na década 50 dos anos 1900, como corolário da segunda Grande Guerra, assistimos ao retorno dos filhos da terra que ensaiaram os primeiros modelos de independências do continente africano. Ainda que de forma incipiente e tímida, a pesada herança da negritude e do pan-africanismo de primeira geração empurrava a nata pensante à tão sonhada e desejada acção outrora sugerida no célebre Congresso Pan Africano realizado em Manchester em que George Padmore com a famosa afirmação – “É altura de passarmos da teoria à prática”. A partir de 1960 assistimos a uma saga independentista que culminou com a libertação de vários países africanos no jugo colonial, incluindo Moçambique e Angola (duas ex colónias Portuguesas alvo de cobiça durante a Conferência de Berlin e resultado do audacioso Mapa cor rosa).
Uma intelectualidade genuinamente africana e altamente comprometida com os ideais do pan-africanismo, da negritude, do renascimento negro e do empoderamento negro, representada por Kwame Nkrummah, Leopold Senghor, Jomo Kenyata, Ahmed Sekou Touré e mais tarde por Julius Nyerere, Agostinho Neto, Amilcar Cabral, Samora Machel e outros proeminentes lideres, fez eco ao sonho de Marcus Garvey, Malcom X, Luther King, William Du Bois, Aimé Cesaire e outros notáveis teóricos, e fez-nos acreditar que o sonho da autodeterminação podia ser real. A conquista das independências significou muito para os africanos, e gerou uma euforia e expectativa enorme em torno presente e do futuro.
Severino Ngoenha (in Das Independências às Liberdades), num rasgo filosófico-político em que se discorre o processo de legitimação e apropriação da Filosofia pelos africanos tendo como base a racionalidade do africano, passando pelo processo de conquista das independências em África e culminando com uma crítica mais elaborada pela corrente hermenêutica, analisa os ganhos, as perdas e os desafios destas independências. As independências africanas, a meu ver criaram menos liberdade e mais asfixia aos povos. Mudaram-se os actores coloniais e passaram a ser perpetradas atrocidades entre africanos. Vivemos um pouco de tudo, mas não conhecemos o sabor da liberdade.
É de todo inegável a dimensão psicológica que a saga independentista da década 60 causou no povo africano; Houve uma exacerbada expectativa em torno dos países recém independentes e ensaios embrionários de autogoverno, autodeterminação e muitas dúvidas sobre a real capacidade dos estados africanos vingarem na ausência do colono. Os perigos do neocolonialismo muito cedo se fizeram visíveis e em poucos anos muitos países africanos estavam sob graves conflitos internos e guerras civis que devastaram sobremaneira a ainda débil estrutura estatal. Os anos que se seguiram as tão almejadas independências, foram anos de solidificação das ideias nacionalistas, mas também foram anos em que assistiram-se a de conflitos internos nos estados, guerras devastadoras, genocídios e destruição sem precedentes.
Conquistamos as independências mas não conseguimos construir estados capazes de se auto-governarem. E quando conseguimos ensaiar a ideia de um estado fomos muito cedo abafados e aniquilados.
A velha fórmula romana – divide et impera – (dividir para reinar) foi usada para fragmentar ainda mais os estados e abrir as portas ao neocolonialismo na sua versão de ajuda externa e construção da democracia em África. Uma democracia diga-se desajustada ao modelo africano e de certa forma forçada e imposta pelos senhores de Bretton Woods para estados em claras dificuldades económicas. A pressão externa, a situação económica frágil e algumas sanções e interferências externas, abriram uma nova página na relação África e o mundo.
Entre o servilismo a Bretton Wood e a nova Rota da Seda
Gorada a tentativa de ter independências totais e completas, onde nem politica nem economicamente conseguimos ter uma solidez e robustez que permitisse o crescimento e desenvolvimento alicerçados no sonho integrado do pan-africanismo, pouco ou nada restava a África a não ser aderir às Instituições de Bretton Woods e beneficiar-se de empréstimos financeiros, políticas de restruturação económica, e toda gama de ajuda externa provida pelo Ocidente.
Volvido mais de meio século após a conquista das independências, a nova relação entre África e o mundo é basicamente assente na concessão de recursos abundantes em África à multinacionais do ramo extractivo – e África voltara a ser pilhada novamente, mas de forma mais assaz e agora com consentimento dos seus líderes que a pela sua ambição individual e a troco de muito pouco, perpetuam os corredores da corrupção, do nepotismo e da má governação que por cadeia estão atrelados a pobreza extrema, fome generalizada, doenças, péssima qualidade de educação e saúde.
África continua a despertar a apetência das multinacionais ocidentais que lucram com a exploração do recursos, fragilizam a nossa economia com falsos incentivos e adiam o “take off” do nosso continente.
Com a emergência e afirmação no panorama mundial do gigante asiático – a China – com o seu ambicioso projecto denominado “A Nova Rota da Seda”, África entra uma vez mais na equação. A China está presente nos cinco continentes e investiu cerca de US$ 1,9 trilhão. Isso equivale, por exemplo, a 13 vezes o valor do Plano Marshall, utilizado pelos Estados Unidos na reconstrução da Europa durante a guerra fria.
Governos altamente endividados, economias super dependentes da ajuda externa, e estados quase capturados tanto pelo FMI e Banco Mundial, ponderam piscar os olhos a China e entrar na chamada rota, hipotecando uma vez mais os sonhos de milhões de africanos. O capitalismo selvagem ocidental e o comunismo mascarado de Pequim fazem a partilha dos recursos de África e nós africanos uma vez mais apenas lamentaremos e nos socorreremos na famosa teoria da maldição de recursos.
Os recursos em si não são uma maldição mas também não são uma bênção quando mal explorados; Quando explorados de forma não integrada e não planificada eles podem ser a causa de guerras e instabilidade de vária ordem.
No geral os modelos de governação que adoptamos, as políticas económicas e sociais que desenhamos tem se mostrado pouco ajustadas às realidades dos nossos países.
Celebramos mais um aniversário de um continente africano. Mais um aniversário debaixo de lamentações. Mais um aniversário em que os traumas do ontem geraram o medo do hoje se sobrepõem a esperança do amanhã. Em África o amanhã mete medo porque nunca sabemos se ele chegará, e se chegar não sabemos como encará-lo porque não o planificamos. E os anos vão passar, as gerações vão se renovar, mas se a nossa mentalidade continuar a mesma, o nosso continente continuará a ser o que sempre foi – um palco onde todos dançam menos os donos da casa.
E chega de procurar culpados lá fora para a nossa fraca prestação. Os culpados somos nós e nós sabemos o que deve ser feito para que África seja aquele lugar em que reine a paz, a prosperidade, a harmonia, onde a autodeterminação é respeitada, onde os valores, as línguas, as tradições, as religiões e todo mosaico étnico e cultural façam parte do rendez-vous das nações.
Por Hélio Guiliche (Filósofo _ Docente Universitário)