É bom saber que o Conselho Constitucional teimosamente continua a declarar nulos os empréstimos contraídos pela nossa corja de gatunos de estimação em nome do povo. É bom saber que o Judiciário reconhece que o povo não deve pagar fiado que não contraiu. E é bom também saber que o povo está acordado e está a lutar pelos seus direitos.
Contudo, mais do que acordar e fazer "copy and past" de uma dúzia de termos jurídicos e untar com autógrafos da equipa de juízes, é preciso também que se faça um acórdão específico ao senhor ministro da Economia e Finanças, Adriano Maleiane. Mais do que preciso é imperioso! É imperioso acordar esse velhote com um acórdão só para ele.
Acabe-se de uma vez por todas a teimosia desse cota! Não seria necessário escrever muita coisa nem gastar o repertório vocabular jurídico. Era só escrever um parágrafo curto, claro, directo e grosso num vocabulário simples e com direito a um glossário no fim da página. Seria um texto mais ou menos assim:
"Ouça cá, você Maleiane. Nós, Juízes do Cê-Cê, sabemos que você anda a pagar as parcelas das dívidas ocultas que nós já declaramos nulas. Pára já com isso, velhote! Deixa que os gatunos que as contraíram paguem eles próprios! Não sobrecarregue ainda mais o já sofrido povo moçambicano! Não nos aquece a cabeça, você! Quando Nyusi te mandar pagar, liga para a malta! Não seja empata-f*da, cota! Deixa o país desenvolver! Assinado: Lúcia, Ozias, Manuel, Domingos, Mateus, Albano e Albino".
E prontos!... e mandem para ele. E deve estar anexado ao acórdão uma foto de chamboco e Mahindra. Talvez assim o velhote atine. Um acórdão simples para uma pessoa também simples. Um acórdão para acordar Maleiane. O Estado não pode estar aqui a se esforçar em empurrar o país para frente e aparecer um velhote molengão a atrapalhar o curso das coisas. Não pode! Dizer que "este pagamento era um acto meramente necessário" soa a conspiração. O senhor Maleiane não pode estar acima da lei. Violou o acórdão número 5/CC/2019, que anula os empréstimos da EMATUM. Agora, se violar este também, chamboco e Mahindra com o velhote!
- Co'licença!
Nas minhas aulas de sociologia e de educação gosto de introduzir uma distinção entre facto bruto e facto institucional proposta por uma filósofa analítica Britânica, Gertrude Elizabeth Margaret Anscombe. Na verdade, esta distinção tornou-se mais conhecida pelos trabalhos de um outro filósofo, o norte-americano, John Rogers Searle que admiro, bastante, pela simplicidade da sua escrita mesmo tratando-se de assuntos complexos.
A distinção básica vai assim. Os factos brutos são todos aqueles cuja existência independe do que nós sentimos ou pensamos. Existem em si mesmos, e se auto explicam. Existem porque existem. Muitos fenómenos físicos e da natureza são assim. Monte Binga existe independentemente do que sentimos ou pensamos sobre aquele acidente geológico. Por seu turno, os factos institucionais são todos aqueles que resultam da acção humana e das convenções sociais. Todas as instituições sociais, tais como família, escola, beijo, namoro, moeda, abraços, enfim, tudo que ganhou sentido de existência pela acção social seria facto institucional.
A coisa pode ser ainda um pouco mais complicada. Por exemplo, alguns factos mostram-se dependentes de outros. Imaginem uma nota qualquer do nosso Metical. É, simplesmente, um papel, decorado. No entanto, essa nota de papel pode valer 500 Meticais e isso é explicado em função das nossas preferências como humanos, dos valores, crenças e concepções instituições que sustentam a noção de sistema da nossa moeda nacional.
O vírus, que supostamente causa uma síndrome respiratória aguda, está lá. É um facto bruto, isto é, um dado objectivo que se está nas tintas para o que nós sentimos, pensamos, ou deixamos de sentir e pensar. O Vírus não liga a mínima para a nossa cultura, moral e convenções sociais. Ao contrário, os fatos sociais ou institucionais têm a sua existência dependente da concertação social. Se o vírus é um facto bruto, já o COVID-19 é um facto social pois trata-se de uma enfermidade convencionada e designada através de um sistema internacional de classificação de síndromes respiratórias. É, portanto, um facto institucional. Co - de corona, em espanhol, porque o vírus tem a forma de coroa, Vi de vírus – e D de Doença, em inglês, e 19 – pelo ano da sua descoberta, pelos humanos, em 2019. Como se pode depreender sem a ação humana concertada não existe COVID-19. Mas existe o vírus!
O novo coronavírus, que é uma versão nova da família de vírus com formato de coroa, trouxe a ciência e alguns especialistas de volta para o cerne dos debates na esfera pública. Numa altura em que estava a entrar na moda seguir a onda da anti-ciência e do anti-intelectualismo, que se proclamava a sociedade da pós-verdade, a descrença nos factos, a invenção dos factos alternativos, ou das Fake News (notícias falsas), o que exigia fact checks (apurar os factos), que inunda(ra)m vários países onde os líderes populistas zombavam da ciência – o COVID-19 força-nos ao retorno à ciência. Os Estados Unidos de Trump, e o Brasil de Bolsonaro são, neste sentido, exemplos paradigmáticos de países com líderes adversos à verdade factual, e que de alguma forma continuam a peleja contra o bom-senso, a coerência e, de certa forma, a ciência.
Em muitos países, como Moçambique, médicos e epidemiologistas que o público, em geral, não conhecia passaram a desfilar nas telas das TVs que nem estrelas de Holly, Bolly e Nolly wood. O Dr. Ilesh, do Instituto Nacional de Saúde (INS), passou a ser o nosso Dr. Fauci local! Alguns, senão todos mesmo, países criaram comissões técnicas-científicas maioritária ou totalmente constituídas por médicos, epidemiologistas, virologistas, biólogos, especialistas de saúde pública e áreas afins.
Estes cientistas estabeleceram o Anscombeano e Searleano facto bruto. Existe novo vírus! A ciência e a técnica foram instantâneas, neste caso, pois já existia acervo de conhecimento suficiente para identificar e diagnosticar a origem do vírus em humanos. Os estudos sobre vírus corona não eram inéditos. Os bioestatísticos associaram-se aos especialistas anteriores e fizeram projeções da propagação predizendo surto, epidemia e a planetária pandemia.
O epidémico vírus, estabelecido como facto bruto, logo teve a metamorfose socio-antropológica ao se transmutar num facto social e depois num facto social total. O facto social total (FST), aqui, é uma dádiva de Marcel Mauss, sociólogo e antropólogo francês, ao léxico das ciências sociais. O FTS descreve uma actividade que tem implicações em todas as dimensões da realidade social, entre as quais, nas esferas económica, jurídica, política, demográfica e religiosa. Diferentes esferas da vida social e psicológica são entrelaçadas e passam a designar-se de FST. Um facto social total é tal que ele informa e organiza as instituições e práticas aparentemente bastante distintas.
Foi o que se assistiu em pouco tempo com o vírus. Da natureza para a sociedade, do laboratório do virologista, passando pelo crivo clínico analítico epidemiológico e de áreas especializadas afins, as implicações nas diferentes esferas da vida foram transformadas dum facto bruto, epidemiológico, para um objecto antropossociológico e, em última análise, num FST.
Paradoxalmente, e, particularmente em Moçambique, as equipas de especialistas, tanto que aconselham o governo, como as que dão a cara ao público nos briefings à imprensa, são maioritariamente da área biomédica[1] e epidemiológica. E, talvez, até faça sentido. Esta observação não deve ser entendida como uma crítica a estes especialistas. Aliás, muitos especialistas da área biomédica têm consciência da necessidade de múltiplas perspectivas e uma abordagem interdisciplinar de fenómenos multidimensionais como é o COVID-19.
Não disponho de informação precisa, mas parece que as figuras proeminentes que aparecem como membros da comissão técnico-científica, que aconselha o chefe de estado, são, predominantemente, médicos e ex-ministros da saúde. Constam também médicos especialistas de renome, alguns mais conhecidos pela sua prática na profissão médica, ou em funções administrativas e de docência em instituições de saúde e ou afins.
A identidade profissional primária, de alguns, não é necessariamente a de cientista e investigador. Uma simples pesquisa bibliográfica revela que alguns não publicam, há mais de uma década, nada de relevância científica nas suas áreas de especialidade ou actuação profissional. Portanto, a comissão é mais tecno-política do que técnico-científica. A César o que é de César. Mas, este é apenas, um reparo periférico no argumento que não visa pôr em causa a competência e experiência profissional dos membros da comissão.
Os selecionados, apesar de não conhecermos os critérios, podem ser o que temos de melhor naquelas áreas no nosso país. Representam a nossa prata de casa, e merece todo respeito e consideração, pois, com certeza, dão o seu melhor para aconselhar o chefe de estado a tomar decisões. Seria ainda de maior apreço e utilidade pública se fossem apresentadas em relatório as premissas que sustentam as conclusões apresentadas pelo chefe de estado.
Por exemplo, para a conclusão, é melhor decretar o estado de emergência e o confinamento de nível 3, que considerações foram tomadas, com que dados, que cenários se anteviam? Só assim, outros especialistas, teriam a possibilidade de contribuir para o debate com algum conhecimento de causa e desta forma enriquecer ainda mais o trabalho da nossa comissão. A ideia não é ter todos especialistas na comissão, mas alargar o espectro. Tudo que vemos é, sempre, uma parte do todo.
O espaço reservado ou conquistado por alguns especialistas dos estudos sociais são as telas da TV nas horas habitualmente consagradas para comentaristas de plantão, especialistas da doxologia - isto é, gente com paleio para tudo até para a opinar sobre a falta de opinião. Esses que emprestam má reputação às ciências sociais e humanas porque pontapeiam qualquer noção de razão e rigor analítico.
Países como a Alemanha e a Suécia, a título de exemplo, têm entre os epidemiólogos, filósofos, sociólogos, e outros cientistas das áreas sociais não como figuras decorativas das comissões técnico-científicas, para lidar com o que se entende na percepção popular como impactos sociais, termo inapropriado, mas como membros imprescindíveis na formulação e definição do problema e das possíveis soluções do COVID-19 como FST.
A prática do confinamento e da distância física, como intervenção de contenção da propagação do vírus, parece resultar de considerações analíticas de vertente epidemiológica. Mas, a sua efetividade na sociedade, requer considerações de análise social completamente ausentes da equação analítica actual.
Para que problema o confinamento é uma solução? Se a resposta for, simplesmente, para evitar a propagação do vírus e achatar a curva de gauss até janeiro de 2021, como já ouvimos num dos briefings à imprensa pelos técnicos do INS, então, isso revela um grave problema de reducionismo epidemiológico.
O confinamento como solução, epidemiológica, encerra tantas outras dimensões sociais que podem se tornar o novo problema. É caso para dizer que uma solução, simples, pode se tornar-se num problema complexo. E quase assistimos a isso quando o confinamento e o distanciamento físico, recomendado epidemiologicamente, se tornou num prolema de governação de algumas cidades devido aos protestos que gerou por se terem ignorado outras dimensões do problema e a efectividade da solução.
Não admira, pois, que algumas sugestões dos comentaristas de plantão da TV, para forçar o confinamento, enfatizem o recurso a violência em nome do estado de emergência, que até já fez vítimas mortais por excesso de zelo por agentes da polícia. Esta violência do estado remete para dimensões da análise política do estado e da sua relação com princípios e valores da vida, da dignidade e da cidadania no contexto democrático, ausente no léxico analítico epidemiológico e dos cientistas sociais 4x4 da TV.
Supostos cidadãos tratados como marionetes, estatísticas, conglomerados em assentamentos informais, na luta quotidiana pela resiliente produção da sua existência, em condição de precaridade social, entre outras comensurações, refletem as condições estruturais de um país e dum continente atrelado ao sistema global em condição subalterna. Este olhar remete não só para a dimensão epidemiológica glo-cal, como para dimensões da análise social, económica, política, cultural, urbana, glo-cal ausente na nossa equação epidemiológica local.
A lógica epidemiológica é, generalista, isto é, parte do princípio que o vírus não tem vida própria e afecta quem se movimenta. Daí a mensagem global – uma medida para todos (one-size-fits-all) – fica em casa. Mas para alguns, ficar em casa, no contexto local, é morrer da cura, e não da doença. O que confere existência e reprodução ao vírus é a lógica (bio) sociológica, isto é, a forma como entra no corpo humano e se move de pessoa para pessoa. Esse processo envolve estudos de mobilidade local e transnacional, biossegurança, educação, e, por aí, em diante. Não existe área da análise social que não pudesse ser convocada para emprestar maior inteligibilidade e clareza ao debate público e melhor informar as opções e decisões políticas.
A forma como as pessoas vivem não obedece a princípios epidemiológicos, mas a uma série de factores e condições sociais que definem a possibilidade produzirmos a nossa existência. A nossa existência não é apenas biológica, mas biopolítica. A biopolítica é o campo da interseção entre a biologia (neste caso condição epidemiológica) e a política – a administração das nossas vidas.
Essa administração, no meu entender, se traduz na relação entre os detentores legítimos do poder de gerir os nossos corpos e interesses, por via da representação, e o nosso direito de exigir dignidade na forma como somos e nos queremos organizar, administrar. Tudo isto dá conteúdo a nossa cidadania, até mesmo a decisão de como queremos morrer tem que ser negociada, considerando os valores, direitos e obrigações. Essas considerações vão para além das estatísticas e projeções infecto epidemiológicas.
Em Moçambique, há deficit de análise e de conhecimento das ciências sociais e humanas nas decisões do governo sobre o COVID-19. Por se tratar da saúde (pública) prevalece a falsa ideia de que o epidemiológico se sobrepõe ao sociológico. Num país onde físicos (nucleares) são conferidos poder em instituições estratégicas do conhecimento, por articular desprezo pela lógica social dos fenómenos, não admira que se continuem a tomar decisões políticas com efeitos sociais e económicos severos, numa lógica quase exclusivamente epidemiológica, mas sociologicamente míope. O COVID-19, é, por excelência, um fenómeno social total e precisa ser abordado como tal.
Patrício Langa
Sociólogo
[1] Constam-me que fazem parte quase todos, senão todos, ex-ministros da saúde, mais alguns médicos especialistas. Por acaso alguém tem a lista completa dos membros da comissão?
No final da II Guerra Mundial, numa reunião a propósito do futuro da Alemanha derrotada, Josef stalin, o líder soviético/russo, questionou aos seus homólogos, britânico e americano, de que Alemanha se tratava, pois, para ele, a Alemanha, do final da guerra, não passava de uma mera noção geográfica. Depois de um puxa-puxa, os três líderes, das potências vencedoras, acordaram de que que se tratava da Alemanha do dia anterior em que iniciara a guerra. E para o caso, o dia 31 de Agosto de 1939. Vêem-me o episódio, a reboque dos apelos ao regresso à normalidade face a anormalidade à volta da COVID-19. E à moda de Stalin, pergunto: de que normalidade é tratada? Ou ainda: qual é a data referência?
Para o mundo, o que significa o regresso à normalidade? Será a normalidade da data anterior à declaração da COVID-19 como uma pandemia global? Ou a da data anterior ao reconhecimento da China que a COVID-19 existe? Ou ainda a da data anterior ao diagnóstico do primeiro caso na América? E em Moçambique? Serão as mesmas ou outras datas como a anterior ao início do estado de emergência ou a anterior ao anúncio das medidas iniciais contra a COVID-19? Até ao momento, ainda não ouvi, quer globalmente quer localmente, sobre a data da normalidade que se quer retomada. Contudo, é estranho que se queira o regresso ao passado. Terá o mundo deitado a máxima milenar de que para a frente é que o caminho? E, em Moçambique, a máxima “Avança não há recua” terá sido revogada? Não sei, não!
E para si? A normalidade devia ser considerada a partir de quando? E, a propósito da pergunta, fiz alguns telefonemas (na normalidade teria ido ao bar) sobre a data de regresso à normalidade. Eis algumas das respostas: “A data anterior ao meu casamento”; “A data anterior à criação da FRELIMO”; “A data anterior à indicação de Armando Guebuza para candidato presidencial da Frelimo”; “A data anterior ao primeiro ataque dos insurgentes”; “A data anterior à criação da Renamo”; “A data anterior ao fim da venda informal na via pública” e por ai em diante e cada um com a sua própria data de referência.
Todavia, na pós-pandemia, se o regresso à normalidade (do passado), a dita reabertura, for o entendimento mundial, então, o mundo não passará de uma mera noção geográfica que exigirá um pacto mundial para uma reabertura, mas que seja virada para o futuro. Assim foi com a Alemanha, no final da guerra, em 1945: desta não emergiu a Alemanha anterior ao dia 01 de Setembro de 1939, a data do início da II Guerra Mundial. Do mesmo jeito: o mundo pós-pandemia da COVID-19 não pode ser igual ao mundo anterior à pandemia (a tal normalidade), em particular na Pérola do Índico.
Acabo de escutar “A lirandzu”, interpretada por Mingas, e, mais do que a voz que me embevece, está a magistral guitarra a solo nas mãos de Sox, que me arrepia. Não é a primeira vez que oiço este trabalho, mas hoje faço-o numa circunstância particular, sob o silêncio imposto pela incerteza do virus, e assim o volume tem que ser o mais baixo possível, de modo a que possa ouvir os pássaros cantando lá fora, fazendo côro.
Na verdade foi um acaso ouvir “A Lirandzu”. O António Jamal é que me proporcionou essa viagem temporal, onde as coisas fluem sem cobrança, e foi bom, pois esta melodia vem esbater os sentimentos escurecidos, que o tédio muitas vezes cria. É por isso que estou aqui, no meu quarto, ouvindo Rádio de forma desinteressada. Captando com a memória, as palavras também desinteressadas, do Jamal, que comunica em mangas de camisa.
António Jamal parece-me um locutor que vai para frente de costas. Ele não consegue trabalhar sem o passado, que é o seu real fundamento. Sem o passado, Jamal não será nada. Se calhar é por isso que vou elegê-lo como um dos poucos radialistas da minha preferência. E hoje estou com ele, outra vez, neste silêncio imposto pelo virus inesperado.
No fundo o silêncio é uma terapia, mas assim é demais. Muito demais. O silêncio não pode ser uma obrigatoriedade, porque desta forma ele torna-se uma clausura. Até de lá de fora, já não me chega a vocalização das crianças a voltarem da escola, alegres por retornarem à casa onde lhes espera o convívio. E as crianças, como se sabe, são uma das faixas mais lindas do disco de vinil, que é o próprio silêncio. Elas são a molécola central do amor. E só há amor onde há o silêncio.
Mas o silêncio tem que ser livre, rústico, anárquico. Que entra em consonância com a nossa liberdade, e não é este o caso, em que o virus obriga-nos a recolher aos casulos, como lesmas que se escondem nas suas próprias carrapaças, temendo o perigo. Nós também temos medo, como as lesmas. Somos lesmas, com a diferença de que, depois de partirmos, não deixaremos baba. Nem a cinza dos nossos ossos.
Pouco antes do Presidente da República (PR) prorrogar o Estado de Emergência e por mais 30 dias, quase que apostava que ele não o faria. Estava convicto de que o PR usaria os mesmos motivos (grosso modo o fraco cumprimento) para não prorroga-lo ou, no mínimo, que o fizesse por menos tempo, e, em simultâneo, endurecesse as medidas. Destas, apostando, por exemplo, no uso obrigatório da máscara e no recolher obrigatório que fosse combinado com um ajuste do horário laboral (comércio, serviços e indústria) para horas (mais cedo) cujo efeito fosse o desejado no combate ao novo coronavírus, a COVID-19.
Não obstante ter sido, mais uma vez, contrariado pelo PR, embarquei na sua decisão e com a notável ajuda de um meu professor (finlandês) de Física do secundário. Este professor levantara, na altura, a hipótese de que o problema da reprovação de estudantes na sua cadeira estava na carga horária e não na inteligência, pois observara que os estudantes que reprovavam transitavam com distinção no ano de repetição. A solução, segundo o professor, passava pela duplicação da carga horária que era de duas ou três aulas por semana. Assim, duplicando a carga horária, incluir-se-ia, num único ano, a carga horária de dois anos. Ainda concordo com ele.
Neste contexto, extrapolando a proposta do meu professor, a prorrogação do Estado de Emergência corresponde a repetição da sua cadeira, simbolizando que desta vez (com a prorrogação) o povo passe para a categoria de bom estudante e por direito seja aprovado. De toda maneira, caso tivesse tido a oportunidade de assessorar o PR, na primeira leva do Estado de Emergência, teria o aconselhado a decidir de acordo com a sugestão do meu professor de Física, evitando assim a repetição do Estado de Emergência. Assim não foi e assim também não foi na decisão para a prorrogação. Nesta, teria o sugerido que o prorrogasse por 15 dias e que a carga das medidas fosse duplicada.
Contudo, nem sempre quem repetisse a classe ou a cadeira transitava. É a tal (e sempre) história de não haver regra sem excepção. E numa situação de reprovação pela segunda vez e sucessiva, o aluno era tratado por bi-repetente o que significava uma prescrição automática, materializada com a interdição do direito à matrícula/educação por dois anos. Nesta matéria o Estado era implacável.
Dito isto e findos os 30 dias da prorrogação do Estado de Emergência o que se espera em caso de mais uma reprovação do povo? Será feita uma segunda prorrogação? A partida, seguindo os ditames da prescrição automática, o povo sofreria uma suspensão por dois anos. Porém, em Moçambique, para a sorte ou azar do seu povo, a prescrição automática foi abolida e no seu lugar foi introduzida a passagem automática. Assim, a fechar, fica apenas por se aferir se a passagem automática é também aplicável na passagem da pandemia da COVID-19 pelo país.