A informação começou como boato vindo de lá do norte, como aqueles “ventos que sopraram do norte”; ninguém a assumia - estava a ser difícil encontrar-se candidatos a candidatos. Isto ainda no período de pré-selecção. Todo o mundo teve que ligar para Nampula, para saber quem eram os candidatos, afinal. Eu próprio tive que ligar para o João, meu amigo de longa data que lá trabalha e bem posicionado. Ele confirmou o que andava nos documentos oficiais, que os candidatos a cabeças de listas eram aqueles que vinham nas listas e que tinham sido divulgados. No entanto, o parto estava a ser à cesariana… depois, confirmou-se: aos candidatos das bases, a direcção tinha imposto um nome, o do actual governador, eleito em sufrágio universal. E, quando parecia estar tudo encerrado e fechado, eis-nos diante daquilo que começou por ser o segundo boato… também vindo do norte, claro!
O eleito com 100 por cento dos votos não queria/quer ser o candidato! A princípio, como na primeira situação, quase ninguém tinha a informação; depois, pouca gente conhecia. Ninguém a assumia, muito menos confirmar, mas também ninguém a desmentia… até que um jornal ousou colocar a informação em manchete: Manuel Rodrigues não quer ser o candidato do seu Partido na cidade de Nampula. E citava as “tradicionais fontes anónimas”. O que credibilizava aquela informação é que o referido jornal tinha abordado dirigentes de proa que não desmentiam, embora também não a confirmassem!
Mas mesmo depois de ser pública, a informação continuou órfã de fonte assumida e de confirmador! E no seio do partido reinou e reina, até hoje, uma incredulidade de bradar aos céus. Ninguém acreditou e há os que continuam sem acreditar. No entanto, continuou-se em surdina a trabalhar-se afincadamente, entenda-se, a buscar-se sorrateiramente um outro candidato para a substituição forçada pelo jogador. Em surdina também se preparou a segunda conferência electiva, até que… ela se realizou e outro nome foi consagrado. Digamos que a notícia sobre a indisponibilidade de Manuel Rodrigues para cabeça de lista na capital provincial nampulense foi uma notícia sem fonte, sem confirmação e muito menos objecto de comunicação oficial.
Esta ausência de comunicação oficial mostra claramente o quão melindrosa é/foi internamente a questão. Em surdina também, vai-se mandando recados a Manuel Rodrigues e a outros membros internamente: ora que na nossa gloriosa ninguém recusa tarefas, ora que ninguém é mais forte do que o partido; ora que a disciplina partidária foi beliscada, que é o prelúdio da indisciplina… ora, ora, ora!
Pode, sim, a disciplina partidária interna ter sido quebrada. Mas, há um valor humano supremo que deve (ou devia) falar, sempre e sempre, mais alto: a consciência própria do indivíduo. O que a nossa consciência nos diz sobre um determinado facto, fenômeno ou realidade. Eu sou apóstolo de que a consciência do indivíduo deve falar mais alto do que tudo em que nos envolvemos.
Desconheço em absoluto as razões que leva(ra)m Manuel Rodrigues a abdicar da posição de cabeça de lista - e sejam quais forem, não vêm ao caso -, acredito que a sua própria consciência falou mais alto. Assim sendo, sou de tomar boa nota da atitude do nosso compatriota. Considero esta ser uma lição a ter em conta na nossa vida moçambicana! Na nossa cidadania e no nosso dia-a-dia. Se assim procedêssemos, obedecêssemos às nossas consciências, teríamos, de certeza, um Moçambique diferente!
Milhentas de vezes, vemos compatriotas a aceitarem realidades inaceitáveis, a aceitarem tarefas inaceitáveis, a aceitarem responsabilidades inaceitáveis. Outrossim, e não menos vezes, a aceitarem e assumirem tarefas, responsabilidades e incumbências para as quais NÃO estão preparados, NÃO se acham capazes. Sabendo que não têm competências, nem capacidades para uma certa tarefa, as pessoas assumem… escudando-se na teoria de disciplina partidária e ou irrecusabilidade de tarefas recebidas.
E esta atitude tem tido as consequências que todos nós conhecemos: fracassos atrás de fracassos, maus desempenhos atrás de maus desempenhos. Perde o compatriota que aceitou o cargo/tarefa para o qual não está capaz, correndo o risco de sair pela porta pequena e com a sua carreira, honra e prestígio beliscados, perde o país, perdemos todos nós.
Julgo esta ser uma boa lição de Manuel Rodrigues. Ele começou! Vamos aprender com ela. O que nos dita a nossa consciência… é o que deve prevalecer: sagrado isso. Não podemos/devemos ir contra as nossas consciências, assumir tarefas para as quais não sentimos capazes, sob o risco de morrermos vivos - e matarmos a nossa sociedade, retardando o seu desenvolvimento!
ME Mabunda
Depois da última visita ocasional ao mercado no passado dia 14 de Fevereiro do ano corrente, contada aqui https://www.cartamz.com/~cartamzc/index.php/opiniao/carta-de-opiniao/item/12973-estou-aqui-amor, voltei ao mesmo no dia da victória, 7 de Setembro, feriado nacional. Desta vez para a compra de fruta da época.
A visita fora na companhia da Luma, a minha filha de uma década. Depois de algumas turísticas voltas a apreciar o mercado e o que este oferecia aos seus visitantes, a par da pressão da companhia, tive que apressar a ida ao sector das frutas.
Ainda o calor não se fazia sentir com intensidade, no lugar o calor melódico de vozes femininas que entre versos e estrofes com rimas sensuais investiam cantadas para atrair a sardinha para a brasa de cada uma.
De repente, e diante da minha calculada surdez, uma voz, na contramão, solta suave, focada e demolidora: “ Amor, a minha é doce!”
Para quem tenha observado o momento certamente que se imaginou num autódromo ao ouvir o chiar de uma brusca travagem. Confesso que não fora tão brusca, mas de que houve uma travagem não tenho dúvida alguma.
- Como vais pagar, amor? A pergunta fazia sentido. Um dos operadores de transações móveis estava temporariamente fora do ar. Enquanto se executava as démarches alternativas para o pagamento da compra feita, que fora acima do planificado, sublinhe-se, a vendedeira foi falando da doçura da sua fruta e de que não me arrependeria.
No protocolo da despedida e solene retirada, a vendedeira oferece uma caixa de morangos a minha filha que se mostrara com sinais de alguma impaciência e irritabilidade. No momento da oferta a vendedeira diz: “Amorzinho estes morangos são para ti. Diga a mãe que foi a tia do mercado que deu”.
A recepcção da oferta não foi nada calorosa. Exigi explicações pelo comportamento e a resposta não tardou: “Não sou sobrinha dessa “tia assanhada”!”
Nando Menete publica às segundas-feiras.
Joaquim Chissano reagiu à actual onda golpista em África condenando-a, dizendo mesmo que era um retrocesso anti-democrático. Mas afinal o que é mais democrático: um governo autocrático e corrupto, sustentado por eleições ciclicamente fraudulentas ou um golpe militar com amplo suporte popular?
A onda golpista é um ataque à hegemonia do ocidente no concerto internacional das nações, que perpetua relações de dominação colonial, sob novos termos, mas sempre com conluio interno como na escravatura, com a inerente pilhagem de recursos do nosso continente.
Os jovens golpistas da África Ocidental estão a dizer basta a essa pilhagem dos nossos recursos com a cumplicidade dos líderes africanos.
Moçambique deve aprender com isso e reformar o actual quadro fiscal com as multinacionais que cá operam. A percepção de que estamos a ser roubados, com a cumplicidade e benefícios para uma elite política minoritária, está cada vez mais generalizada entre a juventude pauperizada: o paraíso da Mozal, o acumulado desmando da Sasol, os “subsídios” estatais à Jindal (a HCB vai lhe reabilitar a estrada que destruiu), os lucros fabulosos da Ruby Mining de Montepuez e a fiscalidade complacente entre Moatize e Benga.
A percepção da expropriação é maior. Incluindo os receios de que a nova narrativa da transição energética pode esconder novas formas de expropriação à população campesina, por via de grandes projectos de uso de terra sob pretexto de economia verde.
O golpismo vigente é um alerta para nós, para as elites políticas de Moçambique. O discurso e a acção política devem mudar. Nyusi foi legitimar o crocodilo fraudulento de Harare, a maioria dos líderes da região não caíram na ladainha da Zanu!
Nyusi foi à cimeira africana do clima; mas Museveni gazetou porque o principal orador era John Kerry, que foi lá debitar umas lições americanas para os líderes mentecaptos de África, que não entendem nada de clima.
Na semana passada, o Governador do Banco de Moçambique, Rogério Zandamela, entre erros gravosos de perspectiva histórica, foi ler (e muito mal lido) o habitual clichê de receitas do FMI, queixando-se do despesismo governamental, mas sem apresentar uma proposta de soluções que confronte a caixa fechada com que o Fundo olha para Moçambique, perpetuando a pobreza. Afinal, para que serve o Banco de Moçambique se não consegue pensar?
Enfim…
Uma leitura magistral sobre o que significa a onda golpista para África e para as relações internacionais pode ser vista neste “Bottom Line” da Al Jazeera.
Chamo também a atenção para a leitura do mais recente ensaio de Severino Ngoenha et all (2023), que discute justamente a questão da disrupção das relações de dependência coloniais no quadro dos BRICS e a proposta subjante de uma nova multipolaridade.
Eis uma questão problematizadora do texto em referência:
“O que é interessante nos BRICS é a busca de uma alternativa aos 700 anos de hegemonia desumana do Ocidente feita lei e imperativo de relações entre nações e povos. Não se trata só da desdolarização da economia-mundo, mas também da revisão do estatuto das instituições globais (Nações Unidas, Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial…), que desde o fim da Segunda Guerra regem, tutelam e garantem o status quo: as assimetrias das relações económicas e de poder entre as potências vencedoras da guerra e o resto do mundo.
A questão que se nos põe, como país e como região, é como participar neste esforço de mudança de paradigma, participar para prevenir que não seja uma ulterior partilha do mundo, desta vez entre os antigos ricos e os ricos emergentes. Aliás, se não estivermos atentos, se não anteciparmos a direcção dos ventos, os BRICS (potenciais novos-ricos) não vão representar simplesmente uma subida em flecha de uma nova força económica global, eles vão confrontar-se, como já acontece hoje no Sudão, Etiópia, Sahel (…), com as velhas forças de dominação (EUA e a Europa) em conflitos económicos e até bélicos, com os nossos países e continente a servirem de campo de batalha”.
MM
O remetente chegou ao principal terminal de “Chapas” nas proximidades do mercado de Morrumbala. Eram por volta das 15h00, o alvoroço típico do lugar era intenso como todos os dias de semana, excepto ao domingo.
Procurou o cobrador do primeiro machimbombo que partiria de madrugada para a cidade de Quelimane, mostrou a mala que precisava enviar e este depois de um golpe de vista deduziu o preço que o expedidor devia pagar, este resmungou e entraram em negociações até finalmente acertarem.
A mala tinha 54 cm de cumprimento e 37 cm de largura, pesava 25 kg, era de madeira devidamente esculpida por um exímio artesão e estava devidamente polida, tinha um pequeno fecho no meio, da altura central, era de cor preta e estava amarrada no seu cumprimento e largura com uma corda de sisal.
Quando o cobrador segurou a mala para arrumar sentiu uma vibração emanada por esta, então firmou maior destreza no seu manuseamento, guardou-a para posteriormente arrumar, solicitou e registou os contactos do remetente e do recebedor e por sua vez o expedidor registou o número da matrícula e o contacto do cobrador.
O lusco-fusco vespertino emprestava uma temperatura agradável, os raios do sol cessante incidiam ali e acolá no pequeno vilarejo.
Os passageiros ou os seus enviados iam chegando e adquirindo bilhete, a bagagem avolumava-se.
Uma hora depois, os lugares no pequeno autocarro já haviam esgotado, então o cobrador alertava aos passageiros que o autocarro partiria as 04h30 do dia seguinte. Os passageiros que vinham de lugares distantes iriam pernoitar no autocarro.
O cobrador dedicou-se a arrumar a bagagem no atrelado, os volumes maiores e pesados em baixo, os médios no nível intermédio e os mais pequenos em cima.
Coube a mala preta de madeira ficar por cima de uma pequena trouxa, posteriormente procedeu a cobertura do atrelado com uma lona.
A partida iniciou quando eram 04h45, os lugares estavam quase todos ocupados excepto dois reservados aos passageiros que embarcariam numa das paragens. O pequeno machimbombo evoluía na sua jornada e o som do motor propagava-se ao longo da via despertando ou alertando este e aquele animal. A luz dos pirilampos extinguia-se com o rompimento dos raios solares.
O autocarro sulcava nas ondas da estrada de terra batida, ora mergulhando nos buracos ora se elevando nas lombas, de repente o carro atinge uma lomba e o atrelado fica empinado com as duas rodas no ar.
A corda que prendia a lona soltou-se e alguma bagagem voou pelo ar e aterrou no solo. Gritos de pedido de paragem dos passageiros soaram quase que uníssono.
O veículo imobilizou-se abruptamente, o cobrador desembarcou para recolher a bagagem que havia caído; percebeu que a mala preta não estava no atrelado, procurou em lugares distintos, mas não a encontrou, reparou para uma pequena ravina e viu um pequeno feixe de luz, desceu e encontrou a mala.
Ficou completamente estupefacto com a posição que a mala se encontrava, olhou demoradamente para esta que estava assente numa dos vértices inferiores numa pedra e na parte superior apoiada num pequeno arbusto. Segurou a mala e levou-a para o atrelado, prende-a devidamente e retomam a viagem.
Uma hora depois o chapa alcançou o cruzamento de “zero”, entraram os dois passageiros e ocuparam os lugares vagos, a jornada continuou.
O machimbombo ziguezagueava para fintar os buracos que surgiam agora na estrada meio asfaltada, mas sempre esburacada.
Uma hora depois chegavam a sede do posto administrativo de Nicoadala, desembarcaram uns e embarcaram outros, a viagem continuou.
O pequeno veículo circulava agora velozmente na estrada de asfalto isenta de buracos em direcção a cidade de Quelimane.
Da planície densamente esverdeada via-se o arrozal que se extinguia para lá do horizonte.
O som produzido pelos passageiros que conversavam entre si ou então falavam nos seus telemóveis combinado com o ressonar de uns e o ronco do motor do carro criava uma melodia que parecia balançar o coqueiral que se estendia a berma da estrada.
Tempos depois o “chapa” alcançava a principal terminal rodoviária da cidade de Quelimane, passageiros desembarcavam e recolhiam as suas bagagens e partiam para os seus destinos finais.
Quando o azafama finalmente cessou, um homem franzino e calvo aproximou-se do cobrador.
- Bom dia, vim buscar a minha encomenda.
- Qual é a sua encomenda? – perguntou o cobrador.
- Uma mala preta. – respondeu prontamente o homem.
O cobrador, lembrou-se da mala pela sua peculiaridade e dispôs-se a buscá-la.
Depois de uma busca de mais de trinta minutos, o cobrador apareceu sem a mala.
- Não estou a encontrar! – disse apreensivo. – voltarei a procurar com mais calma, peço para voltar no final do dia. – propôs o cobrador.
O recebedor perambulou pelas artérias da cidade que há muito não visitava num compasso que fazia para resgatar a sua encomenda.
Quando o cobrador reviu o buscador, um baque sacudiu-lhe o peito deixando-o desconfortado.
- Não encontrei a sua mala, desculpa-me! – balbuciou entristecido.
- Não te preocupes. – afirmou serenamente o homem.
O produto surripiado descansava em cima de um comodo e o seu autor recuperava-se do cansaço da viagem na cama mirando gulosamente o troféu da sua acção.
Tinha a mente capturada pela vontade avassaladora de descobrir o conteúdo da mala, então soergueu-se da cama, encontrou uma faca e cortou as cordas. Agora precisava livrar-se do cadeado meio enferrujado que constituía o último empecilho antes de alcançar o que almejava, buscou um alicate e iniciou a operação de o quebrar, depois de mais de vinte minutos sem sucesso acabou por desistir, o cadeado continuava intacto.
Entretanto, do outro lado, o proprietário da mala, a cada vez que o larapio tentava cortar o cadeado a chave que guardava por trás da porta de seu quarto tilintavam. E então ele sorria, imaginando a tentativa frustrada do gatuno.
Não se sentido derrotado pelos empecilhos de abrir a mala, o jovem larápio infligiu uma machadada no tampo da mala, sem causar nenhum arranhão. Deu-se por vencido, talvez o cansaço causado pela viagem não lhe permitiam executar a operação com melhor discernimento.
Já passavam das 20h00, optou por recolher a cama e descansar, pela manhã veria como abrir a mala.
Não demorou a adormecer, duas horas depois acordava sobressaltado e aos gritos que ninguém ouvia, escutava uma voz indistinta, correu para o interruptor de luz, sem encontrar fugiu para fora, mas a voz prevalecia.
“Leva-me para o meu dono” – soava a voz gutural.
Distanciou-se quanto pode para escapar da voz sobrenatural, mas esta o seguia, tapou os ouvidos, mas a implacável voz continuava a ressoar.
Passou a noite no quintal da casa acompanhado pela voz da mala, a manhã nasceu depois de uma insuportável espera.
Armou-se de coragem e entrou para o quarto, a imponente mala continuava a sua fala.
Socorreu-se de um vizinho para ajudá-lo a compreender a aberração que o deixava inquieto.
- Estas a ouvir o que a mala está a dizer? – inquiriu atabalhoadamente.
- Não escuto nada. – disse, sem perceber a aflição do seu vizinho.” Talvez o rapaz estava a ser vítima de algum estupefaciente que ingerira”.
“Tinha que se livrar da mala” - cogitou.
Catapultado por uma energia desconhecida, aprontou-se, segurou a mala e foi caminhando estrada adentro até dar no terminal de chapas de Nicoadala. Eram já 6h00 da manhã.
Procurou embarcar num chapa que ia a Quelimane, quando segurou a mala para entrar esta não se desprendia do chão, forçou sem lograr o seu intento, procurou disfarçar a sua acção para não o acharem louco. Então decidiu abandonar a mala na paragem e continuar com a sua vida.
Quando se predispunha a caminhar, os seus passos estavam grudados no solo, encetou um outro disfarce para não chamar atenção dos transeuntes, passageiros e mujeiros que circulavam perto de si.
Nunca na sua vida, de afamado larapio, havia-lhe acontecido algo semelhante, o seu feiticeiro havia-o garantido sucesso absoluto nas suas empreitadas. Algo de muito estranho estava a acontecer.
Voltou a segurar a mala; levantou uma perna, a esquerda e esta obedeceu, levantou outra e iniciou a marcha, levava a mala consigo, foi caminhando sem saber para onde ia, completamente hipnotizado pela voz que comandava a mala.
Depois de calcorrear mais de cinco horas deu consigo completamente estafado; parou, socorreu-se da água de um riacho do afluente do rio domela, descansou por breves minutos e reiniciou a marcha.
Quando o sol já começava a pôr-se, alcançou o bairro de Manhaua na periferia da cidade de Quelimane.
Sons metalizados que advinham do portão de latão mesclado com uma voz de timbre débil de pedido de licença faziam-se ouvir, um homem franzino e calvo assomou ao portão, esboçou um sorriso, recebeu a mala e agradeceu o entregador.
A minha espera pelo comboio está-se tornando longa demais. Cada som que oiço à grande distância parece dessa máquima colossal de aço que arrasta carruagens intermináveis, de passageiros e carga, mas esses mesmos sons que me chegam, são tecidos pela minha imaginação, não são reais. Estou aqui desde que o dia começou a perder o brilho, faz frio e a camisola grossa que visto, mesmo assim, não me dá o conforto necessário para que os ossos não tremeliquem. Isto é um castigo.
Sou o único passageiro neste apeadeiro sem sentido, e já não acredito nos anjos. Houve tempos em que a minha alma tinha asas, então eu também era um anjo, agora não. Vivo com medo dos demónios, esses que se viraram contra mim tirando-me as raquetes das mãos. Aliás, começaram pelo coração, arrancaran-no por inteiro, é por isso que estou esvaindo em sangue e sinto que desta forma, só posso terminar lá em baixo para alimentar a gargalhada dos sabujos.
Já me avisaram que o comboio vem cheio, não há lugar para mais nenhum passageiro. Os vagões também, estão abarrotados de carga. Isso significa que não tenho qualquer possibilidade de embarcar, contrariando os meus planos de me disfarçar em mercadoria, pois o que eu quero é sair daqui, quero fugir deste lugar onde o ranger de dentes se intrensifica e, sendo assim, não vou escapar às dentaduras.
Não tenho nada na sacola a não ser “As mãos dos pretos”, livro de histórias profundas escritas por vários escritores moçambicanos, compiladas por Nelson Saúte e que não consigo ler por ataque de ansiedade, e algumas roupas velhas que não servirão para nada. É isso que me faz acreditar que ainda estou vivo, e também as lembranças dos tempos de juventude quando tudo florescia à minha volta. O resto perdeu sentido. É como estar no palco a cantar músicas para uma plateia de fantasmas, ou ler um poema antigo para os ratos que esperam nos sarcófagos para me roer todo.
É isso: estou na dolorosa espera pelo comboio cujo apito parece ouvir-se ao longe, mas isso é mentira, é uma invenção dos meus pensamentos que vão sossobrando perante os carrascos determinados a espetar-me todas as lanças em brasa, até que do meu corpo não saia mais sangue para humedecer a terra seca.
O que me assusta ainda mais nesta espera solitária, é o borbulhar de vozes raivosas e frustradas que se ouvem noutros apeadeiros que antecedem ao meu. Essas pessoas também estão aguardando a locomotiva que tarda, e ameaçam incendiá-la se não houver lugar para elas. É isso que aumenta o medo enraizado no meu desespero. Afinall são irmãos de sangue dos que estão acomodados nas carruagens de luxo e meus irmãos também, querem entrar por direito e desfrutar das guloseimas que são servidas aos que lá estão. Os quais não querem mais ninguém.
Então, desta forma não posso imaginar o que vai acontecer, por isso continuarei na minha longa espera, até que tudo se esclareça, ou até que eu morra. De fome e frio.
Estavam criadas todas, mas todas mesmo, as condições para ser um dia bastante memorável na palhota dos Cossa. O pai da família, a esposa, os filhos e suas namoradas tinham combinado visitar a nossa Feira Agro Comercial e Industrial de Moçambique (FACIM), na sua designação inicial, que se mantém até hoje, sábado e, depois disso, sentarem-se, todos juntos, almoçarem, pôr a conversa familiar em dia e reforçarem os laços! A feira estava a correr, todos tinham disponibilidade, curiosidade de ver e conhecer o que lá estava a ser exibido e estômago para degustar certas iguarias, como a tilápia que lhes tinha sido recomendada por um amigo - todos os condimentos reunidos para um dia especial.
No entanto, nem sempre vence o provérbio segundo o qual “querer é poder”!
Primeira contrariedade é que, por volta das 11 horas, começaram a circular nas redes sociais mensagens segundo as quais as portas da nossa maior exposição nacional estavam encerradas por conta de um programa superior que duraria até às 13. Os dois chefes de estado - o nosso e o de Gana - iam visitar a exposição. A indignação tomou conta dos Cossa. É/era mesmo necessário fechar as portas ao público?!… já ouvimos falar de chefes de estado que visita, eventos e eventos, mas, mandar vedar ao público… afinal, o objectivo não era bater o recorde de 50 mil pessoas a visitarem a FACIM-2023? Orgulho para todos nós! Se sim, como é que se ia bater tal recorde com… restrições desta envergadura! O sábado, que as pessoas tinham reservado para “perderem” todo o seu tempo lá, como o fizeram tradicionalmente, desde a fundação do evento, vendo e conhecendo coisas de outras e muitas realidades e culturas do seu país e de outros que lá se fizeram presentes, num total de… 26!?… Pareceu uma medida completamente insensata, mas… como se diz, manda quem pode! No entanto, veio-se a saber que, afinal, tal ordem não era “superior” como muitas outras… era dum boisse aí pelo meio e mandou-se cancelar. Mas a confusão já estava decretada, em curso e a florescer.
A segunda, maior e mais dramática, foi o acesso. Que se saiba, o trajecto para se chegar à FACIM é, necessariamente, a EN1-Cruzamento da FACIM e virar-se à esquerda ou à direita, consoante a proveniência. Da paragem do bairro Agostinho Neto até ao cruzamento, levava-se cerca de uma hora e meia naquele sábado. Durante perto de 40 minutos, os carros que pretendiam entrar para a feira não se moviam meio centímetro… Passado esse tempão todo… uma escolta militar imponente, sumptuosa, com todos os sirenes e tudo, lá veio da FACIM e fez-se à EN1 - precisamos de tudo isso? Todos respiraram de alívio, mas… o calvário só prosseguiu. Os polícias de trânsito, no lugar de permitir que os automobilistas seguissem pela ruela que dá acesso à feira, mandaram todos fazer u-turn para os que vinham da cidade de Maputo, com a indicação de irem entrar pela via de saída! Que tamanha enormidade. Lá seguiram os carros e, na arenosa via, vieram mais dissabores: estrada estreita, de areia, rural, de… terceira, mas os carros, uns atrás dos outros, tinham que se cruzar certos a saírem e outros, muitos, a entrarem; e as viaturas ligeiras, de pequena cilindrada e sem tração, iam ou “sentando” no chão, ou… enterrando-se. Pior, foi quando se chega ao último troço, rente à entrada. A confusão entre viaturas que vinham e as que iam era total! TOTAL, agravada com os enterros que a estrada arenosa ia proporcionando! O QUE CUSTOU (CUSTA) PAVIMENTAR A ESTRADA RURAL DE SAÍDA DA MAIOR FEIRA DE MOÇAMBIQUE - desde que foi transloucada da cidade de Maputo? Uma FEIRA NACIONAL!…
De modo que, das 11 horas programadas para começar o programa dos Cossa, só conseguiram acesso cerca das… 17 horas! E os filhos e respectivas namoradas, 18:40!… Cossa e esposa, que tinham conseguido chegar primeiro, ainda foram ver às correrias este mais aquele pavilhão, mas não completaram, era impossível completar àquela hora. Aos rapazes, que chegaram depois… ainda que tenham entrado, porque tinham que inutilizar os bilhetes, não lhes foi permitido ver… nada de nada. Em todo o lado por onde passavam, “já estamos a fechar”… era-lhes dito pelo pessoal dos stands, que, ao mesmo tempo, já desmobilizavam os materiais.
Porque cabia aos pais encontrar o local para o almoço em família, Cossa e esposa tiveram que interromper a visita aos pavilhões. Tinha-lhes sido recomendado para irem saborear a tilápia num restaurante dentro do pavilhão de um ministério. Agoiro: “Já não temos tilápia… já não temos nada, estamos a fechar!” Estas palavras iriam ouvi-las por todo o percurso… Desceram para os restaurantes da parte baixa… mesmas palavras! Subiram para os de entrada, que pareciam mais luxuosos, mesmíssimas palavras! E estava-se por aí 18:40…
Grandiosíssima indignação: sábado, como é que às 18:30 horas os restaurantes já não tinham comida e estavam a fechar na FACIM, a maior e mais importante exposição nacional? Não era suposto funcionarem até às tantas, em se tratando do último dia? Algo errado não está certo. Se calhar, a velha questão da localização da instituição e sem transporte efectivo. É esta a FACIM que queremos?!… Pondo melhor: esta é a FACIM que não queremos? Custa organizarmos um evento de excelência? Top. Sem máculas?!…
E tudo o que era um programa de uma família foi por água abaixo! E quantas famílias?
ME Mabunda