Graças às férias de passagem do segundo para o terceiro trimestre do ano escolar, foi-nos possível reencontrar o antigo colega Crisóstomo Júlio Dumangane na Escola Secundária de Chókwè, nos anos 1981, 82 e 83. De certeza que alguns dos colegas não se lembrarão de Crisóstomo Júlio Dumangane, mas, sim, e muito facilmente, do Mendoza Colt! Resultado de muitas leituras de livros de cowboy, o Crisóstomo Júlio Dumangane adoptara o nome do grandioso personagem policial Mendoza Colt. Não só adoptara o nome, mas quase todo o modo de vida, estilo e ser daquele actor. Não só ele, alguns de nós também, mas a isso iremos mais adiante.
Terminara eu a leitura do livro O cheiro da chuva - um contributo importante para o entendimento da nosso história imediatamente a seguir à nossa independência - e quase obrigava o Júnior a lê-lo de seguida, durante os seus quinze dias de férias, ao que me responder que não podia porque o seu professor de português lhe mandara ler o Jesusalém de Mia Couto. Júnior está na 12a classe numa das escolas da capital. Fiquei curioso de ouvir isso, porque é como nós estudamos. Os professores de português sempre nos mandavam ler qualquer coisa nas férias e depois fazermos o resumo num caderno próprio - tínhamos três cadernos, um de apontamentos, outro de resumos e o terceiro para escrever qualquer coisa, como poesia, conto, uma história. E então pergunto ao jovem quem é esse seu professor de português que lhe mandou ler Mia Couto. “Crisóstomo Júlio Dumangane!” - respondeu.
Desatei a rir e a bom rir ante o espanto do filho; muita coisa estava explicada: foi meu colega de escola e passamos pelos mesmos processos. Depois, recomendei-lhe que num desses dias fosse dizer ao seu professor de português que “papá lhe manda cumprimentos”. Reportou, o Júnior, que, após lhe dizer o nome do seu pai, também ele, o professor Crisóstomo, riu-se a bom rir. Estavam criadas as condições para o reencontro com o Mendoza Colt, aliás, Crisóstomo Júlio Dumangane! Voltemos a Chókwè!
Cada um vindo de onde vinha, em 1981, muitos alunos foram dar a Chókwè para prosseguir com os estudos na Escola Secundária de Chókwè. Calhou todos a vivermos no centro internato. Por aí 200 estudantes. No internato, havia camarata para os alunos e outra para as alunas. A camarata dos rapazes estava em forma de L. Na parte baixa do L, estavam os beliches do Crisóstomo, Isaías, Pedro e o Ombe. Esta parte do dormitório era chamada de… Califórnia, a terra dos grandes cowboys, e o Crisóstomo Mendoza Colt…
Durante os três anos, o Centro Internato de Chókwè conheceu um dinamismo jamais vivido. A própria cidadezinha conheceu uma intensidade diferente, era a primeira vez que recebia tamanha quantidade de estudantes oriundos de quase todos os distritos da província de Gaza, incluindo de Xai-Xai, a capital, e não só: havia também gente de Maputo e outra do centro do país. Por conseguinte, havia todo o tipo de estudantes e pessoas ali. Bem comportadas umas, mal outras, assim-assim outras tantas ainda; tudo havia lá. Alguns de nós gostavam muito de leitura: trocavámos entre nós livros e livros e íamos à biblioteca distrital levantar outros e/ou… “roubar”. “Roubamos” livros! Aproveito pedir desculpas à sociedade, pelo grupo todo; aquele “roubo” não era/é comum, decorria da avidez de saber um pouco mais… de toda a forma, era roubo e dele nos penitenciamos... Mas também fugíamos frequentes vezes para o cinema, à noite, no clube, o que nos valia punição severa da parte do chefe do internato Sondo, sempre que descobrisse.
Líamos a bom ler alguns de nós; devorámos a colecção 6 Balas, a colecção Vampiro, etc., etc. Identificávamos o herói e/ou as personagens principais; admirávamos-lhes as acções e bravuras e fervilhávamos por dentro. Entre os que gostavam de ler a sério, contavam-se o Crisóstomo Dumangane, o Paulito Tete, o Rui Nhanzilo, o Israel (os três já falecidos, que Deus os tenha), o Leitão, o Lopes (eu, este era o nome que me tinham dado), o Pedro, o Catine, o Germano, a Mondlanita e poucos mais; nem todos os alunos liam (perdão aos que não mencionei). Isto tudo criou em nós uma competência comunicativa acima do normal, que se traduzia em boa performance na disciplina de português e no à vontade em quase todas as situações extra-aulas. E isto, por seu turno, criava-nos outros problemas, quais sejam, chefes e docentes sentirem-se de alguma forma afrontados e alguma inveja de colegas…
Mas, além de competência comunicativa, linguística, acabamos também adoptando atitudes e comportamentos dos cowboys, até hoje. O Crisóstomo, o Pedro e os falecidos Paulito e o Rui destacavam-se por andar quase sempre, todo o dia, fizesse frio ou calor, de sobretudos (gabardines), com aqueles chapéus de abas grandes, justamente ao estilo dos cowboys de… Far West! Eu e o Baluine (nome também cunhado dos romances policiais que o falecido Israel adoptara) acabamos apaixonados pelos chapéus dos cowboys, esses de abas grandes, até hoje. Mais do que as vestes, os nossos comportamentos caminhavam para o “cowboyismo”: destemidos, mais ou menos bem elaborados, activos, um pouco agitadores. A agitação no internato foi tal que alguns de nós acabamos expulsos por atitudes incorrectas, outros suspensos e outros ainda mandados trazer os encarregados de educação; mas conseguimos fazer a última classe da escola.
Marcámos uma fase da Escola Secundária de Chókwè. E esta será para sempre a nossa segunda cidade: temos um grupo de WhatsApp a que chamamos de FORJADOS NO CHÓKWÈ… Terminada a nona classe, cada um de nós foi enviado para diferentes frentes, como era prática. O Crisóstomo foi para o professorado e nós outros para outras coisas. Assim, perdemo-nos ao longo destes 40 anos! O Mendoza lecionou em Xai-Xai, depois na Macia e Manjacaze e, agora, na cidade de Maputo.
Foi assim que nos reencontramos - não todos, ou com a maioria, como seria de desejar, mas o Crisóstomo, o Pedro, o Germano Mutane, o Justino, eu, o Pedro Chauque, o grande David Bila e a Ana Paula Cardoso numa casa de pasto por aí e… matamo-nos e matamos as saudades e saudades de Chókwè, de nós mesmos e do “cowboyismo”, na companhia de uns bons copos de vinho!
O Mendoza Colt continua aquele falante fino de português, mas voltou a Crisóstomo Júlio Dumangane!
Esta manhã, enquanto procedia a démarches de uma transferência electrónica numa das esquinas da cidade, interessou-me um debate que decorria entre um grupo de vendedores informais.
O mote da conversa era a nossa política, e pelo que deu para entender a conversa era na sequência das escaramuças deste fim-de-semana, na cidade da Beira, entre militantes de dois partidos da praça nacional, em vésperas das eleições autárquicas de Outubro próximo.
O meu interesse pela conversa obrigou-me a alongar as démarches da transferência, fingindo que não me lembrava do código. A amnésia durou por aí um quarto de hora, o que foi suficiente para entender o teor da conversa.
Um dos vendedores, e que me pareceu o mais informado, disse, e com visível inconformismo, que a política e os políticos de Moçambique são iguais a “Xiquento”, uma expressão do sul de Moçambique que é empregue para designar o matabicho feito com uma mistura de restos ou sobras de comida, alguma tocada, do(s) dia(s) anterior(es) que são aglutinados e aquecidos numa frigideira.
“Fernando…”? Respondo “Afirmativo”. Em seguida, pego o dinheiro e continuo a caminhada, ora pensativo por conta da alusão ao “Xiquento” que é, na verdade, salvo melhor entendimento, uma solução em resposta à impossibilidade de uma refeição melhor.
Já no destino, conto o episódio e o meu interlocutor conclui: assim nas eleições autárquicas e nacionais, que se avizinham, seremos obsequiados com um mega regabofe de “Xiquento”.
Nando Menete publica às segundas-feiras.
As tuas forças estão se esvaindo, noto isso na escassez das palavras. Persistes em chamar meu nome em todos os momentos, porém não dizes mais nada depois disso, mesmo que eu te pergunte, o que foi, amor! Tudo em ti está em derrocada, o teu corpo perdeu o calor de sempre, está frio. O teu coração também, que será o centro de toda a tua existência, já não escorre, hesita nos batimentos. Sinto que queres falar, dizer-me alguma coisa, mas a caixa vocal está fechada, aliás todos os teus sinais estão fechados.
Sinto que sou a tua derradeira fasquia, que entretanto jamais transporás, chegaste ao fim da linha. Tens um desejo profundo de deitar tua cabeça no meu peito feito almofada em toda a tua vida, e sentires o doçura dos meus seios, e os meus seios estão flácidos, já não prestam para nada, dissiparam-se, como o teu espírito que nem sequer se lembra do passado. Agora não te resta absolutamente nada, meu amor, a não ser a longa espera pelos últimos sinos que já começaram a tocar.
Meu amor, eu não quero que os nossos filhos estejam aqui assistindo ao teu sofrimento, à tua incapacidade de aceitar a dor que te morde como os ratos silenciosos alagando teu corpo inteiro em todas as noites. O que me dói é ter chegado à conclusão de que estás na descida íngreme sem poderes fazer nada, nem eu. Então o que me resta é ficar aqui assistindo a celebração que fazes das tuas últimas derrotas, enquanto as minhas lágrimas sulcam-me o rosto em catadupa.
Só agora, meu amor, nas últimas jardas, é que percebo o valor do amor que sempre cultivaste e me deste sem pedires nada de mim, em troca, só querias que eu fosse feliz. Só agora! Nunca dei valor ao celeiro que és, a fonte inesgotável da paz que sempre quiseste que reinasse entre nós e os nossos filhos. Só agora, meu bem, só agora! E todo esse sentimento revolve-me o interior, estou na falésia construída por mim mesmo, e eis que daqui a pouco vou cair até lá abaixo onde as espigas de aço me aguardam.
Não vou te pedir perdão, meu amor, não mereço que me perdoes. Passei a vida toda pisando-te, aviltando-te, mas mesmo assim nunca deixaste de me amar, a mim e aos nossos filhos. Ainda me amas na tua tolerância sem fim, é por isso que não páras de pronunciar meu nome, não deixas de me olhar com afago.
Oh, meu amor! Obrigada por estes anos todos de felicidade e compreensão. E o teu corpo está cada vez mais frio, amor! Obrigado por levares o meu nome nessa viagem que já começaste a empreender. Deus te acolha!
África, nosso continente, possui cerca de 1000 línguas (Thomason, 1988), sendo, por isso, naturalmente multilingue. A maioria dos países escolheu a língua do (ex)colonizador como língua oficial e apenas quatro países escolheram somente línguas africanas (nativas), nomeadamente Etiópia, Mauritânia, Somália e Sudão, para servirem como línguas oficiais dos respectivos países.
A Nigéria, sozinha, possui 400 línguas vernaculares faladas (Akinnaso, 1989), mas só faz o uso oficial de três línguas; o Igbo, o Yoruba e o Hausa, em parceria com a língua do (ex)colono, o inglês. A República Democrática do Congo possui 206 línguas (Bamgbose, 1991), mas, infelizmente, apenas o Lingala e o Luba é que são as línguas nativas usadas oficialmente, em parceria com a língua do (ex)colonizador, o francês.
O nosso país, Moçambique, possui 15 línguas próprias, nomeadamente: kimwane, extensão geográfica - Cabo Delgado. Shimakonde, extensão geográfica- Cabo Delgado. Ciyao, extensão geográfica - Niassa e Cabo Delgado. Cinyanja, extensão geográfica- Niassa, Zambézia e Tete. Emakhuwa, extensão geográfica-Nampula, Cabo Delgado, Niassa e Zambézia. Echuwabo, extensão geográfica - Zambézia e Sofala. Cinyungwe, extensão geográfica- Tete e Manica. Cisena, extensão geográfica- Sofala, Manica, Zambézia e Tete. Cindau, extensão geográfica - Sofala e Inhambane. Cishona, extensão geográfica - Sofala, Manica e Inhambane. Gitonga, extensão geográfica - Inhambane. Cichopi, extensão geográfica- Inhambane e Gaza. Xironga, extensão geográfica - Maputo. Xitswa e Xichangana, extensão geográfica - Inhambane e Maputo. (INDE – Instituto Nacional do Desenvolvimento da Educação de Moçambique, 2000)
E as línguas vernaculares faladas em Moçambique pertencem todas ao grupo de línguas Bantu.
O Emakhuwa é a língua com maior número de falantes, com cerca de 3.500.000, seguido por xichangana, com 1.150.000 falantes e Cisena, com 1.086.000 falantes. (idem)
Nenhuma destas línguas é usada para o ensino ou administração pública! Alguns linguistas dizem que as suas pesquisas indicam que o Xironga, falado por cerca de 500.000 pessoas, e o Gitonga (bitonga), falado por cerca de 250.000 pessoas, tende a desaparecer!
O português é a língua oficial, embora apenas uns meros 2.5% da população moçambicana, de aproximadamente 30 milhões, o tenha como língua primeira. E, erradamente, porque induzidos maliciosamente por Portugal, dizemos que “somos cidadãos lusófonos”!
O Desenvolvimento está intrinsecamente ligado à Educação. Lendo parte da vasta biografia sobre educação, depreende-se que a aprendizagem está obviamente ligada à língua; ao domínio dos códigos linguísticos, o que propicia o aproveitamento no mundo académico e profissional. Nós, africanos, temos, modo geral, como língua primeira as nossas línguas nativas. Segundo Jean Piaget, Biólogo e Psicólogo suíço (este que é considerado pai da Psicologia da Aprendizagem), ninguém pode ter sucesso no ensino e aprendizagem se as matérias para tal não forem ministradas na sua língua primeira; de facto - ora, como é que uma criança, nascida e gerada no meio do Xitswa e aos 6, 7 anos seja obrigada a aprender em língua portuguesa, possa assimilar a matéria? Lamentamos o fraco aproveitamento escolar nas classes iniciais, algo que se repercute nas classes avançadas e na universidade, porque ignoramos este factor linguístico!
Portugal não permitiu o uso de nenhuma língua africana no ensino, em países onde fez a colonização. A Bélgica permitiu duas línguas africanas onde foi colonizador, a França quatro e a Inglaterra permitiu 13 (Banco Mundial, 1988). O resultado disso é que as ex-colónias portuguesas são as mais atrasadas em termos de desenvolvimento científico, económico e social do continente, pois esta situação continua nos dias de hoje – no nosso país e no grupo dos países de expressão portuguesa em África, nenhum curso profissionalizante, como agro-pecuária, carpintaria, serralharia, condução de veículos automóveis, canalização…é ministrado em alguma língua local.
Os sistemas escolares de África; exactamente por causa da falta do uso das línguas vernaculares na educação, servem, apenas, para treinar elites a dirigir a burocracia e o sector moderno da economia para acomodar agendas das multinacionais e empresas estrangeiras (autênticas aves de rapina que sugam toda a nossa riqueza), em detrimento da formação de recursos humanos capazes de provocar um verdadeiro desenvolvimento e bem-estar dos respectivos povos. Os sistemas escolares de África, porque não são de um paradigma genuíno de consonância com as raízes e características sociolinguísticas intrínsecas, não produzem empresários locais, não produzem mentes críticas sobre as nossas riquezas e sobre uma administração genuinamente africana para a ordem e desenvolvimento das nações.
(Fim)
A imprensa e as redes sociais têm demonstrado ao público em geral que, em certa medida, a gestão governamental sobre a greve dos médicos está a ser feita com base em ameaças de instauração de infundados processos disciplinares contra os médicos grevistas, o que inclui ordens ilegais, as chamadas ordens superiores, para marcação de faltas aos médicos que não comparecem ao posto de trabalho por estarem a exercer o direito fundamental à greve. É neste contexto que em várias unidades sanitárias, nas quais a greve se manifesta, já está em curso o processo de marcação de faltas, com ordem para os departamentos dos recursos humanos e da administração e finanças procederem aos descontos nos salários ou vencimento dos médicos grevistas, independentemente de instauração de processo disciplinar, atendendo à efectividade dos mesmos, no sentido de que as faltas pelo exercício do direito fundamental à greve em questão são injustificadas.
Aliás, o Governo, através do seu porta-voz das sessões do Conselho de Ministros, veio a público fazer eco da alegada ilegalidade da greve dos médicos e das ameaças de represálias de diversa natureza sobre os mesmos, incluindo intimidações de desvinculação do aparelho do Estado dos grevistas, por via da contratação de 60 novos médicos. No mesmo sentido, a Governadora de Manica veio de viva voz ameaçar os médicos que trabalham a nível daquela Província que dirige, ordenando, sem qualquer legitimidade e base legal, a marcação de faltas e instauração de processos disciplinares contra os médicos que estão a exercer o direito fundamental à greve.
Acresce a esses actos abusivos de poder o facto de o Governo estar a denegar renovar os contratos dos médicos grevistas, bem com em não proceder à nomeação definitiva dos mesmos, conforme revela a Associação Médica de Moçambique (AMM). A mesma AMM tem ainda denunciado outros abusos que estão a ser praticados silenciosamente com base em famigeradas ordens superiores, do tipo ameaças de transferências de local de trabalho e despromoções. Mais do que isso, é o facto de o Governo pretender levar a cabo a revisão do Regulamento do Estatuto do Médico na Administração pública com vista a retirar os direitos adquiridos em claro prejuízo do sector da saúde pela completa desmoralização dos médicos pela falta de condições salarias adequadas de trabalho.
Inércia do Ministério Público e da Assembleia da República face à Greve dos Médicos
Nos termos da Constituição da República de Moçambique (CRM) e da Lei Orgánica do Ministério Público – aprovada através da Lei n.º 1/2022, de 12 de Janeiro, o Ministério Público zela pela observância da legalidade e fiscalização do cumprimento das leis e demais normas legais. É ao Ministério Público que cabe o controlo da legalidade no ordenamento jurídico moçambicano.
A Greve dos Médicos tem suscitado preocupações e debades sobre a sua legalidade e sobre a garantia dos serviços míninos. E, enquanto o MISAU, ou seja, o Governo de Moçambique, assume a posição de que a presente greve é ilegal, outras instituições, como é o caso da Ordem dos Médicos de Moçambique, e diversas personalidades, sobretudo a nível das organizações da sociedade civil, defendem a posição de que a greve dos médicos é legal e que se trata de um exercício legítimo de um direito fundamental que está a ser feito dentro do quadro constitucional vigente no País.
Ora, esta greve dos médicos, pelas suas caracteríscas e circunstâncias em que está a ser levada a cabo, revela, indubitavelmente, tratar-se de matéria de interesse público, até porque as causas e finalidades da mesma, conforme o caderno reivindicativo que a sustenta, se enquadram no âmbito dos objectivos e políticas de desenvolvimento do Estado no sector da saúde. A greve tem mexido bastante com a questão da garantia dos serviços mínimos no sector da saúde, para além de que, directa e indirectamente, afecta negativamente os cidadãos utentes dos serviços de saúde, sobretudo os pobres, cuja satisfação e garantia cabe ao Estado em primeira linha.
Estranhamente, perante toda a dicussão sobre a legalidade desta greve e as consequências negativas que a mesma está a ter no desenvolvimento do sector da saúde e na vida dos cidadãos pelo deficiente acesso à saúde, incluindo os actos de ameaças, intimidações e abuso de poder praticados por vários órgãos e entidades governamentais contra a classe médica em greve, o Ministério Público não se pronuncia sobre a (i)legalidade da greve e conduta abusiva do Governo contra os médicos grevistas, tendo em conta a sua qualidade de garante da legalidade e representante dos interesses do Estado.
Por sua vez, a Assembleia da República, representante dos interesses do povo, conforme determina a CRM, perante o facto da Greve dos Médicos ter colocado a nú a falta de entendimento sobre o significado e alcance da garantia dos serviços mínimos, bem como o grave prejuizo do vazio legal relativamente à legislação específica sobre o exercício do direito à greve na função pública, ainda não se pronunciou sobre a alegada (i)legalidade desta greve. A Assembleia da República, sendo autora material e formal da CRM, bem como do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado e da Lei sobre a Sindicalização na Função Pública devia pronunciar-se sobre os termos do exercício do direito fundamental à greve plasmado no artigo 87 da lei mãe e dissipar equívocos de interpretação.
Não se percebe a razão pela qual o Ministério Público e a Assembleia da República, numa situação em que são, por lei, obrigados a intervir, se furtam ao seu papel de fiscalizar o cumprimento da lei e garantir a correcta interpretação e implementação da CRM e das demais relativas ao exercício da greve. Estranhamente, também, quase que nada fazem para educar os cidadãos e as entidades e órgãos relevantes sobre o exercício dos direitos e liberdades fundamentais em causa.
Morosidade processual no Tribunal Administrativo
Em Dezembro de 2022, a AMM interpôs, no Tribunal Administrativo, um processo de excepcional urgência para esta jurisdição administrativa intimar a direcção máxima do Ministério da Saúde a respeitar o exercício do direito fundamental à greve pela classe médica e para se abster de praticar condutas ameaçadoras, arbitrárias ou de abuso de poder ou que se traduzem em qualquer tipo de violação contra os médicos grevistas pelo facto da greve em apreço ser legal, legítima e exercida dentro do quadro da CRM.
No entanto, o supra referido processo urgente ainda não foi objecto de decisão por parte do Tribunal Administrativo e já revela excessiva morosidade processual, uma vez que já devia ter sido proferido o correspondente Acórdão justo e consciencioso, dada a natureza urgente do processo, para além de se tratar de direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, com destaque para os médicos e para o povo que estão a ser vítimas de falta de acesso à saúde de qualidade e em tempo útil.
A esperada decisão do Tribunal Administrativo sobre este caso pendente, desde que se debruce sobre o mérito da causa, irá ajudar a perceber melhor os termos do exercício do direito fundamental à greve na função pública, bem como sobre a conduta do Governo na gestão da mesma greve e se as ameaças têm qualquer base legal para o efeito.
No entender da AMM, a demora no desfecho do referido processo está a dar espaço para o Governo perpetuar as ameaças e outras condutas abusivas contra os médicos grevistas, para além de estar a criar um ambiente de descrédito do sistema de justiça aos olhos dos cidadãos que não entendem a razão de excessiva morosidade processual.
Provedor de Justiça e Comissão Nacional dos Direitos Humanos
A função primordial do Provedor de Justiça e da Comissão Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) consiste na garantia dos direitos e liberdades dos cidadãos, na defesa da legalidade e da justiça, bem como na promoção dos direitos humanos. Todavia, estes dois órgãos de justiça extrajudicial não se têm manifestado sobre a problemática do exercício do direito à greve dos médicos, nem sobre a denegação do direito à saúde pelo Estado pela não resolução do problema que levou os médicos a enveredarem pelo exercício do direito fundamental à greve. Ou seja, enquanto o Governo não satisfaz as reivindicações dos médicos, o efeito directo dessa teimosia é a violação do direito à saúde dos cidadãos, sobretudo os pobres. Não faz sentido e é preocupante o silêncio do Provedor de Justiça e da CNDH perante um assunto tão complexo e de interesse público prioritário que se enquadra nas atribuições e actuação desses mesmos órgãos da Justiça.
Concluindo
Do acima dito, é notório que o sistema de justiça moçambicano está cada vez mais distante ou alheio aos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, aos direitos humanos e à realização da almejada justiça para os pobres, senão proteger o Governo, independentemente das violações que pratica contra os cidadãos. Trata-se, pois, de mais um caso flagrante da dita “justiça mais forte com os fracos e fraca com os fortes”, o que já é apanágio do sistema de justiça moçambicano. Portanto, está na hora das instituições de justiça competentes responsabilizarem as entidades e órgãos da Administração Pública pelas ameaças e aplicação de represálias aos funcionários e agentes do Estado por exercício legítimo do direito à greve e do associativismo no quadro da Constituição.