Por debaixo dos meus pés a terra treme. Perdi o equilíbrio. A memória. Já não sei se na verdade é a terra que treme ou sou eu. Inteiro. Salimo Mohamed já cantava no seu subtil “Xantima i bodhlela” implorando-me que fumasse com os meus inimigos, que afinal são meus irmãos, o cachimbo da paz, e eu não quis ouvir. Fechei os olhos para não ver o sangue que pisava com os meus pés. Esqueci-me das lianas que acariciavam meu rosto nas matas da epopeia. Na longa noite habitada pelas hienas visíveis. Pelos grilos e mochos e morcegos. Esqueci-me de tudo isso. Das minhas mãos sangrando na luta pela remoção dos espinhos.
Hoje eu estou aqui. As minhas mãos já não sangram, é verdade! Mas estou vazio por dentro. Sangro na espinha. Na medula. No meu horizonte o crepúsculo do amanhecer transformou-se. Degenerou. Feneceu para dentro de mim onde sou arrasado diariamente pelas verrumas de aço. Tudo à minha volta é um sismo. É como se Eusébio Johane Ntamele estivesse a cantar ao vivo na minha estrada cortada, Khmbo la mina mamana, va ranga hi mbilu va lhomula (que azar o meu, mãe, primeiro arrancaram-me o coração).
Lembro-me que nas matas da longa caminhada eu repetia Louis Armstrong, What a wonderful world, gravado em 1967, cinco anos depois de fundarmos a FRELIMO. Cantava enquanto descansava tendo como travesseiro a metralhadadora em segunda mão enviada da histórica União Soviética. Eu também sonhava com um mundo maravilhoso como o grande Louis. Do meu cano saíam flores também. Buganvílias. Mas tudo isso esbateu-se na minha mudança de rumo. Perdi os sentimentos. Perdi o amor da juventude quando o que me movia era a utopia em si.
Hoje tenho vergonha de cantar Walimba moya, composta nas conservatórias espalhadas em lugares como Ntchinga, onde todos nos uniamos. Já não sou digno de abrir minha boca e libertar os versos ornamentados com sangue dos meus compatriotas. Toda a caminhada que fiz nas noites sem fim, atravessando rios e subindo montes e montanhas, levantando alto o meu braço nos gritos de guerra do tipo A Luta Continua, esvaziaram-se. Começa-me a doer a ferida que eu próprio plantei nas minhas palavras. Isto é o uma úlcera resultante das repetidas violações que fui cometendo.
Ontem sublevei-me contra o colono, e hoje o colono sou eu, cercado porém pelo povo que já não está do meu lado. Sinto que a loucura pode ser a minha próxima etapa. O meu fim. Estou por de cima da calçada onde sou achincalhado por todos. Não posso cair nem para um lado, nem para o outro. Rompi todos os tratados com o meu povo, e o que me resta é só um gemido. Destruí-me com o ouro amealhado nas noites, e hoje já nenhum unguento serve para me abafar a dor. Nenhum analgésico.
Sei! Eu é que não quis escutar a enxurrada das canções cantadas pelos pássaros nas manhãs, apelando-me ao amor. À concórdia. À tolerância. À honestidade. E hoje estou aqui, cercado pela noite.
Bateram à porta com violência. Foram três pancadas de rajada que pareciam o matraquear de uma AK-47 disparada para aviso. O homem assustou-se. Levantou ligeiramente a cabeça do travesseiro e perguntou-se a si mesmo, mas o que é isto!? Bateram outra vez, na mesma cadência. Com a mesma intensidade bruta. E agora percebeu que na verdade estava alguém lá fora. Olhou para o relógio, eram duas horas da madrugada e lembrou-se, uma pessoa que te procura à esta hora é para te matar.
Aos africanos nossos irmãos, agredidos pela xenofobia na África do Sul"
"A história é uma ficção controlada" – Agustina Bessa Luís
Nasceu nos meados da década de oitenta quando a utopia da juventude parecia inabalável. Acabava de morrer o paradigma do povo, Samora Machel, seguido por quase todos, não propriamente - se calhar - por aquilo que ele fazia, mas pela capacidade de contagiar através dos seus discursos caudalosos. Samora era, por assim dizer, um grande actor projectado em palanques imensos que estravasavam para as ruas e mercados e todos os cantos, por isso não havia como não lhe seguir as peugadas. Ele vibrava de tal forma que parecia imortal, por debaixo da risada, porém, daqueles que o fariam sucumbir sem piedade.
Layitha foi dado à luz quando Samora estava no auge, mas pouco tempo depois a aurora de todos nós foi encoberta. Apagou-se o engajamento. O entusiasmo. Aquele que nos dava motivos para acordar sucumbiu aos algozes. E até hoje, depois dessa tragédia nacional, a impressão que subjaz é a de que ninguém tem a certeza do destino que nos espera. O pior ainda é que, mesmo sabendo das dúvidas que mais parecem a certeza de que vamos para lado nenhum, mostramo-nos incapazes de inventar um novo futuro.
João Lourenço, Presidente de Angola, exemplo invejável de toda a África, inesperado pela atitude de colocar o seu país acima de quaisquer interesses pessoais ou de grupos, vai ser com certeza o meu orgulho como africana. Estou a pensar nisso agora que me encontro confinada neste acampamento no Búzi, erguido para nos acolher depois de sermos varridos pelo dilúvio. O problema não é estarmos aqui arrebanhados. Não é esse o problema. Mas sim a dor de perceber que estamos a ser usados para alimentar os apetites dos abutres, sem podermos fazer nada, senão derramar as lágrimas para dentro do nosso coração. Formando a albufeira da tristeza.
João Lourenço fala do pote, para o qual desciam os marimbondos (vespas) com o intuíto de chupar o mel do povo. E eu falo da manjedoura que a nossa desgraça construíu para ser usufruída pelos abutres. Eles pairam sobre as nossas cabeças, descem com as horríveis garras abertas, e tiram a comida trazida pelos amigos e pessoas de boa fé para nos alimentar e disfarçar a dor de estarmos aqui.
Enquanto choramos a morte dos nossos filhos e dos nossos maridos e dos nossos irmãos e avôs, eles choram lágrimas de crocodilo. Aviam-se uns na clareza do dia, outros à calada da noite, com o que foi trazido para nós, mas estamos a ver tudo. E eu, que cheguei aqui apenas com as minhas mamas cheias de leite, sem a criança que gerei com dor e amor, essa criança arrancada dos meus braços e levada pela enxurrada sem eu poder fazer fosse o que fosse, pergunto-me: afinal porquê que fazem isto?
Eles não ouvem. Os abutres são surdos. Continuam a descer e a tirarem da manjedoura o que trouxeram para nós. Mas não tem problema. Eu sou uma mulher nascida da terra. A terra é o meu maná. Todo o meu corpo cheira à terra que trabalho com o lombo vergado, danificando a minha espinha dorsal. Voltarei para lá quando tudo isto passar. Tudo isto vai passar. Menos a minha dignidade.
Abutres! O que me dói não é vocês tirarem a comida que trouxeram para nós. Não é isso que me dói. Isso podem continuar a fazer para encher os vossos reservatórios já fartos. Não me importo. O que me dói é vocês desprezarem o sofrimento das crianças, a nossa morte. Isso é que me castiga. Repugna-me o vosso sorriso de hienas vestidas de pele de cordeiro.
Mas eu sei que o coração está com aqueles que sofrem de facto com o nosso drama. É diante desses que me inclino e agradeço. À eles entrego meu rosto para me limparem as lágrimas, já que as minhas mãos tremem de dor e desepero. Enconsto minha cabeça do peito deles enquanto vos observo, abutres abominados, disfarçados entre estas pessoas de boa fé. Que nos abraçam com afecto.
Saiam daí, saiam!
Acabo de chegar à casa vindo do trabalho, cansado e revoltado contra a minha incapacidade de perceber que tudo isto já foi anunciado pela Palavra. Nunca quis ouvir os apelos do Noa, “meus irmãos e minhas irmãs, vamos construir a arca porque vem aí o Dilúvio”. Qual dilúvio que vai engolir casas e árvores e montes e montanhas! Que dilívio é esse? Desde que eu nasci e desde que nasceram todos os meus antepassados, jamais ouvi dizer que as águas que caem do Céu alguma vez subiram até aos montes, devorando-os inteiros. Isso não passa de imaginação, ou de loucura por velhice do Noa. Noa está obsoleto.
Isto é um delírio. Talvez um suspiro. O penúltimo. Estou debaixo do choveiro entregando-me ao prazer de sentir a água deslizando pela cútis, no bairro de Macurungo onde moro, nesta cidade da Beira despojada dos bosques que a ornamentavam. Já tenho a informação, “vem aí um temporal, um ciclone de grande magnitude e torrentes de chuva. Precavejam-se, procurem lugares seguros, não fiquem debaixo de árvores, fechem as portas e as janelas”.
Está a chover desde manhã, mas isso não me preocupa mesmo depois do Noa avisar com palavras claras, “vem aí o dilúvio, vamos construir a arca”. Isto vai passar, por enquanto deixem-me gozar este deleite que o choveiro me oferece. Também se vier essa tal hecatombe e engolir a minha casa eu sei nadar. De mariposa e de livre e de costas e de bruços. O meu corpo vai servir de jangada para a minha mulher e meus filhos.
Troveja fortemente em toda a cidade da Beira. O Davis Simango é o Noa, “meus irmãos, não deixem as crianças ir à escola, vocês também, que trabalham perto da orla marítima, fechem as empresas, fiquem em casa com as vossas famílias porque isto não é brincadeira, não!
Davis parece um pastor que vai à frente do rebanho quando fala do dilúvio que já está, aos poucos e poucos, lavrando para transbordar o Chiveve e submergir as casas. Chove forte agora, o vento sibilia como várias mambas ao mesmo tempo, e eu sinto que sim, que tenho de cingir o lombo para levar a minha família quando o tecto da casa estiver por debaixo da água.
Espreito pela janela da casade banho e vejo as palmeiras que os manhambanas e os maquelimanes trouxeram para aqui, dançando a dança do Idai. É um lindo espectáculo. É a arte em si. Que me faz sorrir ao pensar que a morte também pode vir do lado do belo. E se calhar todos nós podemos morrer aqui na terra dos senas e ndaus. A ver vamos, diz o cego!
Vou à sala para ver televisão e o corte de energia eléctrica é sagaz. Implacável. Pego no meu celular para efectuar uma chamada e do outro lado é o mutismo que me responde. As torres de comunicação tremeram nas bases. Lá fora o vento continua a sibilar. Agora uíva como os mabecos. Cada vez mais forte. E a chuva ruge no lugar dos trovões, fazendo-me lembrar, tudo isto, que não somos nada. Podemos ser executados agora mesmo, sem apelo nem agravo. Mesmo com os lombos cingidos.
Mulher barriguda que vai ter menino
qual o destino que ele vai ter?
Que será ele quando crescer?
Haverá guerra ainda?
Tomara que não!
(“Secos e molhados”, grupo musical brasileiro)
É uma mulher madura, que apesar disso já não acredita na vida. É céptica. Talvez realista. Houve tempos em que no seu horizonte tudo o que acontecia igualava-se à aurora. As próprias palavras que lhe saíam da boca eram o cacimbo em si, que molhava o capim dando-lhe frescura. Renovação. Levava tempo para responder às perguntas, como os sábios. Acima de tudo deixava-se orientar pela fé de que todos nós fomos feitos para viver em paz e em liberdade. Nascemos para a felicidade. Mas hoje ela é a antítese de todas as suas crenças de outrora. Já não tem esperança. Pior, não tem dúvida de que caminhamos em direcção à Hades.
Estamos sentados frente a frente na esplanada do Hotel Inhambane, lugar onde tenho frequentado com alguma relutância, e ela não se cansa de tamborilar com os dedos no tampo da mesa para dar ênfase às concisas frases compostas com pausa. Aliás o tamborilar é mesmo para isso: dar pausa às palavras. Deus já disse, meu caro, tudo o que vier do ventre da mulher será amaldiçoado, mas ao que parece, até hoje ainda não percebemos essa parábola. Continuamos a inocular catervas e catervas de filhos para depois serem assados na fornalha que nós próprios activamos.
Raci traça um futuro sombrio, e diz mesmo que o que nos espera não pode ser outra coisa senão o bréu. Se eu fosse essas jovens que andam por aí, sonhando com a nascente, recusar-me-ia a engravidar. Engravidar para quê se os filhos já saem doentes dos nossos ventres? Alguma vez já tinhas ouvido dizer que as crinças vêm cancerígenas do útero da mãe? Aonde é que ouviste isso? Não assusta? Não mete medo? Come on, meu!
Estamos sentados frente a frente, eu e a Raci. Ela bebe Whisky em doses excessivas, e eu sinto-me confortável com a água que vou consumindo enquanto escuto os discursos de alguém que, quanto mais vai bebendo, mais lúcido vai ficando. Escuta bem, meu caro: Jesus disse assim à Nicodemus, tu e esses para quem estás a falar, não entrareis no Reino dos Céus enquanto não aceitares nascer de novo. Nicodemus não percebeu logo à primeira, procurou Jesus de noite, o Qual voltou a dizer-lhe a mesma coisa.
A mulher que está à minha frente bebendo whisky sem parar perguntou-me se tinha entendido o que ela havia me dito. Eu não lhe respondi. Pois é: o problema é que ninguém está preocupado com o badalo que anuncia incansavelmente a descida da Espada, nem as mulheres como eu, que engravidam e desejam fazer filhos mesmo sabendo que são seropositivas. O quê isso!? O pior é que alguém ao mais alto nível da governação encoraja esse pecado de saber que pode sair uma criança infectada para sempre. Uma criança que virá à terra para padecer, por culpa da nossa insanidade.
Estamos na esplanada do Hotel Inhambane há mais de duas horas e eu devo ter dito apenas duas ou três palavras. Ela é que fala. Com clareza, como agora depois de entornar mais um duplo: até os homens, muitos deles, acreditam que por terem sido circuncisados, estão protegidos contra o virus do HIV. Eu não se essa percepção constitui a verdade. Mas alguém quer lhes incutir isso. Ou seja, quando vêm nos dizer que os riscos de um homem circuncisado são menores, querem nos dizer o quê?
Mathumbu vem do bitonga. Traduzido para a língua portuguesa ficaria redes de arrasto usadas pelos pescadores. Julião ganhou o sobrenome por ser reconhecido como indivíduo de força extraordinária. Bruta. Capaz de realizar sozinho um trabalho reservado à dez pescadores. Homem de poucas palavras, Julião Mathumbu entornava goela abaixo um garrafão de cinco litros de sura à gargalo, sem parar um único segundo para respirar.
Regozijava-se pelas mãos que tinha, rijas como pedra. Dizia para todos, se eu te der uma bofetada, a Polícia vai pensar que foste agredido por um ferro. Mas hoje ele já não fala disso, são os outros que repetem com as palavras as façanhas de outrora, quando Mathumbu era um orango-tango. Com músculos bem distribuídos, num corpo sempre pronto a exercer as tarefas dos sáurios.
Julião Mathumbu já não bebe. Já não tem aquela energia. Não mostra as mãos agora sem calos. Limpas. Leves como de uma criança. As pernas já não suportam aquele corpo enorme. Vacila quando se move, como um leão exausto. Velho. A voz roufenha fala para dentro. Não sai. Perdeu a vontade de viver. Os seus amigos dos tempos trazem-lhe o peixe que ele não come. Estou cansado disso, diz o homem sentado na sua eterna cadeira de cordas de sisal. Sem qualquer expressão no rosto. Frio.
A mulher morreu há cinco anos e a vida para este personagem perdeu o sal. A casa modesta que construiu com o suor da pesca é o único elemento da sua vida que se mantém de pé. É o seu orgulho. Nunca teve filhos. Quem dava sentido à sua existência era a mulher e os amigos. A mulher já não está e os amigos não bastam. Bebe um pouco, Mathumbu! Para quê?
Um jovem artesão esculpiu um enorme peixe em madeira de mafurreira e levou a escultura para casa de Julião Mathumbu. Queria ter o privilégio e a honra de deixar algo importante para o ídolo de muitos na zona. Uma prenda que vai trazer alegria ao homem. É para quê, isso? É uma recordação dos seus tempos, mais velho! Quem te disse que eu quero me recordar dos meus tempos? Tira isso daqui, faxavor. Se gostas de mim não me traz essas coisas e nem me fales dos tempos que vivi com muita alegria.
Julião Mathumbu está obsoleto. No corpo e na alma. Os amigos visitam-lhe cada vez mais pouco. Sofrem quando vêm um homem a descer devagar para o precipício. Em silêncio. Sem olhar para trás e lembrar as glórias. Vividas com intensidade no mar e na terra. É uma pessoa afável. Sempre foi. O seu corpo de brutamontes jamais teve algo a ver com o coração. Grande. Onde cabem todos os que agora lhe engrandecem. Mesmo não estando com ele nas paródias que ainda acontecem depois das fainas intermináveis.
As gargalhadas de Julião Mathumbu, ora vibrantes, desvaneceram. Passa maior parte do tempo com a cabeça pendida para o peito. Parece um condenado à espera da guilhotina e sua descida vertiginosa para lhe decepar a cabeça. Na verdade ele pode estar à espera do golpe final. Porque pelo que parece, a morte de Julião Mathumbu está cansada de esperar.
A mulher sentada nesta cama à minha frente deve andar nos quarenta. Ou pouco mais. Se não fosse todo o crepúsculo do entardecer que a habita, diria que está no auge. Da vida. Mas tudo leva-me a acreditar que os dias que a esperam serão ainda mais dolorosos. Quer dizer, naquilo que eu imagino e sinto, ela pode estar a viver numa sombra gelada. Pensando que só Deus é que pode reverter toda a situação dramática que enfrenta. É isso: já não resta nada no seu corpo.
Está sentada com o travesseiro a suportar as costas. O lençol serve apenas para cobrir os quadris porque a partir dali para baixo não tem nada. Ou seja, as coxas e as pernas foram amputadas. O braço direito foi removido inteiro pelos malditos serrotes cirúrgicos, e o outro braço que resta está engessado, na iminência de ser cortado para eliminar a derradeira esperança. E eu faço um tremendo esforço para não chorar. Porém, notando ela a minha forte comoção diz-me assim: amor, chora à vontade, vai-te fazer bem.
Ainda não consegui arvorar outra paralvra para além do supérfluo e estúpido “como vai, Joana?!” Sinto-me dominado. Arrasado. Apanhado numa rede de emalhar da qual jamais sairei. Mas ela parece superior ao seu próprio sofrimento. À minha fraqueza. Joana é mais forte que eu. O rosto dela, brilhante, parece o anúncio do amanhecer. As palavras que saem da sua boca vêm directamente do coração, como agora que me olha nos olhos e diz: não te preocupes, amor, tudo isto vai passar como os ventos que sopram e passam.
Lá fora está a chover, e esta mulher não vai poder assistir ao belo espectáculo da queda pluviométrica. Pior do que isso, não sabe como serão os dias que a esperam depois de sair de uma enfemaria que pode ser das mais desesperadas do hospital. Mas ela não desespera. Diz-me que ainda vai a tempo de ser como Óscar Pistorius, que ganhou medalhas correndo com próteses de carbono. “Eu vou me levantar daqui, amor. Aguarda-me”.
O que mete medo nesta mulher é o brilho do rosto. Dos olhos. É o sorriso permanente. Que demolem por completo o sofrimento de um corpo que a partir de agora vai servir para muito pouco. Para quase nada. Joana desmente tudo isso. A leveza imposta na firmeza das palavras que lhe saem do coração pela via da boca, deixam exposta uma mulher que ainda sonha em voar. Sem asas. Decepadas para sempre.
A única mão que lhe resta naquele braço engessado parece de uma criança. É leve como pluma. As unhas, lindas, estão cuidadosamente cortadas, mas ela diz, sorrindo, que daqui a pouco esta mão também vai ser serrada juntamente com o braço e atirados ao forno para incineração, como se fazia naquele tempo com os ramos de oliva que não produziam. Eram cortados e queimados. E os membros da Joana já não dão frutos.
A história que vou-te contar vem de dentro de mim. Das minhas memórias tristes. Da vida rastejante que não me larga, e das derrotas acumuladas perante a minha incapacidade de correr ao encontro da luz, como fazia, nos seus tempos de glória, O.J. Simpson, um dos mais importantes jogadores de râguebi norte-americano do seu tempo. Sempre pensei que a culpa de todo este sofrimento imparável fosse do meu pai, mas graças a Deus ainda fui a tempo de perceber que não. Quer dizer, ele vai ser absolvido de todas as minhas acusações.
Meu pai era um bêbado e fumador inveterado. Isso é verdade. Cresci partilhando com ele o mesmo tecto, inalando desde criança os odores da cachaça e do fumo e do próprio cheiro do seu corpo negligenciado. Desmazelado. Aprendi dele a beber e a fumar. A ser negligenciado e desmazelado. Também. Mas há uma coisa muito importante que deixou comigo: a lealidade. E a fé de que amanhã o sol vai nascer outra vez. Isso é que me orienta.
Hoje sou ajudante de camião de longo-curso. Nunca aprendi a fazer nada na vida, senão beber e fumar. E o preço que pago é este: vou sucumbindo em cada viagem. Pendurado por de cima da mercadoria em viagens de não acabar. Mas o que me dói mais é que sigo para frente de costas. Vejo as coisas depois de passar. Nas noites pareço um pássaro de mau agoiro cheio de medo perante os holofotes dos carros que nos ultrapassam. O frio arrasa-me. A chuva festeja por sobre o meu lombo. E não posso fazer nada, senão encolher o corpo para dentro de mim, temendo interminavelmente o pior.
Apesar de tudo isto que passo cá fora, lá dentro, na cabina confortável deste Frethline, o condutor está sozinho. Gozando. Sabe que nesta zona de Catandica, onde se ergue aquela linda cordilheira como linha de fronteira entre Moçambique e Zimbabwe, faz muito frio. Para além disso está a chover. Mesmo assim está pouco se lixando. Ele dança com a alma a música dos limpa-pára-brisas, enquanto cá em cima eu é que sou o pára-brisas de mim mesmo. As minhas costas é que são a muralha de um esqueleto que está a vacilar.
Nestas viagens passamos frequentemente pelos controis da Polícia, sem que no entanto os agentes da autoridade obriguem o condutor a levar-me lá dentro. E essa dor toda faz-me lembrar o meu pai que morreu na sargeta. Bolas! Eu também vou morrer na sargeta, como o meu pai. Não tenho nada. Nem mulher. Nem filhos. A casa onde vivo é um buraco imundo. É pior que este cadafalso onde sobrevivo. Onde vou sendo executado devagar. O que castiga a minha alma é que estamos no mesmo carro, eu e o condutor, mas ele é um menino privilegiado. E eu um sabujo qualquer. Sem direito à entrar na cabine, mesmo quando está a chover. Mesmo quando o frio é de enregelar.
Apetece-me chamar sacana a este indivíduo que vai ao volante do “nosso” Frethline, mas na verdade eu é que sou inútil. Sou obrigado a suportar a ignomínia de dormir debaixo do camião, enquanto ele festeja com putas e bebida na cabine, num lugar qualquer onde lhe apetece estacionar. E depois de tudo, de madrugada, cara sem vergonha, ainda me pergunta se está tudo bem. Pior, manda-me procurar água para ele se lavar. E eu faço tudo isso curvado como uma besta.
Porventura haverá algum camionista que não seja sacana? Todos eles o são, excepto pouquíssimas excepções. Repare bem: quase todos eles são baixinhos. E homem baixinho só tem duas alternativas: ou é um bom bailarino, ou um sacana.