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Actualizado de Segunda a Sexta

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Alexandre Chaúque

Alexandre Chaúque

terça-feira, 03 setembro 2019 12:06

Sou uma mulher para sempre

No dia em que tudo isto aconteceu voltávamos de Tete, eu e o meu pai, depois de umas férias agradáveis passadas em Tsangano, alí no limite com o Malawi. A princípio a ideia era esventrarmos a terra de Khamuzu Banda, para depois reentrarmos em Moçambique por via da província da Zambézia, onde nos esperavam arrebantantes paisagens da natureza. Mas o plano mudou quando nos disseram que no Malawi chovia torrencialmente há dois dias. Pegamos no mesmo caminho que nos levara até ao lugar das imensas pradarias e colinas, e fruta fresca e comida de não acabar. Agora de regresso à Maputo, onde eu nasci, contrariamente ao meu pai que é nyandja dali.

 

Para além de viajarmos num carro confortável, um BT-50 dupla cabine em boas condições, a maior sensação de segurança que me vai dentro, vem do facto de o meu pai ser um condutor responsável. Ele respeita a estrada e os seus sinais, mas sobretudo respeita-me a mim, por isso evita criar condições em que eu possa ser assustada por qualquer manobra imprudente. Não que ele ande a quarenta ou sessenta. Não! Mas também nunca passa dos 120, pelo menos quando está comigo.

 

Saímos de Tsangano muito cedo. Podiamos ter saído mais cedo ainda, mas era necessário esperar que o nevoeiro desvanecesse para termos visibilidade plena. E quando chegamos a Tete, meu pai propôs que fizessemos uma curta paragem para um café. Fomos ao Almadia, ali na margem sul do rio Zambeze de onde, enquanto degustavamos do pequeno almoço, aproveitavamos a ocasião para contemplar a ponte que é um especáculo vista daqui.

 

Meu pai bebeu uma grande chávena de café e uma sandes de queijo, e eu imitei-o, embora ele sempre me diga, cuidado com o café!

 

Retomamos a estrada por volta das nove, despedindo-nos de Tete, uma cidade agreste cercada de montanhas de pedra. Vi Kalowera do lado direito, já à saída, com o bairro  Kanongola do lado esquerdo, e entreguei-me, absorta, àquela paisagem que deixava para trás. Foi nesse momento de pensamentos que meu meu pai, sem olhar para mim, disse-me assim, aperta o cinto, meu passarinho. Ele gosta de me tratar assim. Sou o passarinho dele. Uma menina amada.

 

À entrada de Katandiga, minha mãe ligou de Londres onde estava a fazer o doutoramento em Antropologia. Ligou para o celular do meu pai, e o meu pai deu-me sinal com a cabeça para que eu atendesse. Peguei no telefone mas não falei sequer uma palavra. Um monstruoso camião, que vinha em sentido contrário ao nosso, perdeu repentinamente a direcção e veio para a nossa faixa. Meu pai ainda tentou fazer um milagre para fugir do mastondonte enquanto eu gritava chamando pela minha mãe: mãeeeeeeeeeeeee!!!!!!!!! O nosso carro foi a tempo de evitar o choque frontal, mas capotou logo a seguir, e depois disto não me lembro de mais nada.

 

Despertei no Hospital quinze dias depois numa cama ortopédica, e o meu pai estava ali, agora com a minha mãe que teve de abandonar os estudos por conta do que nos aconteceu, a mim e ao meu pai. Que não sofreu no acidente. Os dois estavam ali, olhando-me com comiseração e perguntei, o que é que está acontecer, mãe? Eles debruçaram-se sobre mim, chorando e molhando meu corpo com as lágrimas. E eu percebi rapidamente tudo. Não foram necessárias muitas palavras.  Estava paraplégica. Para sempre. Mas continuo a ser uma mulher. Que ainda vai voar, mesmo sem poder mexer as patas. Escangalhadas. Para sempre.

A nossa amizade é inabalável. Conquistamos – eu e ele – ao longo do percurso de mais de meio século que dura a nossa relação, a liberdade de nos dirigirmos um ao outro sem reservas, com honestidade. Foi nessa condição que, cansado de ver o meu amigo caminhando impotente para o pricipício, já no fim da linha, balançando ao titmo de uma carcaça inútil, falei-lhe aquilo que penso, sem filtar as palavras. Eu disse-lhe assim, meu irmão, estás um trapo de merda.

 

Pior do que tumefacto, o rosto daquele que em tempos parecia O.J.Sinpson correndo com a bola ao encontro da luz, está lívido. Arrepia olhar para ele, sobretudo nas manhãs, antes de começar a cavalgada que o vai transformar em esterco. Treme de cima a baixo e não consegue suster o olhar em seja o que for. Os lábios estão gretados, numa boca que esconde o bolor repugnante que se aloja por sobre as gengivas, onde estão embutidas duas filas de dentes completamete queimados pelo tabaco.

 

A mulher, embora continue ao seu lado suportando um cadáver que pode ser enterrado daqui a pouco sem glória, não pode fazer mais nada senão preparar as lautosas refeições que mesmo assim Chico não come, e lavar a roupa para disfarçar o corpo de um homem que é diariamente enxovalhado pelo álcool. Chico não tem peladar. O único sabor que conhece e do álcool e do fumo. Chico é a antítese de pessoa. Aliás eu disse-lhe isso várias vezes para ver se as minhas palavras serviriam para alguma coisa. Nada!

 

Ainda nem o sol ganhou plenitude e o meu amigo já está na segunda dessas “garrafinhas” que têm levado muitos jovens a esquizofrenia. Se calhar o meu amigo também está aí. Ele padece. Vê-se nos olhos esbugalhados, constantemente feridos pelo fumo que espantosamente ainda não lhe provocou a  catarata. Mas o sofrimento do Chico, agora que já está em “órbita”, é disfarçado pelo vozeirão à Barry White, cantando canções dos americanos, tipo Memphis Slim. Canta e conta histórias inacreditáveis. Desconhecidas. Levita como os cosmonautas. E provavelmente  isso é que lhe vai ajudar a descer o desfiladeiro.

 

Cada vez que falo com o meu amigo no sentido de ele vir para este lado, o meu amigo ri-se de mim às gargalhadas, abrindo desmesuradamente a bocarra repugnante. Voltei a dizer-lhe que era um trapo de merda e ele, serenamente, disse-me que eu não sabia o que estava a dizer. Pode ser verdade. Mas gosto dele, isso é que importa, e já percebi que também eu, como a sua delicada e dedicada esposa, não posso fazer nada, senão assistir à marcha de um homem que vai a execução sem capuz. Aliás vai encapuzado pelo álcool que lhe dá prazer nesta caminhada fatídica.

terça-feira, 20 agosto 2019 08:50

Passo as noites nua... sem vestimenta

 

Agora percebo que toda esta imaginação que hoje vivo é uma realidade. Uma tormentosa realidade. Diferentemente do tempo em que eu era a rainha desta terra,  vivendo por cima de todo o chão. Desprezando as minhocas, pisando-as sem misericórdia, dizendo sem reservas que nada de mal me aconteceria. Mas no fundo eu era a Dambóia, irmã do Ngungunhana, semeando espinhos em todo o lado.

 

Estou abraçada, por não ter abrigo,  a uma rocha que me rasga as mãos até ao sangramento. Porém, paradoxalmente, tenho empregados e mordomos que se revezam diariamente neste palácio onde moro cercada de ouro e diamantes, sem falta de nada. Mesmo assim os temporais incessantes não me poupam. Varrem-me em cada passo que tento dar na fuga de mim mesmo. Sou um lagarto desesperado, na luta inglória pela escalada das lindas paredes da minha casa, debroadas de rubis.

 

Mas isto já não é casa. É uma clausura, onde passo as noites sem sentir o cheiro aspergido pelas alfazemas trazidas da Etiópia. Perdi o olfacto. Estou nua por dentro da alma, sem vestimenta, apesar das roupas confortáveis que agora não valem nada depois de tudo isto. Desdenho-me em todo o ser. Repugno-me. E pior do que isso, as cobras enchem-me o quarto em substituição do tapete de veludo que adquiri sem o merecer. O medo ri-se de mim, enquanto de longe, como cavaleiros do Faraó, desembucham sobre mim as gargalhadas dos mochos.

 

Estas noites não podem ser uma alucinação. Na verdade sou eu, sentindo a penetração das esporas nas minhas vísceras, obrigando-me a trotear em rodopio no seio da própria tormenta. Já não sou a raínha. Sou uma mulher estranha perante os empregadose mordomos que sempre me temeram. O meu palácio é sombrio. Assombrado. Meu corpo e minha alma não estão quentes nem frios. Estão mornos. É por isso que se aproxima de mim toda esta bicharada. Fui vomitada pela vida.

 

Pena que eu não tenha copiado da sabedoria da formiga, e hoje estou aqui sem provento. Vazia. Abandonada. Tenho comida para mim e para os cães, e sobras para o Lázaro, mas a minha fome não passa. No fundo estou morta. Sinto que meu nome descerá para sempre com a minha carcaça. Não restarão lembranças de mim para as crianças. Muitos aspirrarão de alívio ao receberem a notícia da minha morte. Beberão o champanhe que nunca me faltou. E muito mais para festejar aquilo que eles agora desejam ardentemente: que eu sucumba. Isso é que me fulmina o ser todos o dias, nesta vida em que já não olho para o relógio, cujos ponteiros morreram como eu.

 

 

terça-feira, 13 agosto 2019 13:25

O silêncio também é um sismo

Queria escrever-te uma carta de amor, daqui onde me encontro contemplando o mar da minha imaginação, mas estou  vazio por dentro, encharcado pela demora do teu beijo. Estou por de cima da calçada. Desesperado. Ardem-me por dentro as palavras sufocadas neste caminho que já não sei para onde vai. Quero gritar e sinto medo do desiquilíbrio. Faltam os carrimões,  e não tenho nada nas mãos senão o formigueiro criado pelas incertezas. Se eu cair para este lado, serei devorado pelas chamas. Se cair para aquele lado, a almofada do meu corpo serão os corpos frios das serpentes. E agora, meu amor!

 

Este silêncio está-se tornando um sismo. Cada vez que tento a repetição das canções buriladas pela solidão, para ver se espanto  a ansiedade que me caustica, a minha voz vacila mais profundamente. Não oiço nada. Nem o murmúrio do mar. Nem o vacalizar inaudível do meu próprio coração. Nem nada. O que sinto são as espigas de aço. Perfurando-me. Danificando-me a alma ardente do teu amor. Acho que tudo isto é a chegada do fim.

 

Não saio da calçada. Não consigo sair. Cada vez que tento, aumentam as labaredas do silêncio que me lavra. Sem misericórdia. Vejo os corvos rindo-se de mim neste momento em que desejo escrever-te a carta que pode ser a derradeira. Não oiço nada, meu amor. Nem o cantar sinistro do vento que muda o rumo das gaivotas. Mas eu mantenho nas mãos o papel e a caneta, sem a certeza de nada. Aliás a única certeza que tenho é de que vou ruir. Essa é a única certeza que eu tenho.

 

Meu amor! Até o blues, que sempre me fortificou em noites de medo, silenciou-se. Era o blues que me inspirava, e agora não consigo escrever nada. Nem uma carta para ti. Estou aqui de cócoras, como um guarda-redes de hóquei em patins, e o meu stick é a caneta que trago numa mão,  entretanto sem conseguir riscar o papel que seguro noutra mão. Tremo nos fundamentos do meu ser. O vento está quase a derrubar-me. Sibila as estrofes do inferno, com garrafas explodindo sangue no lugar de champanhe.

 

E agora, meu amor! Agora que o silêncio se transformou em sismo! E agora! Resta-me esperar pelo destino que o vento vai-me dar. Se me empurrar para este lado, serei devorado pelo fogo. Se me empurrar para aquele lado, também serei devorado pelo fogo. O pior é que nem posso fugir.

 

Meu amor!

terça-feira, 06 agosto 2019 07:16

Mbata Nhalégwè no lançamento do meu livro

Estou no acto do lançamento do meu primeiro livro, em 2001, na cidade de Inhambane. O título é esse mesmo: Inhambane Sem o Badalo, uma homenagem à figuras que estarão por todo o sempre ligadas aos cheiros desta cidade elevada - pela minha imaginação nas paródias - ao lugar mais sossegado do Mundo. É uma colectânea de crónias recebida com estupefação pelos cépticos, que me achavam incapaz de ressurgir das cinzas depois de longos anos chafurdando na lama. Desnorteado. Será também a obra que me fez sentir um pequeno deus, por isso autorizado a enfiar as mãos nos bolsos e assobiar em liberdade pelas ruas e pelos atalhos e pelas sinagogas, passeando em paz. Com vaidade.

 

No evento, de entre os demais ilustres e pessoas do vulgo, esteve lá um homem que vai ser lembrado eternamente pelos espectáculos de pico que proporcionava na baliza. Pela audácia. Chama-se Mbata Nhalégwè, um guarda-redes notabilizado no Clube Arrera Kwara, e depois celebrado em toda a província onde era alcunhado “guiwonga” (gato). Extravazava classe em todos os movimentos. Exuberância. Plenitude.

 

Mbata Nhalégwè ficava encostado ao poste, de braços cruzados, pernas em tesoura, quando o jogo fosse despejado – ou pelo corredor central, ou pelas “asas” - para a baliza contrária, como se estivesse à espera serenamente de alguém, ou lucubrando na memória. Mas quando o perigo corresse na sua direcção, ele dançava como um dançarino de mapiko, media os ângulos com as mãos, gritava para os defesas seus colegas, por vezes saía da área e  logo a seguir voltava a correr para o seu reduto de costas voltadas para a bola, deixando tudo o resto por conta dos sensores implantados no seu corpo e espírito.

 

Os pontas-de-lança, ou os médios ou médios-avançados, podiam desferir mortíferos remates enquanto Mbata retornava à baliza naquele movimento subreal, e este, assim mesmo, de costas para o jogo, em corrida, como um gato feiticeiro, rodopiava no ar e impedia a trajectória fatal da bola. Tinha manápulas mágicas. Buscava o esférico no ar num gesto de quem colhe, como um maroto inesperado, uma laranja no ramo mais alto da árvore. E é isto, e muito mais, que vai tornar Mbata um guarda-redes idolatrado e festejado em toda província de Inhambane, no seu tempo de glória.

 

Hoje, em 2001, vejo um homem movendo-se no corredor da sala onde decorre o lançamento do meu livro. É extraordinariamente alto, cabeleira farta, completamente esbranquiçada, parecendo de prata. Procura com os olhos uma cadeira livre para se sentar e a primeira vista não há cadeira desocupada. A sala está absolutamente cheia porque o meu nome ribomba por estas bandas. Reboa até aos bairros mais longíquos onde também serei festejado como Mbata Nhalégwè, por todas as trafulhices que andei a fazer por aqui, e pela música de blues que vou cantar, sem saber nada de blues, nem nada sobre a escala diatónica.

 

O homem não encontra lugar para sentar. Orbita sobre o seu próprio eixo lembrando os dias dos jogos das estrelas  e, resignado como nunca esteve no campo de futebol, recua e encosta-se na porta da entrada, na mesma posição habitual de quando brilhava como um astro, desde os meados da década de sessenta, até princípios da década de oitenta: braços cruzados e pernas em tesoura. Olhei para ele e reconheci-o logo, era o Mbata Nhalégwè naquele estilo característico que recusa desvanecer apesar da idade. Nesse momento falava o governador de Inhambane, bajulando-me, e eu estou pouco me lixando para as bajulações. Mas o “boss” teve que interromper o discurso quando viu um homem que se destacava pela sua peculiaridade física, encostado à porta de braços cruzados e pernas em tesoura. Era o Mbata Nhalégwè, agora convidado por “Sua Excia” a ocupar a única cadeira vaga que se dispunha na fila da frente, reservada aos “responsáveis”.

 

Lá vem ele pelo corredor, estiloso, tranquilo, sereno, transcendental. Há silêncio na sala. Todos estamos paralisados. Mbata Nhalégwè faz uma vénia ao governador, enclina-se para pegar pela mão esquerda o encosto da cadeira, antes de se sentar. É um homem longelíneo. Virou-se para a plateia e saudou-a vocalizando palavras simples que ainda hoje me ressoam na alma: “este lugar não é para mim!”. Virou-se  para o governador e disse, “muito obrigado, Excia”.

 

Houve uma forte salva de palmas. E antes de se sentar – como um mamute – Mbata Nhalégwè disse mais, dirigindo-se à plateia: “é uma uma grande honra e privilégio, participar no lançamento do livro do Alexandre, uma pessoa que fala sempre de mim como se eu fosse alguém, quando na verdade ele é que é alguém!

 

Houve outra estrondosa ovação, com as pessoas de pé, incluindo o governador da Província, que já não sabia o que fazer!

quinta-feira, 01 agosto 2019 05:56

Carta à um amigo na diáspora

Epá, como sabes, eu não uso esses dispositivos do tipo whatsap, facebook, e outros facultativos disponíveis no nosso tempo. Não tenho estrutura para isso, para além de que a minha impressão, é de que tudo isso está a levar-nos à loucura. Toda a gente anda com os celulares na mão, entre eles aqueles que ostentam os mais modernos e poderosos, malta Huwawei. Não tiram os dedos  e os olhos do ecrâ, mesmo caminhando debaixo do sol. Ou a conduzir viaturas na estrada. No átrio das escolas então não digo: os alunos conversam cada vez mais pouco entre si. Estão sentados no mesmo banco ou no mesmo chão, no jardim, mas cada um no seu mundo. Já não há terapia de grupo.

 

Mas não é para te contar estas baboseiras conhecidas por todos que resolvi escrever-te esta carta. O motivo que me leva a fazer isto é a saudade que sinto de ti. E também a necessidade de partilhar contigo alguns medos que me assolam ultimamente. Aqui continuamos a ser  mortos, meu irmão! Assim mesmo, como cabritos içados num ramo qualquer de uma árvore e decapitados a sangue frio. O pior é que esta chacina não dá sinais de abrandamento, e estamos à caminho das eleições gerais onde ninguém sabe o que vai acontecer.

 

Neste país, que também é teu, meu irmão, já ressurgem aldeias inteiras abandonadas. Outros conglomerados foram literalmente incendiados. Os nossos irmãos, aqueles que conseguiram,  saíram de lá como baratas assustadas e foram se aglomerar noutros lugares, escondidos, mesmo assim sem a certeza de nada. Vivemos de morte em morte. E aqui onde estamos, não há ninguém que nos consola. Tudo à nossa volta representa o escuro.

 

É isso, meu irmão! O meu medo aumenta porque há metralhadoras, ainda aqui dentro, mais para cá, que parecem prontas a troar de novo contra os nossos corpos. Na verdade o que mata não é aquilo que entra pela boca, mas o que sai através dela. E as palavras que temos ouvido ultimamente, nas matas e nas cidades, são um verdadeiro rastilho. Aceso. Há um receio de que a dinamite exploda.

 

Temos muitas flores por aqui, meu irmão, como tu bem o sabes. Lindas flores. Alagadas de futuro. Mas no lugar de colhermo-las para ornamentar os convívios, investimos sobre elas como pragas. Ontem as crianças cresceram ouvindo o matraquear das armas cuspindo balas sobre os corpos dos seus pais e sobre os corpos dos seus irmãos, e hoje essas mesmas crianças assistem à decapitação dos seus projenitores, em espectáculos macabros que se repetem sem fim à vista.

 

É este o nosso país, meu caro! Que vive de morte em morte. Com homens bebendo o sangue saíndo da jugular dos seus próprios irmãos, com o fim de lhes fortalecer, segundo a sua irracionalidade, a sanha assassina. Já não esperam pela chegada da noite, para ser a própria noite a vestir-lhes o capuz. Avançam à luz do dia, e assim, as vítimas contemplam, lívidas, o brilho da catana que lhes vai decapitar como reses desgraçadas.

 

Mesmo assim ainda acredito na roda da história, meu irmão. Um dia todo este sangue que escorre nas aldeias, vai ser lavado. Quem sabe!

 

Receba este meu abraço trémulo. Sucessos por aí.

quarta-feira, 24 julho 2019 06:00

O tempo do Kivis e Inhambane 70

 

Nessa altura emergia uma panóplia de ouro, composta por jovens que haviam nascido para fazer aquilo mesmo. Foram escolhidos já no ventre das mulheres que os geraram, e a única possibilidade que tinham, nessa condição, era brilhar. Cintilaram mais do que o tempo que os cometas levam a luzir por sobre a terra. E alguns deles continuam a reverberar até hoje. Passado quase meio século.

 

Tudo aquilo era um turbilhão. Uma cascata cujas águas era a música em si. O que acontecia na cidade de Inhambane, na verdade parecia também uma ramal do pop, ou o pop feito pelos manhambanas. Com o propósito único de fazerem parte da loucura. O kivis, por exemplo, um agrupamento que tinha a base em Nassurdine Adamo, Badru, Dionísio, e Suamado, fazia parte dessa paródia. Eles lembravam, em determinados momentos, sobretudo pela maneira como se vestiam, os Beatles.

 

Desse alfobre único, alvoreceu ainda o Inhambane 70, uma banda de família que tinha em Manuel Vicente Pires (pai), o próprio badalo para marcar o compasso. Mas foi José Pires (um dos filhos), alcunhado “Quality” pelos amigos, aquele que mais se elevou entre todos os membros do grupo, usando os  dedos de veludo para tocar piano ao mais alto nível. Ele marcou profundamente  o tempo dos clubes nocturnos na cidade de Maputo, um pouco depois da Independência Nacional, tocando particularmente em lugares como Hotel Polana. E se não chegou ao nível de Nat King Kol, é porque Zé Pires não tem voz para cantar.

 

Jaco Maria é dessa gesta, e teremos poucas margens de erro se afirmarmos que ele é uma das pedras mais brilhantes de entre todos aqueles que vieram daquela época. Gostava de calças à “boca de sino” puxadas até um pouco acima do umbigo e usava camisas extremamente apertadas. Mas esse era o estilo do momento, trazido um pouco do vertiginoso Jimmy Hendrix. Significa que Jaco provavelmente será o manhambana desse tempo que se tornou mais visível. Se calhar pelo poder cataclítico da voz, onde reside toda a sua alma.

 

Mas a cidade de Inhambane é fundamentalmente um lugar de êxodo. Todos os que são daqui querem partir, para nunca mais voltar. O Chico da Conceição nunca mais voltou, nem o Magid Mussá.  De outros, nem os corpos, na horizontal, como o Nassurdine Adamao.  Ficou a história deles que ninguém a conta para os jovens.  Já não há matinés dançantes onde o Kivis e o Inhambane 70, alí na Associação Africana, eram o centro da gravitação da juventude.

 

Outros tempos!

terça-feira, 16 julho 2019 07:18

Sumbi Mahenhane: a nonagenária do futuro

Tudo o que ela diz parece uma renovação, pela maneira como dá sentido às palavras. Vibra em todo o ser quando diz, por exemplo, que a linha férrea passava por aqui. Aqui perto da minha casa. É como se ela própria fosse o comboio à vapor puxando em tempos de história e cumplicidades e amizades desinteressadas, longas carruagens repletas de gente em feliz algazarra. Rebusca passados esquecidos e transforma-os em fonte de água nos dias de canícula. Desdenha as muletas e o andarilho, mesmo sabendo que aquelas pernas precisam de ajuda.

 

Sumbi Mahenhane é a lembrança das frenéticas execuções de zorre, em noites vertiginosas nos subúrbios da cidade de Inhambane. Era a raínha sobre quem tudo gravitava, incluindo o batuque tocado por Mafanele, o “King”. Sumbi puxava os instrumentistas para o ritmo do seu corpo, desenhado pela Mão do próprio Deus para enlouquecer. E quando ela não estivesse nesse dia, as estrelas do Céu recusavam-se a brilhar. A lua também.

 

Hoje ficaram as palavras que lhe ressurgem da boca e do espírito. São elas – as palavras – que dançam debaixo do rufar imaginário dos tambores que outrora eram os fundamentos da vida desta mulher. Só a dança lhe dá o sentido de existência. O sonho só pode prevalecer com o som do ritmo. Nada é mais importante, senão a dança. E o amor. É por isso que continua a dançar, agora com as palavras. Retumbantes.

 

O que mais impressiona em Sumbi Mahenhane é a inabalável vontade de viver. Ela fala com esperança, como se o corpo esperasse  nova oportunidade de pisar os palcos e balançar em  liberdade. Espanta a memória deste pássaro. Ela lembra-se de todas as noites em que a luz era o seu corpo. E na verdade, Sumbi era o encanto da própria vida. Ou seja, o óleo derramado em Abraão, desde a ponta dos cabelos até à ponta dos pés, foi inoculado também sobre esta mulher que brilhava em todo o corpo e em toda alma. E agora reluz  em toda a alma que ainda mora neste corpo em derrocada.

 

O que move Sumbi Mahenhane  não é o presente. Mas o passado de glória. Passado do qual nunca recebeu medalhas. Nada! Ela nem sabe o que é isso. Bastam-lhe os ecos da alegria que dava ao povo. As galardões são as pessoas do vulgo, algumas das quais ainda demandam a sua casa para falar desse passado. Com a mesma verve com que o corpo se entregava à dança. É essa presença humana que a faz  acreditar no futuro.

 

Completou noventa anos no dia 15 de Junho passado. Festejou com a família e amigos, num ambiente em que não faltaram batucadas leves,  para celebrar o passado de alguém que continua a falar com alegria. Com esperança.

 

Parabéns, Sumbi Mahenhane!

Todos eles serão elegíveis a sumo-pontíce, no clero restrito a que pertencem. Foram escolhidos entre muitos, e recebido a missão de cintilar em palcos de nunca acabar. Sem outro propósito senão o de fazer da melodia, a própria almadia de libertação do espírto. Fizeram isso. Cantaram em revolta.  Apelaram-nos ao amor nas letras espontâneas e buriladas com sabedoria. Dançaram com todo o corpo. E o resultado é aquele que se viu, deixaram baba por onde passaram.   

 

Com Pedro Langa, Zeca Alage, Roberto Chitsondzo, juntos, Gorwane era de facto a lagoa infinita. A alma da banda eram os três. Gorhwane sintetizava-se neles. De tal modo que, mesmo havendo correntes diferentes no mesmo rio, as águas mantinham a doçura dos tempos. Os “Bons rapazes”, como Samora Machel os apelidava na sua loucura de actor, só faziam sentido com uma alma composta por aquelas três peças fundamentais. Mas hoje, eu pessoalmente não conservo o mesmo entusiasmo perante o Gorhwane. Porque a alma deste grupo está despedaçada. Ficou o Roberto Chitsondzo, e o Roberto vale por ele mesmo. É por isso que considero injusto, continuar a chamar Gorhwane a um grupo de mito, sem o Zeca Alage e sem o Pedro Langa.

 

Kapa Dêch vai ser para sempre o paradigma da juventude. Mas também este grupo será eternamente ligado ao Tony Django e Roberto Isaías, juntos. Quando se fala de Kapa Dêch, avulta imediatamente o nome de Tony. A banda pode fazer tudo, pode ir para todos os lugares exibindo uma grande perfomance, até porque na sua plêiade tem artistas de primeiro nível, mas eles próprios vão perceber que falta o Tony Django. Então isso significa que há alguma coisa que deve ser repensada. Talvez debatida. Porque se quisermos continuar com a marca de um determinado produto, temos que ter a certeza de que estamos certos.

 

Em relação ao Eyuphuru, depois da saída de Gimo Remane, era evidente que Zena Bacar estaria sozinha. Eyuphuro era Gimo e Zena. Tudo o que eles fizeram  pelo mundo e dentro do país, tinha as duas vozes como eixo principal, fazendo do grupo o cristal de Nampula e de Moçambique. A alma do ritmo macua estava nos dois, tornados um pelo compromisso que tinham com a boa música. Mesmo assim, depois da saída de Gimo, Zena manteve aquele nome sagrado, sem que ela própria se sentisse bem. Tremia nas bases, porque Eyuphuro era muito grande demais para ela. Sozinha. Sem o Gimo.

 

Sobre o Alambique tenho outro sentimento. Pode faltar o Childo. Podem ser incoporados outros elementos e novos instrumentos, mas a banda não vai tremer porque a alma está intacta. O coração do Alambique é o Arão Litsuri e o Hortêncio Langa, astros inquestionáveis com lugar cativo nas prateleiras de ouro existentes no mundo. Aliás estes dois, agora, mais do que nunca, exibem no trabalho a estabilidade dos monstros, e a criatividade inesgotável de um espírito que está sempre no auge. Alambique continua a ser a banda do futuro.

terça-feira, 02 julho 2019 06:42

Txifuliane: a minha última machope

Estou sentado, como o tenho feito com alguma relutância nos últimos tempos, num dos bancos perfilados ao longo da marginal da cidade de Inhambane, a contemplar o sol que se vai deitar daqui a pouco. Desta vez é Txifuliane, mulher chope do interior de Zavala,  o forte motivo para eu estar aqui. Ansioso. De certa forma nervoso. E para espantar a demora, sustento o tempo de espera enquanto observo a natureza, pensando ao mesmo tempo na mulher que vai-me alimentando, aos poucos, a esperança, como o próprio gotejar da luz.

 

Txifuliane é diminuitivo de Txifule, que significa mulher sáfara. Que não faz filhos. Mas eu não olho para ela na perespectiva de gerar ou não, os filhos que até podiam estar no seu horizonte, entretanto ferido pela descompensação de não poder ser mãe. Nunca coloquei esse lado biológico como equacionante para a nossa relação, que até aqui não sei se vai produzir algo de bom, como as videiras plantadas na berma dos rios.

 

Conhecemo-nos há cerca de cinco meses, tempo durante o qual fui percebendo que Txifuliane pode ser uma criatura  muito delicada. Que vai arder à mínima faúlha, e queimar-se a si mesma, tipo emolação espiritual. Então ganho uma certa exitação, porque na verdade o meu maior medo será magoar esta alma que me parece muito leve como pluma. Por vezes chego a pensar que é melhor desistir, antes que a minha imprudência provoque fogo posto, no interior de uma mulher que está num eterno período de gestação da dor de não poder dar à luz um ser humano.

 

O que mais me atemoriza é que ela parece confiar em mim. Sinto que os pensamentos dela são de que encontrou finalmente o porto onde possa atracar com todas as bagagens em segurança. Isso é que abala a minha alma, porque nunca fui porto seguro de ninguém. Txifuliane não merece um terreno movediço que sou. Só nos olhos dela noto algo de muito profundo. De muito sincero. Quando  pronuncia o meu nome, todo o meu corpo arrepia e alguma coisa me diz que nela tudo é verdadeiro. E se for, então não a mereço.

 

Penso em tudo isso sentado neste banco da marginal, numa espera que não me dói. Txifuliane é uma mbila. Ressoa para dentro de mim com suavidade. A voz é melancólica como o cântico das rolas ao fim da tarde. E esta realidade profunda perturba-me. Estou num dilema que me pode degenerar, porque este, com certeza  será, pelo que sinto, o último sinal. Se não fosse, então tudo em mim estaria tranquilo. Mas estou a tremer. Tremo muito mais ainda quando Txifuliane me toca e diz-me em chope assim: naku dunda (amo-te).

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