Chegou à cidade de Inhambane em 1982 com todas as escarpas de um massena que se preza, não tinha medo de nada, nem do desconhecido. Nessa altura a juventude daqui era pura, o que eles queriam era viver livres como o vento que não contorna os obstáculos. Otto também, jovem como os outros, queria viver, não como o vento, mas como um baluarte contra aqueles que porventura o quisessem derrubar, o massena é assim, não demora libertar todas as armas do porco espinho que lhe vai dentro.
Chegou sem nada nas mãos, para além da sacola que cabia debaixo do braço, e em pouco tempo passou a ser conhecido em toda a urbe pelo seu caracter obstinado, em particular na família do desporto onde se fazia valer de forma singular, ele é professor de educação física – agora aposentado -, um dos primeiros formados no tempo de Samora Machel e espalhados pelo país inteiro. Ao otto calhou Inhambane, de onde nunca mais saíu, até hoje, que já ninguém se lembra das suas origens e ele também não fala disso. Para quê?
Nos campos de futebol de salão - em noites memoráveis no recinto do Desportivo ou do Ferroviário de Inhambane - Otto Glória era uma das estrelas mais reverberantes no seio de uma constelação jamais vista por estas terras. Era uma muralha em si mesmo, intransponível para os avançados mais afoitos cujos nomes não vou citar, por fazerem parte de uma lista engrandecida pelo próprio brilho desses jogadores e eu tenho medo de me esquecer, se calhar, dos que nunca devem ser esquecidos.
Otto já era lenha regada de gasolina cá fora – à mínima faúlha ele vai arder – e no campo essa lenha era ainda mais seca, ainda mais pronta a pegar fogo e queimar tudo. Mas esse era ele, uma pessoa desconfiada, atenta aos detalhes daqueles que lhe abordam, examinando-os com os olhos da cabeça aos pés e se você o chateasse ele dizia: eu sou beirense! Mas tudo isso nunca passou das palavras, Otto Glória passou a ser amado pouco a pouco, embora não sendo ele pessoa de muitos amigos.
Digamos que estamos perante um personagem com características próprias. Um ser coerente, no sentido de que a personalidade trazida da juventude ainda é a mesma, não fosse ele do bairro Munhava, e como todos sabemos o beirense “não tem recua”, Otto também “não tem recua”. E quando o vemos caminhar pelas ruas e pelos becos da cidade, no seu estilo inconfundível, costas meio curvadas, andar atento e desconfiado, o reconhecemos imediatamente mesmo em noites sem luar. E vamos dizer assim: aí vai o Otto!
A voz roufenha de Otto Glória é um detalhe muito importante do ser deste homem. Quando fala – segundo Jacob de Melo, também professor de educação física, já falecido – dá a impressão de que alguém lhe está apertando o pescoço. Mas essas são as brincadeiras da juventude que prevalecem na memória. Para sempre. A amizade também vai manter-se cada vez mais forte em cada passo da vida.
E viva o Otto Glória!
Numa altura em que as referências da cidade de Inhambane se vão esbatendo na morte, o que resta é encontrar um lugar onde se possa exaltar essas memórias, e um desses sítios é Ngwatitunu, ou “A sombra da vergonha”. Aqui reúnem-se diariamente, regra geral, homens cultos com muita informação deste tempo e do tempo de outrora, informação essa que é partilhada e impulsionada pelo copo que se bebe para aclarar as ideias.
Ngwatitunu vem de Ngwati, nome que se dá ao tamarindo, árvore gigantesca que se ergue no bairro Liberdade “3”, mais concrectamente na zona da “Estação”, agora tornada – a dita árvore - esplanada sem que ninguém saiba a idade desta enorme planta resistente a todos os abalos, mas o mais importante é que este ngwati transformou-se numa espécie de santuário, onde muitos gostam de estar, não apenas para beber um copo, mas para beber um copo e conversar sobre vários temas interessantes, defendidos sob vários ângulos, dependendo do orador de circunstância.
Em Ngwatitunu há clientes “residentes”, do tipo “donos do lugar” e quando eles não estão, sente-se um vazio, mais pelo seu porte cultural ou teimosia, do que pela capacidade financeira. Aliás, a maioria dos melhores conversadores dali, aqueles que dominam a plateia, não respira saúde pecuniária. Têm algum dinheiro que dá para beber algumas, o resto é “papo” que não acaba, levando-nos a recordar grandes figuras que deixaram “baba” no desporto e na música e na sociedade no geral. Até na política.
Ngwatitunu é também um desaguadouro de frustrações, de jovens e adultos e idosos que já chegaram a conclusão de que lá mais para frente não há muita coisa que se espere. Então para se materem-se vivos enquanto o último comboio não chega, vão rebuscando histórias que são contadas com muito entusiasmo, impulsionados pela euforia do copo que não pára de descer goela abaixo, pelas gargantas que não se fartam, mesmo sabendo-se que amanhã o fígado pode não aguentar mais.
Seja como for, Ngwatitunu tem o condão de ser um espaço aglutinador, é aí onde reside o valor social de todo o fervor. Todos se conhecem, por isso se toleram uns aos outros quando as falhas acontecem. Todos sabem das capacidade de encaixe de cada um . Mas há ainda aqueles que vão a Mgwatitunu apenas para delirar com as conversas que ouvem, sem que entretanto participem nelas, ou por incapacidade, ou por caracter e esses também fazem parte do mosaico.
Dá prazer passar por Ngwatitunu, onde você será acolhido como se fosse da família. E se fizer isso num dia de alta voltagem, pode ser que lhe fique a vontade de voltar de novo à “A sombra da vergonha”.
Se eu tivesse que escrever uma carta ao Fernando Manuel, tinha que fazê-lo com a certeza de que sou digno de tal acto, não só devido a minha incapacidade conjuntural, mas porque estou diante de uma figura de porte intelectual honesto e indiscutível. É por isso que tremo ao tentar rabiscar algumas linhas em homenagem ao “Nandinho”, cuja escrita pujante esconde um homem tímido, eivado de cultura e conhecimento, demonstrados nos textos que ele vem publicando incansavelmente, e que o vão tornar num dos mais importantes cronistas do nosso tempo.
Escritor e poeta de verbo sólido e vocabulário caudoloso, Fernando Manuel completou este mês o seu septuagésimo aniversário natalício e eu, na impossibilidade de o abraçar em carne, fiz-lhe uma chamada telefónica com o intuíto de lhe desejar muitos parabéns e aproveitar a ocasião para rememorarmos momentos intensos que vivemos juntos em vários lugares, sem qualquer compromisso que não fosse o de dar azo à vida.
Falei-lhe da sua cegueira na cavaqueira telefónica que durou cerca de quinze minutos e fiz-lhe uma pergunta que nunca tinha feito antes nas várias tertúlias que temos tido por via do celular, e que seria descabida num dia como este, se não fosse o conhecimento profundo que tenho do Fernando Manuel. Pode ser que haja algumas feridas dolorosas dentro deste homem, provocadas pela impossibilidade de voltar a ver as coisas mais belas que já observou na vida, mas toda essa limitação é suplantada pela imensa poesia e extraodinária capacidade de sublevação que moram em “Nandinho”.
Qual é a sensação de se ser cego? Fernando Manuel desatou às gargalhadas, como se a cegueira lhe desse alegria, mas é mentira, ele tem a indismentível saudade da liberdade, quando caminhava segundo um inabalável cicerone que são as palavras. Escritas e buriladas no silêncio das noites e muitas vezes no ram-ram das Redacções para onde jamais voltará, nem que o deseje ardentemente.
Perguntei-lhe ainda assim: não tens saudades das tuas putas? Fernando Manuel voltou a troar uma gargalhada que desta vez pôs a nu toda a rusticidade da sua voz, que muitas vezes cantou em paródias, em celebração da existência, e a resposta ficou-se por esse riso comovente de um ser condenado pela cegueira a nunca mais contemplar o azul do céu e os pássaros planando nos finais de tarde, na despedida do dia.
“Agora vivo de sons!” Na verdade será a música e o tacto, os maiores companheiros do Fernando Manuel, que me ofereceu há dois anos o livro da sua lavra, “O Homem sugerido”, que fiz questão ler para ele, no dia do seu aniversário, um excerto da crónica “Alucinações” , Abandono o brilho ténue das flores que tremulam à luz no cimo das acácias e perco-me no restolhar das folhas sob o ligeiro contacto dos seus pensionistas, pássaros procurando abrigo para mais uma noite e faço-me à trégua.
Atrás, na varanda, na coluna, fiquei eu. Aguardo.
Este é o presente que dei ao Fernando Manuel, no último domingo, com um abraço profundo e no fim ele disse: muito obrigado por teres te lembrado de mim!
Já não sou propriamente um homem de euforias, as festas do Natal e do fim-de-ano não mudam muito a minha rotina. A cidade transforma-se, eu não. Há um entusiasmo na vizinhança, denunciado pela música alta demais, então tenho que fazer um esforço doloroso para suportar aquilo. As compras que vou fazer são as mesmas de sempre, poucas, ao limite das possibilidades. Mas vai ser difícil dormir com este barulho todo, que não me permite sequer assistir a televisão ou ouvir transquilamente a Rádio.
Se não fosse o David estaria lixado. Foi ele que ligou para o meu celular perguntando se queria dar uma volta, eu disse que sim, assim estaria livre deste inferno. David é um solitário como eu. Detesta barulho, nem que seja em festa. Cultiva o silêncio no bairro de Nhapossa onde vive numa casa sem muro de vedação, para quê o muro se eu sou um homem livre! Nem grades tem nas portas e janelas, não preciso!
Então veio no seu carro, um Mitsubichi Pajero velhaco, porém em condições de nos levar para onde queremos ir nesta noite de quarto crescente. Olhou para mim e disse, estás jovial! Respondi com um sorriso, ao mesmo tempo que lhe perguntava sobre a trajectória que iamos seguir. David não tinha mapa traçado, eu também não. O que queriamos era encontrar um lugar tranquilo, sem música e esse lugar não sabemos onde está.
Saímos da Fonte Azul e andamos ao calha. Passamos pela Ponte Cais - uma obra inquebrantável - cujas lâmpadas de iluminação dependuradas nos postes, ao longo de toda a plataforma, tornam o lugar muito lindo à noite, sobretudo quando é contemplado a partir da zona da prancha. E hoje não está ninguém neste sítio que se tornou, durante tempos e tempos, um ponto importante de encontro da juventude, e o David disse, vamos ficar aqui um tempinho.
Sentamo-nos no passeio com as pernas suspensas para a água em maré cheia que se esbate na barreira, movendo-as em relaxamento como quatro badalos que, mesmo cansados, ainda têm duas almas fortes que as sustentam. Parecemos fedelhos, mas issos é mentira. As memórias que alimentam a nossa conversa não nos deixam enganar a ninguém, nem a nós própriios. Somos felizes assim, longe das nossas namoradas que decidiram passar com as suas famílias, e nós sozinhos.
A maré é calma, não se ouve nenhum som daqui onde estamos, a não ser o cantar do próprio silêncio e, de longe, o leve roncar dos motores fora-de-bordo das barcaças que vão e vêm com passageiros indo ao encontro dos seus sonhos e frustrações, cada um com o seu destino, como nós que estamos aqui, ruminando alegrias da infância e da adolescência e da juventude. Ninguém nos dá cavaco. Temos um catalisador no coleman que alimenta os nossos vaipes. Cada vez que vai um copo, vamos ficando mais lúcidos, e assim amanheceu sem darmos conta, felizes da vida.
São cinco horas da manhã e já não dá para mais. Voltamos para casa animados e satisfeitos pela decisão que tomamos de nos isolar, e no dia 25 já não houve o barulho do dia anterior, de modo que deu para repousar e agradecer a Deus por nos ter protegido.
Desembarcamos por volta das 13 na ponte-cais de Inhambane, vindos de Linga-Linga, lugar paradisíaco para onde tenho ido nos últimos anos com alguma regularidade, depois de ter sido convidado pela primeira vez em 2019 por Peter Vurukudzu, um zimbabweano excêntrico capaz de arder à mínima faúlha. Hospedo – sempre que vou – em casa dele, localizada num outeiro, isolada das demais residências que não são tantas. É uma habitação ampla, coberta de colmo maciço com paredes de tijolo e, assim com este material, transmite para o seu interior um ambiente fresco e agradável.
É um privilégio estar na casa de Peter Vurukudzu, de onde se pode contemplar eternamente o Índico, é um regalo. Daqui ainda se ouve o esbater das ondas na areia da costa, e à noite, o hulular do mar é um afago para o corpo e a mente e a alma. Tenho saudades de voltar sempre, e Vurukudzu já me disse, venha quando quiseres, a casa é tua.
Como estava dizendo, desembarcamos por volta das 13 na ponte-cais de Inhambane, mas quem vinha conversando comigo ao longo da viagem é Catidza Maguirimussa, mulher de palavras austeras, livre de bater na minha mão em cada riso, como se já nos conhecessemos de outros caminhos. Estamos sentados lado a lado, enconstados um ao outro de tal modo que o roçagar das nossas roupas e um pouco dos nossos corpos, perturbavam-me e fiquei com a sensação de que ela também sentia-se mexida.
Era eu quem mais falava e Catidza ouvia-me com atenção. Fazia-me perguntas por vezes acentuadas e eu respondia com hosnestidade, sem o receio de que não conheço esta mulher que se desabrocha para mim sem nenhum complexo de me tocar no corpo e bater a minha mão em cada riso. Preferi acreditar na sua sinceridade, no seu fascínio por mim, um homem que ela nem conhece.
Descemos e começou a chover, se calhar para gáudio de Catidza, que abriu o enorme guarda-chuvas cobrindo-nos aos dois, de tal modo que os nossos corpos vão continuar em contacto, num encosto agora mais assustador porque ela abraçou-me, tornando mais flexível a mobilidade, e naquelas condições perdi a capacidade de arvorar qualquer palavra, nem que fosse para dizer idiotices. Foi ela então que se adiantou, dizendo aquilo que tenho dito em muitos momentos: “adoro a chuva”!
Estamos quase no fim do tabuleiro da ponte, que na verdade é onde ela começa, as pontes começam de fora para dentro. Era necessário que dissesse alguma coisa, mesmo sabendo que o meu quoficiente de inteligência é sumário, então repeiti o que Catidza tinha dito : “eu também adoro a chuva”!
Chove chuva fininha sem molhar, mesmo assim, os nossos corpos que se unem em marcha desinteressada. Senti que já não éramos nós que íamos, éramos levados por força desconhecida. Fomos conduzidos sem resistir ou tentar fazê-lo, à varanda da loja do Damodar Jethá “Jethá da esquina”, que seria afinal o ponto da nossa bifurcação.
- Muito obrigado pela companhia, Catidza, obrigado por me teres protegido da chuva.
Ela estendeu-me a mão e disse, leva-o para te lembrares de mim, um dia a gente se encontra por aí.
Peguei no guarda-chuva, abraçamo-nos profundamente e depois fiquei ali a assistir - depois de me deixar com o seu cartão de visitas - a mulher que descia como um anjo até perder-se no desvio da antiga Sapataria Bernardo. Chama-se Catidza Maguirimussa.
Há muitos drogados e prostitutas nesta cidade que já perdeu o estatuto de “ A mais sossegada do país”. E ladrões, que em muitos casos não esperam pela calada da noite para violar residências e roubar, fazem-no a descarada. É uma onda, ou melhor, são várias ondas compostas por jovens que podem estar completamente frustrados. Desesperados. Desnorteados. Então perderam o medo e a vergonha, e agora partem rumo a violência gratuita, com o objectivo aparente de encontrar qualquer coisa alheia que será depois transformada em elemento de troca. Eles têm que alimentar o vício e matar o tédio que lhes rói.
Já não há sossego em todos os bairros da urbe, os munícipes não sabem o que lhes pode acontecer durante a noite enquanto dormem, contrariando os tempos em que você podia recolher aos aposentes sem precisar de trancar as portas. Os bandidos entram por via de arrombamento, rebentam as grades e surripiam o que encontram, sem que os donos da casa se apercebam de algum movimento estranho, e tudo isso já se tornou cíclico. Todos os dias há notícias de assaltos, como nunca antes houvera.
No locais onde se vende aguardente, vulgo thonthontho, ou sura (seiva de palmeira), há jovens frequentadores desses lugares que ficam desde o amanhecer até a altas horas da noite. Não trabalham e a pergunta que subjaz é: onde é que eles encontram o dinheiro para pagar a bebida! Mas eles bebem a rodos. Todos os dias. Estão numa saga de autodestruição e nas condições em que se encontram, com os rostos tumefactos, podem estar a incubar a doença do fígado. Perderam o hábito saudável de beber água.
Mas há um outro grupo que se entrega diariamente a um tipo de droga que ultrapassa a mera cannabis. Se calhar são entropecentes pesados de diversas variantes. Muitos desses jovens são conhecidos pela comunidade, que vive entre o medo e a dor de ver seus filhos na orla do abismo. E é sabido que não trabalham, então o dinheiro usado na sustentação desse vício vem de onde? O pior é que estão a degradar-se, autoflagelando-se. Eles perderam completamente o controle e meteram-se num beco que pode não ter saída. Estão espalhados em todos os bairros.
Outro fenómeno novo na cidade de Inhambane é a prostituição explícita, no sentido de haver lugares para esse efeito, que serão, indiscutivelmente, galerias do diabo. Nunca houve antes esses escaparates, embora se saiba que sempre houve esta prática na cidade, mas de forma discreta. Era tudo feito no silêncio. Hoje não! As miúdas escancaram-se em “oásis” conhecidos e prontas a serem abusadas. Já não se escondem e eu não tenho moral de chamar a isso falta de pudor. Apenas estou a narrar factos existentes. Tristes e dolorosos.
A verdade é que a cidade de Inhambane já não é a mesma. Já não é tão segura, nem de dia nem de noite. E a sensação é de que as coisas estão de mal a pior.
Estamos sentados na varanda da casa do Khwambe Makhwandra, um homem que passou a vida inteira esgravatando terrenos agrestes, porém sem conseguir juntar nada nas mãos, nem por coincidência. Só agora, a caminho dos oitenta, é que sente a chuva fininha a cair-lhe na alma, sem saber como, pois nunca houve antes sinal algum da materialização de tal fenómeno no seu caminho. Mas Khwambe Makhwandra, mesmo assim, tem dito com entusiasmo nas conversas banais e outras profundas, depois da pinga que lhe ajuda a aclarar as ideias, que esta chuvinha retemperadora polvilha-lhe porque nunca deixou de andar enquanto atravessava o inferno.
Khwambe Makhwandra vive agora em Linga-Linga, para onde regressou depois de várias idas à antiga Lourenço Marques, que não deram em nada. Tentou ainda o “Hunderground” da África do Sul, também nada! Até que, já no fim da linha, apareceu o filho de um amigo dele que, sabendo da luta dos dois nos tempos da juventude, convidou-lhe a ser seu fiel de armazém na Maxixe, onde trabalhou nos últimos dez anos, até que, já exausto nas bases do corpo, houve um entendimento mútuo de que devia repousar.
Khwambe Makhwandra vive agora da reforma concedida, mais pelo respeito que o armazenista tem por ele, por ter sido amigo do pai, do que propriamente pelo tempo de trabalho. Construíu uma casa de dois quartos com uma ampla varanda virada para o mar, na qual passa a maior do tempo ruminando com riso e alegria, as peripécias de um passado que lhe lembra os ossos secos que ele tentou dar vida e não conseguiu, mesmo tendo dado até ao limite, toda a energia do seu porte físico e espiritual.
Temos na mesa uma jarra de sura, essa bebida alva brotada da árvore da vida e um petisco de carangueijo fresco refogado com cebolinha orgânica tirada da horta feita ali mesmo, no quintal, e tomate cereja que rebenta espontaneamente a toda volta da casa, como dádiva de Deus. Tudo isto é natural e puro como o próprio ar que respiramos, e o banho que tomamos da brisa vinda do mar. E para que este encontro, também espontâneao como o tomate cereja, a melhor coisa que podemos fazer é falar das memórias do passado, porque nós também pertencemos ao passado. O futuro não é nosso.
Veio a terceira jarra e Khwambe Makhwandra, no auge, perguntou-me se eu estava a ver “aquela gaiola”. E eu, no lugar de lhe responder que sim, que estava a ver a gaiola, retorqui assim, você sabe que está a agredir o direito daquele passarinho? Você sabe que a vocação daquele passarinho é voar em liberdade? Você sabe que a parte mais importante daquele passarinho está nas asas? Você sabe que o lugar daquele passarinho não é aquele estúpida gaiola?
Khwambe Makhwandra, que não se importava e se deliciava com o canto triste e doloroso da ave encarcerada, bebeu, ante a minha inquirição, num trago, o copo de sura que tinha a sua frente e disse assim, tens razão, meu irmão, a principal vocação daquele passarinho é voar! Levantou-se, abriu a gaiola com as mãos e deixou o pasarinho em liberdade. Então, lembrei-me de um poema que o Guita Jr. enviou-me e que dizia assim: no dia que libertei o meu escravo, fui com ele!
Havemos de lutar até ao fim com as armas que temos, mesmo sabendo que eles recusam-se a ouvir-nos. A nossa cidade continua a ser arrastada para o caos, por gente que não se importa com as consequências. A história, na óptica deles, não conta para nada, nem os desastres que hão-de vir, provavelmente, como resultado do desordesordenamento urbano que está sendo criado nas zonas de expansão, onde cada um constrói onde quer.
No bairro Muelé “3”, há um imenso espaço propenso a indundações, onde o Concelho Municipal foi parcelar terras para habitação, apesar de ter a consciência de que amanhã, se vierem chuvas fortes, os ocupantes desses lugares terão que ser deslocados. O pior é que não há preocupação com um sistema de drenagem, o que nos leva a prever um grande sofrimento no futuro para os que lá estão e outros que ainda demanadam esses terrenos sem que ninguém os alerte sobre o que pode vir a acontecer.
No bairro Nhapossa, mais concrectamente na zona da “Salvação”, havia um mercado informal onde as populações buscavam a sua sobrevivência, foi desmantelado em nome da estética da cidade, embora os motivos possam ser outros. Mas o que nos dói é que esses vendedores foram movidos e colocados numa zona de risco, para além de o suposto novo mercado estar fora do circuito do negócio, o Município marimbou-se para eles.
O Município de Inhambane tem espaço para construção de uma cidade de futuro, que incluiria infraestruturas vocacionadas ao lazer, como campos de futebol e jardins, mas eles preferem destruir a história da urbe, demolindo edifícios icónicos. E para acompanhar esta saga, colocaram cimento, - no lugar da relva - nos separadores da Av. “Eduardo Mondlane”, entre a Direcção Provincial da Agricultura e o Instituto Industrial e Comercial “Eduardo Mondlane”
Ainda sobre este estabelecimento de ensino, é importante lembrar a bela obra arquitetónica que é. Era um regalo contemplar esta construção que marcava profundamente toda a zona onde está implantado, pela sua beleza e imponência. Mas apareceu alguém a ofuscá-la com um empreendimento - Escola de Hotelaria e Tiurismo - que podia ser erguido em alguma zona de expansão, e assim, todo este sítio ficou sufocado. Irreconhecível. Apagou-se um valioso património da nossa ora bela cidade. Que a própria TVM não poupou, e vai daí construír um estúdio que se tornou monstruoso, por nos tirar a leveza de uma área que nos dava oxigénio, por nos deixar apreciar livremente apreciar a histórica obra de arte que é a Casa Provincial da Cultura.
Mas não é só isto. Já falamos sobre várias outras áreas que estão a ser tomadas sem a observância e respeito pela história e cultura da nossa cidade. Sobre o desnecessário e importuno muro que cerca o palácio do Governador. O Hotel “Capitão”. A pérgola. A vedação asfixiante da pista “Sete de Setembro”. A zona de protecção marítima, ao lado do Desportivo, na eminência de ser ocupada. Etodavia, o nosso grito está a produzir em nós, o efeito de boomerang.
Como dói!
É essa a sensação que me fica. Diferentemente de John Lenon, o rapaz de Liverpool que partiu inesperadamente, deixando os seus companheiros chorando, cada um no ombro do outro, Arão jamais terá o conforto de Hortêncio Langa e Adérito Gomate, cúmplices das músicas cantadas com a esperança de que repercutiriam em cada coração de todos aqueles que os esperavam, e acreditavam neles. Já tinha perdido o conforto de João Cabaço, o grande músico que, depois de longas caminhadas, e antes da sua morte, já se tinha afastado do grupo.
Seria injusto, porém, continuar a dizer que Arão Lithsuri não tem a quem chorar, pois seria uma injúria ao Childo e ao Celso Paco, pedras firmes da banda Alambique, mas foi com Hortêncio Langa e João Cabaço, que todas as marés enquinociais invadiram a terra, e que até hoje, com a maré parcialmente vaza, a areia continua molhada por dentro, lembrando um conjunto que aglutinava três nomes.
Seja como for, Arão Lithsuri, autor de Nhina dzame, belíssima música de um jazz por vezes subtil, outras vezes explícito, não será propriamente um homem taciturno, depois da razia que lhe faz tremer nas bases, mas ele precisa de criar outras fortalezas para sobreviver e defender-se do vazio, Arão nunca existirá sem as claves, e na vida de um músico o vazio não existe.
Nunca falei com ele para saber o que vai acontecer daqui para frente, depois de ser despido daquilo que lhe dava sentido à vida. A vida para Arão Lithsuri não será apenas a música, mas o aconchego daqueles que lhe ajudavam a dar valor à manifestação espiritual que tem o condão de aglutir povos inteiros. É esse o dilema subjacente, advindo da partida sem volta dos seus amigos. Então, urge remover as cinzas, e buscar dentro delas a força da esperança e do futuro.
É isso que se espera de Arão: a capacidade de superar a dor, sem esperar o agora improvável sinal do Adérito Gomate, o machuabo estiloso sentado ao piano com dedos finos, calçando “Botas a Beatles” bem engraxadas. Também não haverá mais o sinal da guitarra de Hortêncio Langa, que parecia crescer em cada espectáculo, embora fosse já um músico maduro. Arão Lithsuri também nunca parou de crescer, por isso não faz sentido olhar para trás. Só se for para buscar as melhores lembranças, que vai precisar, com certeza, para as novas batalhas.
Por enquanto vai um abraço profundo.
A ideia inicial era levar as pessoas ao estravazamento das emoções. Havia uma necessidade urgente de valorizar, não só um lugar histórico-cultural como é a Praia do Tofo, por tudo que representa no tecido social dos manhambanas, mas era importante dar oportunidade à gente daqui, ansiosa de se juntar e festejar a sua terra ao som da música ao vivo, em grandes espectáculos. Isso conseguiu-se ao longo de várias edições que, mesmo assim, podem não ter deixado boas recordações.
Qualquer festival tem como base fundamental - para que ele triunfe - a organização meticulosa, criando condições no sentido de os utentes do mesmo sintirem-se confortáveis e seguros. E nos eventos passados pode ter havido falhas que precisam ser corrijidas, se o objectivo é estarmos em patamares de referência, não só a nível da cidade e do País inteiro, mas sobretudo ao nível do Mundo, onde o Festival do Tofo já é por demais mencionado e esperado todos os anos.
Há várias perguntas que se podem colocar, se quisermos qualidade, e se também cobiçarmos ser uma boa referência para o turismo em Inhambane: como é que estamos a nível dos acessos ao local onde o grande palco vai ser montado? Como é que é feito o controlo das pessoas no recinto do show de modo a que haja segurança? Mas mais do que estes aspectos, é necessário pensar nas crianças que provavelmente não terão idade de serem admitidas num evento desta magnitude que se prolonga noite a dentro até madrugada, ou mesmo até ao raiar do sol.
Até que ponto estão protegidas estas crianças? Quem as controla? É muito preocupante ainda ao chegarmos à conclusão de que as bebidas alcoólica são um grande mal para esta faixa etária, e já em estado de embriaguês, o descontrolo é total de tal forma que vai facilita a acção dos oportunistas, que podem abusar dessas mesmas crianças. Então, precisamos agir urgentemente em defesa dos nossos meninos e meninos, colocando restrições rígidas.
Infelizmente há pessoas que já não vão ao Festival do Tofo, por má memória. É por isso que nesta edição, tudo deverá ser feito para que se melhore a questão de segurança nos pontos cruciais, a partir do cruzamento de Babalaza, para que todos se sintam bem e com vontade – depois de tudo terminar – de voltar na próxima edição.
Inhambane é esse pedaço de terra peculiar. Um alfobre inesgotável, que acolheu ao longo do tempo, figuras inexcedíveis, as quais funcionaram, e outras ainda funcionam, como fundamentos de uma cidade elegida para ser pacata. São esses actores que o Festival do Tofo, nesta edição - segundio informações que temos - quer resgatar e homenagear em público, para que a história não se esqueça deles. São nomes fortes, inculcados em pessoas humildes e lúcidas, e outras, como Matangalane Boby, Bernabé, Bernardo Wonani, Fernando Guipatwane, que poderáo ter sido tratados como dementes. Mas se calhar nós é que não entediamos a grandeza da sua loucura. E ainda bem que o Festibval do Tofo vai nos trazer essas memórias.
Pretende-se com tudo isto, transformar o Festival do Tofo em verdadeiro escaparate, onde os amantes da literartura e das artes plásticas, terão um espaço e um tempo para as lucubrações e vivências de autores daqui desta terra. Porém, Inhambane não é uma terra fechada, ela escancara-se para o mundo através de uma culinária particular, a ser exibida através de mãos esmeradas de mulheres bitongas.
É isto e muito mais, que se propõe, levando a que o Festival do Tofo vá para além da música. Bem hajam os organizadores.