Sempre que o visse passar em frente a minha casa, lembrava-me Noa. Levava nas mãos o martelo, o formão, o escopro, o serrote...... e a determinação de construir um barco e pô-lo a boiar. Descia nas manhãs, à doca, e de lá só regressava ao princípio da noite, pelo mesmo caminho, com os mesmos materiais de trabalho, com a mesma verve, e com a mesma ansiedade de ver a nau das suas mãos navegando entre as cidades de Inhambane e Maxixe, transportando passageiros insondáveis.
Eu nunca acreditei naquela saga. Ou seja, jamais um homem sozinho poderá construir uma embarcação das dimensões que ele pretendia, a não ser que este desafio seja assumido por um personagem de ficção, o que não é o caso, a menos que eu estivesse alucinado. Aliás, o único ser que ergueu uma arca inteira sem ajuda de ninguém, é Noa. Porque ele tinha Deus como o Próprio Armador. E este indivíduo que passa sempre por aqui, em frente a minha casa, parece caminhar no escuro. Deve ter armadores invisíveis que se apossaram dele para o atormentar.
Foram anos a fio de trabalho, e a medida que o tempo passava, o meu pessimismo parecia que ia sendo desmentido. Aparentemente! Porque o barco compunha-se, gradualmente, para arrepio de todos. Como é que uma pessoa sozinha, sem ajuda de ninguém, é capaz de protagonizar tamanha proeza! E logo lembrei-me de um homem que, olhando para arca de Noa pronta para a navegação, ridicularizou-a e disse assim, isto não vai a lugar nenhum. E Deus esbofeteou-lhe na boca.
Eu também estou a ser vergastado, não pela Mão de Deus, mas pelos meus próprios pensamentos. Este armador solitário está a avançar, rindo-se silenciosamente de todos aqueles que lhe diziam, você não vai fazer nada sozinho. E ainda lhe diziam mais, isto não é uma almadia!
Mas essas palavras todas, eram o granizo que caía por sobre a plataforma de betão, desfazia-se em pequenos grãos, e a casa continuava firme, ela própria construída em cima das pedras, onde moram as águias. Mesmo assim, eu continuava com as minhas dúvidas. Oscilava entre a possibilidade de tudo aquilo vir a ser real, e o cepticismo. Era como se eu estivesse numa sala de cinema, vendo Marlon Brando, no filme Apocalipse Now, de Francis Coppola.
Todavia, e para que tudo se materializasse, eis que o homem passa num dia desses - em substituição do martelo e do escopro e do formão - com duas enormes latas de tinta e diz-me assim, hoje vou dar a última demão (última pincelada de tinta). Fiquei estarrecido.
“A arca do Noa” está pronta! A notícia corre devastadora em toda a cidade, e ninguém queria acreditar no que ouvia. E segundo se dizia por aqui, ele construíu o barco sozinho, e é bonito. Meu Deus!
Prapara-se o champanhe para a vistoria e consequente aprovação das autoridades marítimas. O dito cujo está confiante como o Noa, que se avulta na proa, desdenhando o dilúvio que vai engolir casas e árvores e montes e montanhas. E o dilúvio é a boca das pessoas. Da minha, também. Pois, o que mata, não é aquilo que entra pela boca, mas o que sai através dela.
Agora só nos resta esperar por aquilo que vai acontecer com o testemunho das gaivotas e dos flamingos e de outros pássaros marinhos, e do próprio mar que estará calmo, dando-nos a sensação de paz. Há uma expectativa envergonhada por tudo o que falamos sem medida, diante do silêncio do homem que construía aquilo que ele pensava ser a própria vida. Um sonho que entretanto foi destruído pelos vistoriadores que não tiveram meias palavras, “este barco tem que ser desconstruído e recomeçado, tem erros graves”.
Raios! O que aconteceu é que a embarcação voltou para a doca, de onde nunca mais saíu. Aliás, foi sendo retirada aos pedaços, para produção de lenha.
Moçambique acaba de lançar oficialmente, nesta terça-feira, 28 de abril de 2020, mais uma descoberta científica na área das ciências sociais e humanas. O teorema de Petersburgo (em homenagem ao cientista) é um contributo 'suis generis' que irá acabar com o desemprego no mundo num futuro muito breve. Até, muito provavelmente, assim que estamos a dar esta notícia o desemprego já acabou, e essa notícia já não é boa nova e já perdeu interesse.
Enquanto que o teorema de Pitágoras diz que "em qualquer triângulo retângulo, o quadrado do comprimento da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos comprimentos dos catetos", o teorema de Peter (como também é conhecido) defende que "o emprego é igual à soma de quaisquer rendimentos acima do salário mínimo, independentemente da sua proveniência".
O princípio desta fórmula é de qualquer cidadão, onde quer que esteja, que tenha recebido num mês, no seu Eme-Pesa ou noutra plataforma, transferências monetárias num valor acima do salário mínimo nacional, então, já pode-se considerar um cidadão empregado. Isto quer dizer: aquele cidadão que transferir 4 mil meticais para a sua esposa ou amante para fazer rancho ou ir ao salão, então, automaticamente, essa cidadã é empregada a partir desse instante. Explicando melhor: aquele que, no intervalo de 30 dias, receber malta 4 mil e poucos, numa única tranche ou parcelada, já tem emprego, segundo esse teorema.
O teorema de Burgo (na gíria académica, em homenagem à nova burguesia nacional) está a levantar várias reações. A primeira reação vem do juri do Prêmio Nobel que reuniu de emergência a noite e decidiu por unanimidade que, com essa descoberta, o cientista moçambicano Peter Esburgo vai ganhar todos os prêmios nóbeis possíveis (da literatura, da química, da física, da matemática, da filosofia, da geografia, do desenho, do empreendedorismo, do inglês, do francês, da agropecuária, da história, da educação física, da paz, da bebedeira, da mentira, do fuck-you, da cara-de-pau, etecetera, etecetera) nos próximos 5 anos.
A NASA reuniu também de emergência e anunciou que vai fechar os escritórios por vergonha da sua equipa de cientista diplomados e renomados que nunca pensou em desenvolver uma fórmula importantíssima como esta. Quem vai fechar as portas também são as universidades de Harvard e Oxford por terem descoberto que depois disso não há mais nada por descobrir. O Vaticano decretou jejum de um ano e já anunciou o regressou de Cristo para os próximos dias. A Ametramo acaba de anunciar que a partir de amanhã vai começar a chover de baixo para cima. Enquanto isso, Dalai Lama, o líder espiritual do budismo tibetano, desmaiou.
O teorema de Petersburgo é mesmo uma "granda" inovação. Só em Moçambique, na fase experimental, esta fórmula conseguiu criar mais de 48 mil empregos em apenas 100 dias. E era só teste! A ONU enviou para Moçambique uma equipa de alto nível de especialistas em encriptação de fórmulas matemáticas para que o teorema não seja roubado. Einstein ressuscitou e vem junto... não aguentou... dizem que disse "essa não perco por nada!", arrumou o caixão, saiu da tumba e embarcou.
Aguardamos ansiosamente a reação do Sindicato de Marandzas e Gigolos de Moçambique que convocou uma conferência de imprensa para hoje.
- Co'licença!
O recente bate-boca em torno do “saque” ao erário público para remunerar os custos da dignidade do estatuto do deputado (não necessariamente da pessoa beneficiária – um outro assunto) é recorrente. Para os do contra é “um valor altíssimo” e para os favoráveis é “um valor baixíssimo”. Os do contra não concordam que se pague tanto por dormidas no parlamento. Os favoráveis consideram que os ministros (que também dormem quando vão ao parlamento) recebem muito mais e ninguém toca no assunto. Por onde ficamos?
A partida é pacífico que se remunere dormidas em serviço de Estado (e na hora de expediente) desde que não se exagere na remuneração cujo cálculo – ao que parece - é inspirado no das Ajudas de Custo em viagens de trabalho: quanto mais dormidas/diárias fora , maior é o bolo do per diem (valor por dia). Agora, se a dormida remunerada é barulhenta (a dos deputados) ou silenciosa (a dos ministros) depende da manta que é usada. Nas sessões do Parlamento a manta (mais para lençol) é transparente e nas sessões do Conselho de Ministros ela é bem espessa, um autêntico edredom.
Dito isto – sobre quem dorme e recebe mais - talvez o foco do argumento da corrente dos favoráveis, onde pontificam deputados em exercício e fora dele, passasse por defender uma lei que obrigasse que as sessões do Conselho de Ministros fossem públicas a par das do Parlamento. Se assim for, temo que a corrente dos favoráveis tenha razão e uma das evidências são as elegantes dormidas dos membros do Conselho de Ministros nas idas ao Parlamento. Uma outra evidência é a do mobiliário. Baste que repare nos confortáveis assentos da nova sala do Conselho de Ministro que até fazem inveja aos da Business Class das melhores companhias aéreas. E quem já viajou nessa categoria que testemunhe a qualidade da soneca proporcionada. Aliás, os próprios ministros podem certificar a veracidade.
Para a corrente do contra, lembrar que a dormida parlamentar pode também significar um sinal de trabalho árduo. Pois, entendo, que quando o deputado chega às plenárias é o culminar de uma longa caminhada de trabalho nas comissões, visitas ao terreno e ao estrangeiro, trabalhos em grupo, elaboração de relatórios/discursos, entre outros afazeres. O mesmo para a dormida governamental. Contudo, também é válido que a dormida pode significar desorganização/falta de planificação. Que o digam os estudantes (e os docentes que confirmem) que fazem um trabalho de investigação de dois meses no dia anterior ao da sessão de entrega.
Enfim. É a democracia da Pérola do Índico no seu melhor. Avisos não faltaram e por aqui ficamos com um (aviso) deles, e prévio, dado, na altura da introdução do multipartidarismo (anos 90), por Joaquim Chissano, então Presidente de Moçambique. O aviso de Chissano- direccionado ao Ocidente (salvo erro à Margaret Thatcher, a Ex-Chefe do Governo do Reino Unido) – alertava para o facto da democracia ser um sistema extremamente oneroso. E desde então, nunca vi - só para fechar - um aviso a ser levado tão à letra e dolosamente quanto este. E isto é extremamente penoso.
Tenho acompanhado pela comunicação social que Portugal, a antiga metrópole colonial de Moçambique, constitui um exemplo no que tange a tomada de medidas contra a propagação da COVID-19. O seu povo é elogiado por acatar as medidas do Estado de Emergência, sendo o “Fique em Casa” a mais notável. Palpito que o facto do fim da ditadura portuguesa ser ainda recente (pouco menos de 50 anos) produz, no imaginário dos portugueses, o medo da autoridade repressiva de um Estado ditador, operando assim como um dos factores dissuasores para o cumprimento generalizado das medidas.
Por arrasto, na Varanda do Índico, era suposto que os tempos da ditadura portuguesa – via colónia – e os que se seguiram logo após a independência, mais os tempos em curso da pandemia, fossem suficientes para duplicar o medo de quem queira sair de casa. Nem tanto. Alguns dirão “Porque sair de casa ainda não é literalmente proibido”. Será? E no caso de barracas (aglomerados, notadamente, de venda e consumo de álcool), cuja abertura é proibida, o seu encerramento é literalmente observado?
Há uma semana do fim do Estado de Emergência (30 dias), igualmente decretado por força da COVID-19, quer me parecer que para quem cumpre com a medida (e fica em casa) e para quem abre ou encerra a sua barraca - ou outro tipo de estabelecimento similar enquadrado na mesma proibição – o medo da repressão da autoridade, incluindo a extorsão e o excesso de zelo, está subjacente na decisão. Aliás, ciente desse facto, quem abre ou finge que fecha a sua barraca e os clientes criam e articulam condições alternativas para que a provisão e o acesso aos serviços prestados ocorram de forma oculta.
Procurei perceber as circunstâncias que justificam o risco. Um dos argumentos, e o predominante, prende-se com a imprescindível renda de sobrevivência de quem vive do negócio da barraca. Mas este argumento não cola para quem vai à barraca gastar a sua renda e se expor à pandemia. A menos que quem assim procede ainda não tenha voltado à casa desde o dia 31 de Março, data anterior ao da entrada em vigor do Estado de Emergência. Neste caso, e numa eventual prorrogação do Estado de Emergência, proponho que se adicione o "Volte e Não Saia de Casa" nas campanhas de sensibilização para a contenção da COVID-19.