Olá Pai Natal. Espero que estejas bem; espero igualmente que o peso da idade não te tire a boa disposição que lhe é característica. Nunca te vi pessoalmente, mas cresci a acreditar que existias e que eras um velho porreiro, de massa corporal robusta, barba branca e cumprida, e de vestes vermelho e branco. Reza a história que tradicionalmente andas na neve à trenó puxado por renas. Sei que vais premiando às meninas e meninos bem-comportados ao longo do ano.
Bom, Pai Natal, não quero me focar nas tuas características físicas, com tua nacionalidade, gostos clubísticos nem com as tuas preferências gastronómicas. Sei que no Natal és a figura que reúne consenso e que faz as maravilhas de muitas crianças pelo mundo.
Escrever-te esta cartinha foi um exercício que julguei acima de tudo de exercício de cidadania e, se for a anexar o meu Bilhete de Identidade irá notar que estou fora do grupo de eleição e não tenho idade para fazer parte da tua lista enorme de pedidos da mais diversa linha (desde playstations, bicicletas, brinquedos diversos, roupas e muito mais), mas mesmo assim escrevo na esperança de que a carta chegue a ti. E se não puder satisfazer aos pedidos, não se coiba de fazer chegar a mais pessoas que detenham poder de influenciar e quiça tenham vontade e bom coração porque escrevo com o coração em lágrimas.
Sou de Moçambique, um país localizado na zona sul do continente africano. Um país bonito, de gente muito hospitaleira e alegre, embora ultimamente a tristeza grassa grande parte dessa gente alegre. Um país substancialmente rico, mas praticamente empobrecido. Na sua vastidão costeira é banhado pelo Oceano Índico e tem ocorrência de acidentes geográficos esplendidos; tem praias paradisíacas, reservas e parques naturais de dar inveja a qualquer um que visitar – cá entre nós acho que o Pai Natal irá trocar a neve pelo calor tropical e passar uma temporada aqui quando nos visitar. Mas não me quero alongar a caracterizar o nosso país para não tornar a minha carta ainda mais longa. Se tiveres alguma dúvida podes consultar na internet porque sei que usas um telefone moderno com acesso a internet de última geração. E se persistirem as dúvidas ainda, veja no mapa mundo e notará que fazemos fronteira com a África do Sul – este país sobejamente conhecido pelo mundo, pelo melhor e pelo pior.
Pai Natal!!!
Decidi vestir a capa de mensageiro das crianças do meu país porque, infelizmente grande parte delas não sabe ler nem escrever e não pode expressar seus sentimentos, desejos e anseios; tampouco ouviram alguma vez falar desse velho barbudo que espalha presentes pelas crianças bem-comportadas. Aqui, a luta diária é pela sobrevivência numa autêntica e desenfreada maratona por água, comida e, se possível um pouco de paz. A necessidade primaria aqui no nosso país não são brinquedos, porque ninguém brinca tendo estomago vazio, com instabilidade e com incertezas quanto ao amanhã. Neste momento que escrevo esta carta, milhões de crianças em todo o país passam por privações das mais básicas. A única coisa que me apraz partilhar é que são crianças que transmitem muita paz mesmo vivendo na guerra; nutrem bastante amor mesmo que o ódio seja uma nuvem perene, e transpiram esperança mesmo que as os sonhos de um futuro risonho sejam de certo modo ofuscados pela incerteza do presente nublado.
A zona norte do país, concretamente na província de Cabo Delgado (por sinal a mais bafejadas pela descoberta de enormes quantidades de recursos minerais), a situação não é boa. Na verdade, é péssima pois a insurgência armada criou uma onda tremenda de deslocados e nessa onda temos milhares de crianças que correm risco de vida, risco de virarem crianças soldado e não viverem a sua infância na plenitude – infância esta que já era penosa antes deste horrível conflito. A insurgência Pai Natal, semeou luto, sofrimento, dor e muita tristeza nas famílias moçambicanas e deixou um rasto de destruição e devastação tremendo.
O nosso saudoso Presidente – O Marechal Samora Machel, dizia que “as crianças são as flores que nunca murcham”. Mas nesta carta carrego o pesar da dor e desespero do dia-a-dia vivido por estas crianças – sem comida, sem água, sem abrigo seguro e digno e ainda por cima longe dos seus familiares que sucumbiram ao sabor das malditas armas.
A insurgência mata um pouco de cada moçambicano a cada vida que se esfuma. Cada vida que se vai é menos um sonho, menos um sorriso e menos uma certeza. Por isso não peço nesta carta brinquedos; não peço fartura na mesa; não peço donativos nem ajuda externa disfarçada de eterna bondade. Peço que o Pai Natal coloque mais responsabilidade naqueles que governam e dirigem os destinos do país; Peço mais respeito pela dignidade humana e mais amor por estas flores para que efectivamente não murchem nunca. Mais saúde, mais educação, mais segurança e melhores condições de nutrição para todos do Ruvuma ao Maputo e do Zumbo ao Índico.
É meu, e nosso sonho ver o país livre da insurgência e trilhar por caminhos de paz, prosperidade, progresso e desenvolvimento e sei que estas crianças de hoje serão o futuro e a certeza do amanhã. Pai Natal, o meu pedido não precisa de embrulho e muito menos de meias na janela para fazer chegar. O meu pedido é o pedido de milhões de crianças, jovens, adultos e velhos de Quissanga, Nangade, Mecufi, Moeda, Palma, Macomia, Mocímboa da Praia, e muitos outros distritos.
A carta é para ti, mas tornarei a mesma pública para que mais pessoas possam ler e se vestir de Pai Natal não apenas na época Natalina, mas em todas a épocas do ano, porque Natal é todos os dias e acredito que todos podemos fazer o bem a todo instante e tornar a vida menos pesada.
Feliz Natal a todos!!!
Hélio Guiliche (Filósofo)
Falar da vida e obra de Sua Eminência O Cardeal Dom Alexandre José Maria dos Santos é, e será sempre um exercício que exige elevada capacidade de abstração para narrar todo um percurso e uma trajectória (caracterizados por suas incansáveis lutas, suas vitórias e porque não suas derrotas), e todos eventos que caracterizaram a odisseia religiosa, educacional e humanística desta que é uma figura incontornável na história do nosso vasto Moçambique. Para não pecar por soberba, e não perder de vista o objectivo deste texto de agradecimento, enaltecimento e despedida, focar-me-ei apenas no cerne - Um Homem ao serviço de muitas causas.
A Época Medieval é cronologicamente considerada o período mais longo da História da Humanidade (com mais de 1000 anos). Período este que viu florescer o surgimento das primeiras Universidades no mundo. Nesta época, a Filosofia e a Teologia viveram de forma única a rivalidade entre a fé religiosa e a razão científica; um conflito que opunha a religião à ciência e desafiava a cada instante a tentativas de conciliação e harmonização destes dois domínios do saber sem necessariamente anulá-los, numa fórmula traduzida na fé alicerçada na razão e, na razão que ajudaria a perceber a fé. (Intellectus quaerens fidem, et fides quarens intellectum.
Um dos mais brilhantes e notáveis pensadores da época em alusão foi São Tomás de Aquino - (figura que desempenhara tremenda influência na cosmovisão teológica e educação de Sua Eminência O Senhor Cardeal Dom Alexandre), que durante o seu percurso académico foi instruído por Alexandre Magno (Ou Alexandre o Grande). Curiosamente, o nome Alexandre, mestre de Tomás de Aquino é o nome de baptismo do Senhor Cardeal - Aproximações e coincidências que corroboram para ideia da grandeza do nome em referência.
De certo, nestas breves linhas será complicado trazer o espelho dos 103 anos em que o Cardeal viveu e fez viver, disseminando a fé, espalhando a esperança, semeando amor, educando o seu povo e proliferando ensinamentos. E nesses 103 anos teve o prazer de colher os primeiros frutos da sua incansável luta por uma sociedade mais capaz, mais justa e intelectualmente emancipada. E são esses frutos que devem se encarregar de assegurar e alargar o escopo do outrora iniciado.
Dom Alexandre foi muito mais do que uma figura religiosa e eclesiástica destacada, e comprometida na causa do bem estar social, do crescimento, da coesão no seio da Igreja Católica e do catolicismo em Moçambique, do Ecumenismo vibrante e da difusão da mensagem de Deus por todo o lado e em várias línguas. Para ele a fé tinha o poder de quebrar barreiras e unir povos (sejam eles considerados civilizados ou indígenas), e para isso as línguas nativas serviram de veículo e ferramenta estratégica de penetração e evangelização nas comunidades.
Foi um incansável peregrino da paz; astuto e apaixonado amante pela ideia de uma educação para todos e em todos níveis. Sua filosofia e ideia transformadora era clara – somente investindo mais e expandindo a educação se poderia criar bases sólidas para emancipar e desenvolver a nação, e consequentemente sonhar com um Moçambique mais inclusivo e mais próspero. Daí a sua luta assaz contra a pobreza absoluta e o seu compromisso vincado com a formação sistemática do Homem.
Sua grandeza transcende a imagem que muitos de nós temos – Patriarca da Igreja, primeiro Sacerdote e Bispo moçambicano. Na verdade Dom Alexandre foi um cultor, um educador visionário e um humanista douto com visão ampla da realidade do país e com cega convicção de que a educação do homem conduziria à libertação e à emancipação das mentes dos moçambicanos.
Dos vários momentos de partilha, fossem eles na Universidade, na Igreja e nos Seminários bem como em eventos vários públicos e privados, algo deliberadamente se repetia, entre a preocupação presente e os sonhos futuros: o paradoxo entre a riqueza do país e a incapacidade de transformar essa riqueza em algo útil para os moçambicanos. Segundo ele, Moçambique não é um país pobre; muito pelo contrário, é muito rico e mal explorado. O problema reside na falta de preparo e no défice enorme de conhecimento e precisa de mentes para transformar sua riqueza no bem-estar de todos.
As lentes visionárias do futuro, a crença na mudança de paradigma social, económico e educacional, e a transversalidade primeiro do seu pensamento, e depois da sua acção fizeram de Dom Alexandre José Maria dos Santos uma das figuras de Moçambique Contemporâneo de maior destaque, com projectos e obras transgeracionais que vão desde a formação de Padres dentro e fora do país, passando pela intermediação do conflito entre a FRELIMO e a RENAMO que culminou com a assinatura dos Acordos Gerais de Paz (1992), à formação de vários quadros superiores em várias áreas e domínios do saber.
Dom Alexandre, fora um dos mais sagazes impulsionadores das artes liberais e ciências do espírito no país, e desafiou centenas de jovens estudantes universitários e seminaristas (fazendo uso de ferramentas éticas, teológicas, filosóficas, e humanísticas) a pensarem com liberdade intelectual, e de forma crítica e analítica contribuírem para edificação de um Moçambique melhor. Fora um cultor do saber Ser, saber Estar e saber Fazer. Fora acima de tudo alguém muito preocupado com as questões éticas e com a dimensão da dignidade humana– ditames estes herdados da Filosofia Escolástico-Medieval de São Tomás de Aquino.
E é sobre estes e outros feitos de Sua Eminência O Cardeal Dom Alexandre, que nós, a geração do hoje devemos assentar a nossa reflexão e acção. Replicar vivamente sobre as gerações vindouras e incutir a necessidade permanente de pensar no Outro; Uma reflexão centrada no homem concreto como um fim e não como um meio. Viver e ensinar a criação de modalidades e estratégias de desenvolvimento do que fora iniciado por Dom Alexandre.
A coragem para iniciar novos e ambiciosos projectos, a ideia viva e prática do altruísmo, o espírito de criar e buscar novas realidades, e o desejo de ver um país mais educado, desenvolvido e próspero são algumas das licções práticas que Sua Eminência o Cardeal Dom Alexandre nos deixa. Foi mais de um século de um Homem talhado para a vida do bem estar do próximo. Saibamos viver e honrar os seus feitos, os seus ensinamentos e imortalizar sua obra fazendo do nosso país uma referência no rendezvous civilizacional.
Obrigado e até sempre Cardeal Dom Alexandre
Por: Hélio Guiliche (Filósofo)
Escrevi recentemente um artigo intitulado “A promoção da mediocridade – relações de poder e dependência na nossa sociedade”, onde abordara o escândalo das formandas de Matalane que foram abusadas sexualmente pelos instrutores, tendo algumas delas ficado grávidas. Um episódio que causou uma onda de indignação e consternação a vários níveis da sociedade e que envergonhara uma das instituições estatais de maior relevo e utilidade pública, que deve transpirar credibilidade e verticalidade.
Eis que mais um vergonhoso episodio abala e mancha toda uma instituição que se pretende ser de reeducação e preparação para a reinserção social de pessoas privadas da liberdade – falo do estabelecimento prisional de Ndlavela. Fruto de uma pesquisa aturada realizada pelo Centro de Integridade Pública (CIP), o vergonhoso escândalo do esquema de prostituição envolvendo presidiárias foi tornado público chocando toda uma sociedade. Na verdade estamos perante manifestações diferentes para uma mesma enfermidade – caracterizada a decadente moralidade que grassa a nossa sociedade, o sexismo exacerbado, as relações de super poder, e o sentido de impunidade.
Um negócio de exploração de mulheres para fins de prostituição, que choca com todos princípios atinentes a ética social e institucional e esfaqueia as entranhas da dignidade da pessoa humana em todas suas dimensões. Um acto praticado de forma sistemática, envolvendo altas patentes do estabelecimento prisional de Ndlavela e uma elite abastada que paga grandes somas em troca de serviços sexuais.
Aquando do escândalo de Matalane, vozes existiram que de forma peremptória acusaram as formandas de falta de postura deontológica, oferecimento e de assédio aos instrutores. Por outras palavras, as instruendas passaram de vítimas a prevaricadoras e, entre críticas, vilipêndios e pedido de punição exemplar, a sociedade não se esqueceu mas arquivou o caso.
E para Ndlavela, o que diremos? O que faremos e o que poderemos esperar? O que a sociedade fará para não deixar que este e mais casos se esfumem ao sabor da indiferença e das contra narrativas existentes?
É de todo inegável que estamos diante de um crime público. Ou melhor, de vários crimes públicos que se alimentam em cadeia. Legalmente esta estabelecido e previsto no número 3 do Artigo 61 da CRM, que nenhuma pena na República de Moçambique implica a cessação dos direitos fundamentais. Obviamente, haverá algumas restrições advindas da tipologia da própria pena, não sendo o caso nem de um nem de outro fenómeno aqui reflectido.
Uma breve leitura de estudos sobre género como ferramenta metodológica, política e social para problematizar e reflectir os processos que instituem e sustentam desigualdades sociais entre homens e mulheres, e autorizam formas de subordinação feminina, facilmente poderíamos somar vários indícios que sinalizam uma trajectória de reconhecimento, incorporação e legitimação crescentes dessa teorização. Quero com isto dizer que há indícios bastantes para afirmar a existência de uma legitimação silenciosa a nível doméstico, institucional e social de várias práticas atinentes a desvalorização, subordinação e inferiorização da mulher.
A história moderna e contemporânea testemunhou a partir da primeira metade do século XX a emergência de vários movimentos de mulheres e tipos de Feminismos que chamaram atenção à necessidade de se investir mais em produção de conhecimento e estudos com vista uma maior capacidade de denunciar e sobretudo compreender e explicar a subordinação social e a quase inexistência nos processos de participação política a que as mulheres estavam sujeitas até pelo menos o final do século transacto.
De entre várias acepções existentes, ressaltam duas diferentes e conflituantes: Por um lado, o género vem sendo usado como um conceito que se opõe ou se complementa a noção de sexo biológico e se refere aos comportamentos, atitudes ou traços de personalidade que a(s) cultura (s) inscreve (m) sobre corpos sexuados. Por outro lado, género tem sido usado, sobretudo pelas feministas para enfatizar que “a sociedade forma não só a personalidade e o comportamento, mas também as maneiras como o corpo {e portanto, também o sexo} aparece”. E nestas acepções, podemos ir buscar algumas explicações elementares para tentar pelo menos perceber a génese deste tipo de pensamento que conduz a uma acção negativa que é legal e socialmente inaceitável.
Quando me refiro a capacidade de denunciar, sobretudo compreender e explicar a subordinação social, quero me insurgir quanto a normalização do anormal, a estabilização do absurdo e a perpetuação de dogmas e medos que não nos edificam enquanto sociedade. Esta sucessão de fenómenos aparentemente dispersos, pode ser ainda mais comum e mais viva em muitas instituições e em vários quadrantes do nosso vasto país. É uma sucessão perigosa de um fenómeno indicativo daquilo a que muitas instituições se foram tornando ao longo do tempo e hoje encontram-se manchadas com nodoas de imoralidade.
Na verdade não se trata de um fenómeno de Matalane ou de Ndlavela apenas. É um fenómeno que tem raízes muito mais profundas e estes são apenas alguns dos resultados, e por sinal resultados da vergonha e da falta de pudor. Denominador comum nisto é que são as mulheres quem mais sofrem com isto – daí o nosso foco analítico nas relações de género e seus desdobramentos com o poder instituído. São as mulheres as maiores vítimas destas atrocidades e são elas que mais são vitimizadas em vez de protegidas (processo de normalização do anormal).
Numa análise profunda a estes e mais fenómenos vividos e sobejamente conhecidos por nós, facilmente se chega a conclusão que estes casos são na verdade o reflexo daquilo que somos como sociedade e da forma como olhamos e tratamos a mulher. É um sintoma grave que veemente e copiosamente vamos ignorando, pois nas relações de género nos foi ensinado que o homem é o mais poderoso e tem mais direitos que a mulher.
É premente fazer uma introspeção e iniciar uma reforma nas nossas casas, locais de trabalho e na sociedade. As instituições tanto estatais como privadas devem recuperar o normal funcionamento e a restauração do seu modus operandi e dos modelos de moralidade pública e privada, do respeito que outrora existiram. É preciso coragem para abordar, firmeza para desconstruir, integridade para actuar de forma imparcial, mão dura para punir os infractores, e valores éticos no seu mais alto nível para elevar a paz e harmonia social. Talvez assim poderemos resgatar o estado e suas instituições desta tremenda imundice e promiscuidade que envergonha a todos. Deste modo poderemos sonhar em edificar uma sociedade alicerçada em valores fundados no humanismo, na verticalidade e acima de tudo no respeito pelos direitos humanos.
Por Hélio Guiliche (Filósofo)
As Organizações da Sociedade Civil (OSC) em Moçambique são relativamente novas e as suas primeiras aparições e intervenções datam dos primórdios dos anos 1990. Paulatinamente o seu escopo foi se alargando e sua influência se estendendo para áreas relevantes e demandadas a nível da sociedade. E quanto mais elas foram crescendo e ampliando seu raio de influência, mais problemática e discutida foi ficando a sua aceitação. Elas vem reclamando por mais espaço de actuação e, paradoxalmente tal espaço lhes é progressivamente negado.
O espaço cívico é entendido como um espaço onde todos indivíduos/ cidadãos da polis realizam livremente os seus desígnios, um espaço do rendezvous geracional de ideias e pensamentos. É um espaço que simboliza os valores mais altos da democracia, dos direitos humanos e sugere igualmente a materialização dos contratos social e político que celebramos uns com os outros.
Alguma literatura explica a natureza naturalmente social do homem – traço distintivo dos outros animais (Onde está o homem, há sociedade; Onde está a sociedade, existe o Direito). Recorrendo a clássica definição Aristotélica, o homem é um animal eminentemente político e busca sua realização dentro da sociedade. Na mesma sociedade ele associa-se umas vezes e desassocia-se outras vezes, construindo formas de associação que melhor respondem aos seus anseios sem no entanto perder a sua sociabilidade e politicidade. Aqui podemos por analogia buscar a hierarquização social e política, e consequente legitimidade de certos grupos dentro da sociedade, entendendo como algo natural derivado das habilidades inatas ou adquiridas e talentos, e não como algo divino.
Com a geração contratualista, a reflexão maior gira em torno da reflexão da saída do homem do estado de natureza para a sociedade civil. A natureza humana começa a ser discutida filosófica, sociológica e antropologicamente para tentar explicar o comportamento do homem dentro e fora da sociedade – De Jean Jacques Rousseau, passando por John Locke e o Barão de Montesquieu encontramos abordagens distintas e igualmente ricas sobre o contrato social implícito onde cidadãos livres movidos pelo medo da morte violenta, insegurança e pela desconfiança mútua aderem ao estado social e civil por via de um contrato implícito e por vezes explícito. Mais tarde, vendo suas liberdades pouco seguras e receando a traição e não cumprimento de acordos aderem ao pacto social por meio da outorga das suas liberdades, dos seus direitos e cumprindo com deveres. A figura e imagem do soberano emerge como resultado deste contrato social e político. Francisco Soares (1548-1617) afirma que “não foi conferido ao homem o poderio político sobre seus pares, de modo que esse domínio não haveria de ter fundamento diverso do consenso, através do qual a multidão se reúne em um só “corpus politicum” (Del Vecchio, 1979:84)
Numa fase mais avançada, com o esplendor das leis em Montesquieu no seu “O Espírito das Leis”, a sociedade dá um passo qualitativo e regulamenta a sua acção criando bases legais para a regulamentação dos comportamentos e acções, criando um corpus politicum com competências separadas – nasce assim o Estado de Direito com bases da separação de efectiva de poderes (os três poderes do Estado – Executivo, Legislativo e Judicial).
Um pouco por todo o mundo o espaço cívico vem sofrendo sucessivas e progressivas ameaças e atentados que paulatinamente contribuem para o seu fechamento e deterioração. Este fenómeno não é novo e tampouco isolado, e é mais visível em países com regimes com tendências autoritárias e ditatoriais. As Organizações da Sociedade Civil, admiradas por uns e odiadas por outros, são também consideradas como sendo o braço de apoio à governação, vem travando uma luta para a edificação de uma sociedade mais justa, mais participativa, mais transparente e mais inclusiva. E dada a sua alta exposição em eventos e acções por vezes confundidas como sendo apanágio único do executivo e do poder do dia, sua legitimidade e mandato acabam por ser questionadas, e suas acções as vezes combatidas.
É meu entender que, a governação é uma vasta área e que espaço cívico é apanágio de todos e de cada um de nós, por isso, defendo afincada e desapaixonadamente neste artigo que, para que ele seja aberto e que represente o reencontro dos ideais supremos da democracia e do Estado de Direito é necessária uma maior aceitação de actores e players que muito podem contribuir na vastidão da acção de governação.
Estudos recentes sugeriram a possibilidade de ocorrência de dois eventos nefastos a médio prazo: o primeiro era a então incipiente flagelação das OSC e o segundo eram os ataques públicos (desde físicos aos verbais) aos representantes e membros das OSC, e tal se efectivou e vem se consubstanciando.
O afunilamento e fechamento do espaço cívico em Moçambique começou a ganhar corpo e foi se cimentando paulatinamente nas duas últimas décadas (sendo que cada década caracterizou-se por distintas acções de governação). Ataques, raptos, ameaças e assassinatos geraram uma grande onda de consternação entre as diferentes franjas da sociedade a nível nacional e internacional. O medo generalizou e muitos analistas e activistas enfrentaram a desacreditação do seu trabalho através da criação e difusão de narrativas depreciativas. Este exercício paulatino e sistemático de desacreditação primeiro silenciosa e depois barulhenta contra as OSC e seus membros lançou um debate sobre a relevância e irrelevância das organizações da sociedade civil, sobre a sua legitimidade, sobre o seu mandato, e sobre o seu raio de actuação, ou seja, a quem elas realmente servem e quem as empoderou.
As narrativas contra a sociedade civil são uma arma muito perigosa e eficaz, principalmente em sociedades como a nossa com níveis de educação baixos e uma crítica pouco ou nada elaborada. Não estamos diante de um fenómeno isolado em Moçambique, mas diante de uma estratégia usada em várias partes do mundo.
A dificuldade em lidar com ideias e posições diferentes faz com que uns se sintam mais donos da verdade e donos da razão que os outros. A vontade de fazer vingar determinadas ideias em detrimento das outras, cria fricções e atritos. E nisto emerge uma negatividade baseada no ódio e na violência gratuita
Mais de 45 anos após a conquista da independência, os fantasmas do passado nos perseguem e, devido a intolerância de uns e não pluralismo de outros, corremos o risco repetir a história mas com contornos e actores diferentes.
Amartya Sen no seu livro “Desenvolvimento como Liberdade” afirma inequivocamente que a condição primária para o desenvolvimento é a existência de liberdades. E mais adiante desenvolve a abordagem das capacidades, onde a chamada “liberdade negativa” (ausência de impedimentos) é contraposta à “liberdade positiva” (condições reais de exercício de um direito). E aqui nesta positivação das condições reais, entendo que devemos como sociedade promover mais as liberdades políticas, económicas, sociais, as garantias da transparência e a proteção da segurança. Assim daremos um passo qualitativo rumo a uma maior edificação de um Estado, instituições credíveis e livres de amarras ideológicas.
POR: Hélio Guiliche (Filósofo)
País ainda jovem mas cheio de história para contar entre algozes feitos de um passado heroico, a elevada expectativa do pós independência e a afirmação do multi-partidarismo.
Com a proclamação da independência de Moçambique a 25 de Junho de 1975, pelo então Presidente Samora Moisés Machel, uma nova página abriu-se para o país. Uma nova página que marcara o fim de anos de uma história de colonização e ocupação efectiva que até hoje apresenta marcas directas nos colonizados e indirectas nas gerações que se seguiram.
Uma geração tomou as rédeas da revolução, encabeçou as fileiras da guerra contra o colonialismo, abandonou suas famílias e juntou-se aos movimentos libertadores, aos treinos militares dentro e fora do país e fez das tripas-coração nos campos de batalha e conquistou a ferros a independência. Esta geração de jovens movidos pelo amor a pátria, pela disciplina da época, pela vontade de ser livre do jugo colonial, e pelo alto sentido de direito a auto-determinação. É uma geração que herdou os mais nobres ideais pan-africanos que eu chamo de independentista e libertadora.
O paradigma dominante nas décadas 50 e 60 do século XX, era sem dúvida o paradigma da libertação e das independências. A geração independentista que na sua larga maioria incorporou as fileiras do partido que comanda os destinos políticos do país; foi uma geração que de forma abnegada amou e serviu o país em tempos austeros; uma geração que camuflava suas ambições políticas e que nunca deixara que estas minassem o objectivo primário da luta de libertação. Porém, mais tarde veio a reclamar os louros da juventude emprestada ao serviço do país e da nação moçambicana. Realizou os sonhos de muitos heróis que tombaram na luta pela independência de Moçambique, e trouxe um fulgor e uma expectativa em relação ao que poderia ser o futuro.
O seu maior legado foi a abnegação e a entrega. O seu maior pecado veio a revelar-se nos erros advindos da falta de preparo para lidar com a realidade complexa do novo país nascido da luta de libertação e fragmentando em termos de unidade nacional. Um país diga-se sedento de se autogovernar e ávido pela autodeterminação. O fim da longa noite escura que foi a árdua luta pela independência significou muito para esta geração e não só, para o país no geral.
A geração independentista viveu um dos períodos mais desafiantes da nossa ainda incipiente história. A independência trouxera a substituição da máquina colonial portuguesa pela máquina estatal moçambicana, e diga-se ao abono da verdade, a geração fê-lo com num típico learning by doing. Mas como nenhum percurso é imaculado, cedo começaram as pequenas guerras de negação do outro e de toda a forma de pensar diferente; a luta pelo poder, a ambição e a sede por regalias e de uma maior influência no xadrez político e minaram o processo recém iniciado.
Seguiu-se a segunda geração que nasce, cresce floresce num ambiente de miscelânea entre a expectativa do pós independência depois da azafama épica vivida no estádio da Machava com a proclamação da a independência total e completa de Moçambique e os reais desafios da edificação primeiro da nação e depois do país. A segunda geração é filha ideológica da geração independentista e viveu a chamada atmosfera samoriana, bebeu os ideais proclamados pelo grande Marechal, seguiu os movimentos do associativismo e directivas do partido, a disciplina, o respeito da época, que tinha aparentemente tudo para singrar. Uma geração que experimentou em muito pouco tempo, a sagacidade da independência e a eclosão da guerra dos 16 anos – ouviu o ressoar das armas que mataram inocentes e destruíram as poucas infraestruturas existentes; Viveu nas longas filas das cooperativas familiares e conheceu as privações que a época transicional impunha e abraçou como ninguém o desejo de querer vencer. Esta geração lutou pelos ideias que recebera e foi escrava da narrativa independentista que se estendeu ao ódio visceral pelos que tentassem travar a revolução socialista. Chamarei esta geração de geração programada.
E por falar em revolução socialista, os anos que se seguiram a independência do país foram de uma actividade intensa de proclamação dos ideais socialistas e comunistas e de uma afirmação e difusão incisiva destes, ainda que no fundo não se percebia a essência do comunismo que apregoavam – Foi por assim dizer um período áureo da disciplina do Estado e porque não do partido. Não é de se estranhar que os filhos desta geração carreguem até hoje fortes traços ideológicos do seu berço de incubação. Geração jovem e enérgica, orientada para a acção e com ideias claras sobre a revolução e sobre os caminhos que o país deveria seguir, viu sua referência mór (Samora Machel) perder a vida no fatídico acidente de Mbuzini. Um duro golpe para as aspirações do país no geral e para todos os moçambicanos. Do dia para a noite esta geração se viu órfã do seu mentor e as dúvidas sobre as suas reais capacidades começam a emergir entre as fileiras.
A meio com uma morte trágica e uma guerra civil altamente devastadora, a geração programada enfrentou um dos momentos mais desafiantes da sua história, com sabotagens, traições e cisões no seio do mesmo grupo. Assumiu alguns dos desafios impostos pela época e emprestou seu fulgor para reconstruir o país ao mesmo tempo que buscava mais instrução, mais capacidade técnica e humana. Em termos de nível de preparo, com a fase da restruturação económica as fronteiras geográficas, ideológicas e políticas do mundo abriram-se e mais oportunidades emergiram tornando-a mais capaz e mais interventiva.
Geração que melhor personificou a ideia de nacionalismo e que criou a primeira burguesia emergente do país – uma burguesia que só conseguiu mostrar a avidez e ganancia pelo poder e dentes afiados para lutar pelo “tacho” depois do evento de Mbuzini; Produziu continuadores e brindou o país com lutadores, artistas, desportistas, músicos e muito mais. Cometeu erros como a primeira, tomou decisões que até hoje são questionadas, mas toda a revolução implica decisões, umas acertadas e outras equivocadas e descontextualizadas. Um dos seus grandes pecados foi não ter preparado os filhos para os desafios reais do país; talvez pelo excesso de zelo, talvez por mera soberba. Ao tentar evitar que seus filhos passassem por privações, acabaram lhes oferecendo mais do que podiam e deviam e hipotecaram muita coisa, parindo uma geração com uma mão cheia de nada.
A terceira geração é de relativamente difícil enquadramento e trato cronológico – representa síntese das duas anteriores. Escalando o país pelos seus pontos cardinais vamos descobrindo uma mesma geração dividida entre geração urbana e a rural, do cimento e do caniço, uma esteve mais exposta às benfeitorias e que sente o sabor do “tacho” e outra que passa ao lado do mesmo. A essa geração que alguém uma vez chamou de uma geração à rasca, nunca foi dada nenhuma responsabilidade objectiva.
O geograficamente identificado como grupo do cimento, da cidade foi obviamente o mais agraciado em termos de oportunidades e recursos que o outro grupo da zona de areia. O primeiro, para além de estar à rasca, é hipoteca dele mesmo – um grupo à deriva e órfão dos valores históricos, políticos e sociais do país. Para muitos destes jovens, a narrativa independentista não faz ecoar nada em si e os discursos da guerra dos 16 anos não são vinculativos a sua causa.
Encontramos na mesma geração dois grupos que dispôs de oportunidades diferentes, e consequentemente existe um abismo comportamental e aspiracional entre eles: Uns são os filhos da burguesia nacional incipiente com ar capitalista. Para além de lhe ter sido vendido e até oferecido o sonho do american life style, e todos valores da globalização ela adquiriu (in) conscientemente a ideia de que os pais devem prover tudo e a todo momento; uma geração que culpa aos outros pelo seu insucesso e pela falta de oportunidades e que vê o tempo passar ao lado dela mesma – Este grupo está a rasca sim e pior de tudo é que não sabe que está a rasca e que é resultado de uma agenda oculta.
Outros são filhos de camponeses e operários ciosos em triunfar e se tornar orgulho na zona de origem. Mas que as oportunidades lhes chegam a conta-gotas e porque tudo lhes foi difícil, contentam-se com muito pouco. Sonham em estudar na capital e ter um emprego no estado e poder mandar ajuda aos familiares espalhados pelo nosso vasto país.
E a culpa não é desta geração de jovens. Esta é vítima de um processo que paulatinamente tornou a máquina estatal deficitária e deficiente, o sistema quebrou-se, a ética, a moral e os costumes foram severamente abalados. Institucionalizaram-se praticas más e promoveu-se o laxismo estatal e por consequência o Estado desviou-se da sua missão primária que é prover o bem estar comum. A educação pública não é mais o que foi e por consequência ao invés de formar, informa e deforma.
A nossa pirâmide etária é maioritariamente jovem, e paradoxalmente vemos nela uma geração de jovens com preparo duvidoso e com enormes dúvidas em relação às suas capacidades. Uma geração que tem como referência tudo vem de fora e pouco de dentro. Somos jovens pobres e pertencemos a um país também pobre (ou pelo menos é nisto que nos fazem crer). Somos os jovens que acredita cegamente que para singrar na vida precisamos perseguir títulos, status, bens e posições, menos ideias.
Mas devemos lutar para sermos uma juventude com força motriz, uma geração livre intelectualmente que cria, transforma e participa no enredo do desenvolvimento integrado sem discriminação das cores partidárias, religiosas, raciais e ideológicas.
Esta é a síntese de três gerações de um país jovem e de jovens. Alguns mais estudados que os outros, mais ilustrados, mais experimentados e com melhor preparo, mas conformados, incapazes, e com medo de atingir a maioridade a que o país lhes convida a abraçar. Jovens que ancoraram seus sonhos em algum lugar. Seu maior pecado é não ir a luta e o seu legado fica entregue a sorte.
Por: Hélio Guiliche (Filósofo)
É manchete um pouco por todo lado e é inclusivamente o tema mais candente do momento, e com maior incidência nas nossas redes sociais que com velocidade da luz espalham tudo o que é considerado matéria para internautas e consumidores e difusores acríticos de informação – o caso Matalane.
Foi noticiado que instruendas do curso de formação de polícias, terão sido abusadas sexualmente pelos respectivos instrutores e que pelo menos 15 delas se encontram grávidas. Este facto gerou uma onda enorme de consternação entre os mais sensíveis a questão do género, ética e deontologia e direitos humanos. Dois grupos de opiniões dominam os debates na imprensa, nas redes sociais e noutros fóruns: uns condenam veementemente as instruendas acusando-as de falta de carácter e de cultura, de ganho fácil e menor esforço durante os treinos. Outros atacam os instrutores considerando-os monstros que envergonham a corporação e o Estado moçambicano.
Nisto muita tinta corre e ainda não chegamos ao cerne da questão. As 15 instruendas não devem ser tratadas como números e na verdade não são números, mas entram na grande lista oculta de vítimas de forma silenciosa cede aos prazeres de quem acha que detém poder para atropelar a dignidade humana e subjugar os ditos fracos. A nossa indagação deve buscar as raízes destes comportamentos e tentar perceber o seu caminho para que se tenham fixado como parte da cultura institucional.
Este triste caso veio desvelar uma realidade ignorada por muitos. Irei chamar a essa realidade de promoção da mediocridade. Promoção da mediocridade colide com os esforços que há anos temos estado a lutar para construir instituições fortes, de direito, capazes e transparentes, instituições de respeito e de referência, mas que paradoxalmente caminham para uma gritante desumanização do Homem – no caso vertente este Homem é a mulher que ainda é vista como inferior e objecto de deleite e saciedade de prazer.
Não se pode ter instituições fortes quando existem homens fracos e medíocres que promovem o caos. São homens que colocam as relações de poder como base para tirar vantagem de outrem. Julgam-se acima da lei e dos princípios e que impelem a sociedade a aplaudir imoralidade, a coadunar com coisas erradas e a prostrar-se diante de actos abomináveis. As instituições que temos estado a construir são baseadas em leis e protocolos - essas leis e protocolos devem ser cumpridas por cada um de nós. Não se trata de falta de protocolos, nem de leis e muito menos de instrumentos reguladores. Trata-se de uma legitimação tácita e um atropelo sistemático acobertado por um grupo de pessoas que pretende perpetuar tais práticas e minar a imparcialidade a fortificação das instituições.
Numa organização que em princípio se guia por leis e procedimentos burocráticos torna a sua administração mais eficiente e eficaz e isso garante racionalidade no trabalho. É consabido que numa organização pública ou privada, o cumprimento normal e continuado dos deveres bem como o exercício de direitos correspondentes é assegurado por um sistema de normas e somente podem prestar serviços aquelas pessoas que segundo as regras gerais estão qualificadas para tal.
Estes traços remetem-nos as principais características da teoria da burocracia, cujo fundador foi Max Weber. De acordo com Weber a administração segue princípios baseados em documentos escritos como por exemplo a hierarquia de cargos, as competências de cada funcionário bem como a situação do funcionário de escalão inferior (subordinado). Os funcionários inferiores são controlados pelos funcionários superiores sem que isso constitua “chance” para os superiores se aproveitarem da situação do funcionário de escalão inferior. Max Weber defende ainda que as actividades exercidas pelo subordinado são garantidas por normas estabelecidas num Código de Penal que o defende dentre várias infrações os insultos, maus tratos, assédio sexual e etc.
A nossa indignação não pode se cingir apenas a Matalane, Munguine ou a outros centros de formação, mas sim a vários outros sectores da nossa sociedade como ministérios, escolas, universidades, bancos, e outras instituições públicas e privadas. Os abusos perpetrados pelos instrutores são uma réplica dos abusos que são igualmente praticados contra centenas de mulheres e raparigas nas escolas e universidades apenas a título de exemplo. O pretenso poder que o formador, instrutor e professor tem sobre os formandos faz com que se crie a cultura sexista na nossa sociedade – uma cultura que oprime, humilha e retira valor a mulher e a rapariga.
Mais preocupante ainda nessa relação de falso poder e falsa supremacia é a falta de cultura de denúncia e de responsabilização acompanhadas pelo medo exacerbado. Quando essa lucidez e coragem existe, os prevaricadores são protegidos pelos sistemas e em escala a impunidade cresce e a descrença sobre o real aumenta enfraquecendo assim o poder e valor das instituições. Não se trata de falta de aporte legal, muito menos de falta de instrumentos reguladores. Trata-se sim de uma mentalidade promíscua, pequena e oportunista que cria pequenos monstros que criam horrores contra inocentes.
Como sociedade somos chamados a reflectir sobre o valor e lugar da moralidade, da ética e da deontologia e sobre limites da concupiscência. Somos chamados a demandar por justiça e exemplar postura das instituições de justiça.
Hoje de viva voz, por um lado condenamos e por outro aplaudimos aquilo que julgamos ser politicamente correcto e socialmente aceitável. Sequer nos demos tempo para ficar no lugar do outro e tentar sentir a dor do outro, a dor daquela mulher que procurou formação e foi abusada por aqueles a quem confiou sua formação; a dor daquela mulher que depois de grávida a sociedade lhe chama nomes, isola e exclui. É preciso pensar e agir para que isto não aconteça de novo e que não levemos ao de leve algo tão profundo.
Na construção daquilo que queremos como sociedade, estamos a permitir que práticas condenáveis e desprezíveis entrem no nosso modus operandi. O nosso silêncio e consentimento pelo atropelo a lei é uma arma que mata milhares de mulheres e raparigas no nosso país e deixa marcas psicológicas que se manifestarão nas gerações que estão por vir.
O Moçambique do amanhã é e está dependente do que fazemos hoje. As mães abusadas, os filhos renegados e as mulheres violadas são a expressão mais sublime daquilo que consentimos com as 15 mulheres de Matalane e com os milhares de raparigas e mulheres espalhadas por todo o país que por conta da realidade adversa não dão rosto aos abusos sofridos.
Hélio Guiliche (Filósofo)
É a província que hospeda a terceira maior baía do mundo; Província bafejada por acidentes geográficos únicos e com características morfológicas ímpares; Dona de uma paisagem turística sem igual e de regalar os olhos de qualquer um que a conhece. Rica e diversa culturalmente do planalto à planície, passando pelo vasto litoral maioritariamente virgem. É também lá onde existem uma das maiores reservas de gás natural do mundo, rubis únicos e outras mais riquezas.
Pela riqueza abundante, o antigo Porto Amélia tinha condições para hipoteticamente ser o nosso Cabo da “BOA” Esperança, onde a bênção dos recursos poderia ser traduzida em esperança e prosperidade para a província e para o país que muito anseia pelo usufruto da sua riqueza.
Alguém a chamou de Cabo do Medo pelos horrores que lá se vivem desde 2017 com a incursão de insurgentes que ceifam indiscriminadamente vidas humanas, queimam casas, destroem infraestruturas, plantam pânico e luto nas comunidades e aniquilam sonhos de milhares de moçambicanos incluindo crianças e jovens. De lá para cá, a nossa província se transformou literalmente num campo de guerra – uma guerra inicialmente chamada de sem rosto e agora com rosto e identidade, onde diariamente nos chegam relatos de vidas perdidas, pessoas mutiladas e um futuro uma vez mais adiado não se sabe até quando.
A nossa linda província de Cabo Delgado, vive hoje um cenário desolador com ataques vindos de todos os lados e com o cheiro a morte presente em cada passo de cada cidadão. Hoje escrevo sem a habitual paixão e mergulhado num sentimento de impotência, consternação e angústia por não poder fazer objectivamente nada para mudar o rumo dos acontecimentos naquela parcela do nosso país. Mas com a força e o poder da escrita, espero poder influenciar positivamente a quem for a ler este curto texto de pedido de socorro.
Os reais inimigos de Cabo Delgado não são apenas os insurgentes que perpetram actos macabros e vis; Somos nós que de certa forma compactuamos por não dar a devida atenção à barbárie que lá se vive, e de ânimo leve alimentamos um silêncio ensurdecedor. Cabo Delgado demanda uma intervenção coerciva e de força por parte do Estado; precisa de uma mobilização colectiva e de uma intervenção social multissectorial urgente – e isto passa por repensarmos e reorganizarmos as nossas instituições para que se tornem mais fortes e responsivas. O Estado moçambicano precisa fundar um novo paradigma de defesa e segurança e garantir que a sua soberania seja respeitada.
Enquanto os refugiados de Cabo Delgado forem apenas números de pessoas em movimento para alimentar estatísticas dos demógrafos; Enquanto as mortes de inocentes (homens, mulheres, crianças e idosos) significarem uma ínfima e insignificante amostra de um todo que pouco se importa com o valor do outro; Enquanto o desprezo pela vida humana for característico de uma sociedade que se pretende mais humana e solidária mas que no fundo se comporta como egoísta e irracional; Enquanto não se assumir que cada vida que tomba em Cabo Delgado é menos um sonho comum, menos um actor para a concretização dos objectivos que temos como país, as coisas continuarão assim como estão e a chacina continuará.
Não vale a pena tentar minorar a situação de guerra que lá se vive, tampouco escondermo-nos em subterfúgios para justificarmos o nosso desejo de pouco ou nada fazermos, e de esperar que os outros o façam por nós. Se o país é de todos nós como se diz, todos devemos fazer parte dos momentos dele – sejam eles bons ou maus. E este é um daqueles momentos em que somos convidados a mostrar a nossa moçambicanidade . Não precisamos ir ao campo de batalha pegar em armas e disparar, nem mesmo em catanas e praticar a barbárie. Precisamos gerar ondas de solidariedade e melhorar a abordagem e começar a olhar para o outro e assumir que o outro é parte de nós. Precisamos como país e como nação fazer com que o nosso grito seja audível cá dentro e pelo mundo fora. Precisamos de um pouco mais de compromisso com a alteridade e um pouco mais de respeito pela dignidade da pessoa humana e pelos direitos humanos que são violados a cada instante.
Quando ia escrever o último parágrafo, lembrei-me do refrão de uma canção que se tornou uma célebre referência durante a minha infância - Os meninos de Huambo – “Os meninos à volta da fogueira, vão aprender coisas de sonho de verdade; Vão aprender como se ganha uma bandeira; Vão saber o que custou a liberdade”.
Lembrei do quão criativa e inspiradora foi e é a canção, mas que infelizmente os meninos e meninas de Quissanga, Montepuez, Macomia, Nangade, Mocímboa da Praia, Palma, Namanhumbir e outros distritos de Cabo Delgado ainda não podem cantar. Os meninos e meninas de Cabo Delgado estão debaixo de um fogo que não aquece, mas queima e estão a aprender coisas de terror, de medo, e não conhecem neste momento o significado nem o valor real da liberdade e ainda correm o risco de ver uma nova bandeira diferente da nossa ser içada. Não são vitimas da colonização mas são uma versão moderna e a personificação de “Os condenados da Terra” de Frantz Fanon.
Os povos outrora colonizados foram vítimas de um processo brutal e desumano arquitetado ao detalhe e implementado impiedosamente pelos colonizadores. Esse processo foi altamente destrutivo e corrosivo tanto física como psicologicamente; Os povos colonizados são até hoje vítimas das mais vis atrocidades perpetradas pelo opressor - as feridas aparentemente sararam mas as cicatrizes são visíveis e ainda doem. A ideia de alguns grupos admitirem ser superiores intelectual, cultural e humanamente e outros inferiores, deixou marcas indeléveis colocou a humanidade numa guerra silenciosa e que custa vidas e retrocessos a dita civilização; Os povos colonizados tem em mãos a decisão sobre o seu presente e seu futuro mas adiam-na sistematicamente por um pretenso medo de serem efetivamente livres e autônomos – há ainda vivos fortes traços da colonização mental na sua acção.
O racismo, com a sua prepotência ideológica faz com que alguns se tornem superiores em relação a outros, assentando principalmente na ideia de que as desigualdades entre os humanos estaria fundada na diferença biológica, na natureza e na constituição do ser humano. Esta postura é maioritariamente assumida por pessoas de raça branca que, de forma recorrente fazem uso da sua posição força e condição de suposta vantagem para ultrajar e subjugar os chamados inferiores.
Hodiernamente, novos estudos e novas abordagens tendem a separar conceito de racismo à simples ideia de raça e racialismo. Tendem igualmente a oferecer explicações sobre esta problemática do racismo na sua relação histórica com a escravatura, colonização, descolonização e neo-colonização. Estes conceitos e temas mostram-se sensíveis no seu trato e cada vez mais actuais, e carecem de uma hermenêutica mais detalhada para ajudar a perceber a real ameaça do racismo nos dias de hoje.
A história moderna testemunhou a várias colocações científico-literárias de afirmação e difusão de ideias de superioridade de um grupo auto-denominado superior em relação ao outro por analogia designado de inferior – das teorias do pré-logismo do homem primitivo, passando pelo bom selvagem, até às teorias positivistas de Augusto Comte é notório um esforço titânico e uma luta visceral para depreciar e anular a humanidade do homem negro e consequentemente a sua racionalidade, história e cultura. A bem da verdade é importante que se admita sem ressalvas e que se diga que a ocupação, partilha e exploração de África assentou-se nesses pressupostos de superioridade e numa ideia de necessidade tácita de salvação dos negros africanos, índios da América Latina, indígenas das Índias e aborígenes na Austrália.
A escravatura é de longe o mais abominável e hediondo acto praticado pelo Ocidente contra os negros. Os seus efeitos se fazem sentir até hoje e mais do que nunca geram cada vez mais repúdio e descontentamento. Ela foi abolida formalmente, mas são visíveis novas e diversas formas de manifestação da escravatura moderna em vários cantos do mundo.
Quando as grandes migrações e viagens históricas aconteceram com o móbil dos descobrimentos e evangelização, e enquanto as migrações em massa tinham o sentido “Norte-Sul”, ou Europa – África como queiramos afirmar, o nome atribuído foi salvação, civilização, filantropia e purificação - e pela bondade, pureza e inocência do africano, este processo foi o menos sangrento e violento possível – as armas e os chicotes funcionaram lado-a-lado com a bíblia e com a doutrina de salvação. O continente negro era uma espécie de El Dourado e um poço de riqueza abundante capaz de alimentar o fulgor da indústria europeia. Contemporaneamente as migrações tomaram outro sentido “Sul-Norte”, ou África – Europa - América, e milhares de imigrantes africanos em busca de melhores condições de vida se fazem viajar ao chamado velho continente. O drama da migração de africanos para a Europa (principalmente usando o norte de África como porta de saída) tem merecido todos os adjectivos pejorativos por parte dos países receptores – E estas adjectivações contém sempre uma grande dose de depreciação racial.
Com os avanços tecnológicos vividos nos dois últimos séculos, onde a produção e circulação de conteúdos tiveram um alcance maior, foi muito mais visível a dura e crua luta do negro e o drama por ele enfrentado no mundo com a impetuosidade da escravatura. Este drama é um problema universal e que carece de uma reflexão e intervenção global. Os séc. XX e XXI são indubitavelmente os séculos de afirmação do negro em vários âmbitos e áreas mas esta luta é ameaçada pelo “bicho” do racismo que mina a realização plena do homem negro. São dois séculos em que as lutas dos negros de todo mundo se fizeram sentir de forma mais vibrante com recurso a música, a literatura, ao cinema, ao desporto, a arte, a cultura e à várias outras formas de manifestação artística, intelectual e cultural que alavancaram a marcha de reconhecimento da humanidade do negro – uma marcha diga-se em que tudo o que se pede era o reconhecimento do lugar no negro no mundo e o respeito básico dos direitos do homem.
Mas importa referir ainda que os avanços registados nesta secular luta de emancipação e reconhecimento, nem sempre foram reconhecidos pelos perpetradores da violência contra este ser chamado de inferior. O espírito de superioridade ainda não permite que se olhe para o negro como um ser que faz parte do enredo civilizacional. Os ideais proclamados na Revolução Francesa - Liberdade, igualdade e fraternidade – tem um conteúdo estético belo mas não passam de mais um slogan que se distancia da realidade social factual.
Quando se pensa que o mundo contemporâneo deu passos rumo a uma maior coexistência entre diferentes grupos de pessoas, religiões, cores, eis que regredimos, e tocamos o ponto mais próximo de uma das premissas kantianas que remetem a uma menor idade racional.
Do brutal assassinato de George Floyd à consternação global
O mundo parou com a brutal a morte do afro-americano George Floyd por um policial branco norte-americano. Uma acção desproporcional de uso da força e de desprezo pela vida humana; E que só teve a repercussão que teve porque o registo se tornou viral. Na verdade, aquele é o modus operandi da polícia norte-americana, e aquela é a forma impiedosa como os negros e afrodescendentes são tratados em vários quadrantes do mundo. O que tornou Floyd um mártir não foi apenas a forma como foi morto, mas sim a frieza de quem o matara e o poder da força de mobilização das redes sociais que em pouco tempo tomaram as dores do negro em escala mundial. George Floyd é apenas mais uma vítima daquilo a que anteriormente chamamos de drama do negro no mundo contemporâneo. É mais uma vítima de todo um sistema ideológico assente em pressuposto de supremacia de um grupo, que colapsou e não se consegue disfarçar de tão poluído e desumanizado que se encontra. Drama porque ao negro não é reconhecida a humanidade nem a dignidade; ao negro é imputada uma série de acusações de má conduta e desvio social, e pesa sobre ele a herança de todo um jogo depreciativo que o associa ao lado obscuro da história.
(In) felizmente, esta e outras mortes serão mediatizadas ao extremo e usadas até de forma política com fins diversos, mas se não paramos para estudar a raiz do problema e atacar as suas causas para podermos desenhar estratégias de mitigação, uma vez mais o esforço será indigno e inglório. As manifestações em todo mundo irão durar o tempo que tiverem que durar; a consciência popular irá emitir vozes de revolta, cansaço e repúdio, e a história irá abrir-se para uma nova fase em que tudo pode ser diferente se e somente se reformas institucionais e curriculares tomarem lugar.
O slogan black lives matter (vidas negras importam), tornou-se popular e viral e afirmou-se como slogan de guerra entre os manifestantes de dentro e de fora dos EUA. Particularmente olho com desconfiança para este slogan e tenho as minhas reticências sobre o seu enquadramento. Considero uma mensagem poderosa e ao mesmo tempo frágil nesta luta que se pretende travar contra o racismo. Ao afirmar que vidas negras importam, queremos chamar atenção ao grupo que mais sofre com as atrocidades do racismo, mas caímos inconscientemente num polo exclusivista visto que usa-se precisamente a arma de superioridade do branco para enaltecer o valor da vida negra. É um slogan necessário pela gravidade do assunto mas atropela levemente a globalidade da dignidade da pessoa humana onde se considera que a vida humana na sua essência está acima de todo e qualquer diferencial racial, religioso, cultural e ideológico. Nesta perspectiva, as manifestações que assistimos pelo mundo fora pode ser entendida como a síntese da escravatura, da colonização e de uma descolonização que nunca devolveu a dignidade outrora retirada.
Por: Hélio Tiago Guiliche (Filósofo, docente universitário)
África, a história consagrou-te como sendo o “Berço da Humanidade” e, paradoxalmente hoje te consideram “o novo continente”. Mas não é sobre este paradoxo que aqui pretendo dissertar. É a história que testemunhou desde muito cedo a apetência das potências imperialistas ávidas em explorar os seus recursos, o seu povo e toda uma riqueza que humana, cultural e intelectual.
É sem sombra de dúvidas um continente bafejado pela existência de enormes quantidades de recursos naturais que foram inicialmente vistos como uma bênção mas que muito cedo se tornaram numa maldição que adia o desenvolvimento pleno do continente. Esta maldição traduzida em guerras, genocídios, corrupção, má governação que perpetua a fome, a miséria, as desigualdades entre o povo e adia o grito de liberdade total e completa que tanto almejamos.
Foram mais de 500 anos de uma colonização que quase tudo tirou do chamado “novo continente”. 500 anos de uma epopeia imperialista desenhada e implementada pelo Ocidente e que iniciou com a procura de matéria prima para a incipiente indústria europeia e procura de novos mercados. Com a narrativa das supostas viagens dos descobrimentos a geografia mundial ganhou outra dimensão económica, religiosa, cultural e humana – a hegemonia do norte para o sul foi cimentada e o mundo passou a ser dominado pela palavra civilização que era apanágio do Ocidente imperialista. Seguiu-se ocupação efectiva e partilha de África decidida na célebre Conferência de Berlin onde o continente negro foi dividido em fatias e suas fronteiras redesenhadas ao sabor das potências capitalistas.
A ocupação e exploração de África não respeitou a dignidade da pessoa humana – na verdade ela violou os direitos fundamentais do homem e mostrou uma face arrogante e prepotente do homem branco que escravizou e desumanizou o homem negro; Não se preocupou com a cultura, com a religião nem com a ontologia do africano. Diga-se em viva voz que a escravatura foi um dos actos mais vis, desumanos e vergonhosos que o Ocidente carrega consigo até os dias de hoje. Milhões de homens foram levados em navios cargueiros, do seu habitat original e retirados das suas terras com destino incerto dentro do próprio continente negro, para América do Norte, do Sul (concretamente no Brasil), e espalhados pelas Antilhas Francesas e protectorados Ingleses para os campos de cultivo de cacau, cana-de-açucar, borracha, e outras matérias primas para alimentar a indústria e a economia ocidental.
Em nome da civilização, povos foram separados e culturas foram destruídas; novos hábitos, costumes e maneiras foram instituídas – desafiando o africano a negar sua origem, a envergonhar-se da sua cultura e a declinar seus traços identitários; O novo africano deveria ser instruído para poder fazer parte do mundo dito civilizado.
A civilização permitiu a instrução, a escolaridade e o acesso a um pensar mais elaborado, mais crítico e reflexivo. Um pensar interventivo, mais comprometido com a causa africana e com o direito a autodeterminação. Surge a primeira nata intelectual de afrodescendentes e africanos da diáspora com ideias claras sobre a libertação e independências de África.
Eis que na década 50 dos anos 1900, como corolário da segunda Grande Guerra, assistimos ao retorno dos filhos da terra que ensaiaram os primeiros modelos de independências do continente africano. Ainda que de forma incipiente e tímida, a pesada herança da negritude e do pan-africanismo de primeira geração empurrava a nata pensante à tão sonhada e desejada acção outrora sugerida no célebre Congresso Pan Africano realizado em Manchester em que George Padmore com a famosa afirmação – “É altura de passarmos da teoria à prática”. A partir de 1960 assistimos a uma saga independentista que culminou com a libertação de vários países africanos no jugo colonial, incluindo Moçambique e Angola (duas ex colónias Portuguesas alvo de cobiça durante a Conferência de Berlin e resultado do audacioso Mapa cor rosa).
Uma intelectualidade genuinamente africana e altamente comprometida com os ideais do pan-africanismo, da negritude, do renascimento negro e do empoderamento negro, representada por Kwame Nkrummah, Leopold Senghor, Jomo Kenyata, Ahmed Sekou Touré e mais tarde por Julius Nyerere, Agostinho Neto, Amilcar Cabral, Samora Machel e outros proeminentes lideres, fez eco ao sonho de Marcus Garvey, Malcom X, Luther King, William Du Bois, Aimé Cesaire e outros notáveis teóricos, e fez-nos acreditar que o sonho da autodeterminação podia ser real. A conquista das independências significou muito para os africanos, e gerou uma euforia e expectativa enorme em torno presente e do futuro.
Severino Ngoenha (in Das Independências às Liberdades), num rasgo filosófico-político em que se discorre o processo de legitimação e apropriação da Filosofia pelos africanos tendo como base a racionalidade do africano, passando pelo processo de conquista das independências em África e culminando com uma crítica mais elaborada pela corrente hermenêutica, analisa os ganhos, as perdas e os desafios destas independências. As independências africanas, a meu ver criaram menos liberdade e mais asfixia aos povos. Mudaram-se os actores coloniais e passaram a ser perpetradas atrocidades entre africanos. Vivemos um pouco de tudo, mas não conhecemos o sabor da liberdade.
É de todo inegável a dimensão psicológica que a saga independentista da década 60 causou no povo africano; Houve uma exacerbada expectativa em torno dos países recém independentes e ensaios embrionários de autogoverno, autodeterminação e muitas dúvidas sobre a real capacidade dos estados africanos vingarem na ausência do colono. Os perigos do neocolonialismo muito cedo se fizeram visíveis e em poucos anos muitos países africanos estavam sob graves conflitos internos e guerras civis que devastaram sobremaneira a ainda débil estrutura estatal. Os anos que se seguiram as tão almejadas independências, foram anos de solidificação das ideias nacionalistas, mas também foram anos em que assistiram-se a de conflitos internos nos estados, guerras devastadoras, genocídios e destruição sem precedentes.
Conquistamos as independências mas não conseguimos construir estados capazes de se auto-governarem. E quando conseguimos ensaiar a ideia de um estado fomos muito cedo abafados e aniquilados.
A velha fórmula romana – divide et impera – (dividir para reinar) foi usada para fragmentar ainda mais os estados e abrir as portas ao neocolonialismo na sua versão de ajuda externa e construção da democracia em África. Uma democracia diga-se desajustada ao modelo africano e de certa forma forçada e imposta pelos senhores de Bretton Woods para estados em claras dificuldades económicas. A pressão externa, a situação económica frágil e algumas sanções e interferências externas, abriram uma nova página na relação África e o mundo.
Entre o servilismo a Bretton Wood e a nova Rota da Seda
Gorada a tentativa de ter independências totais e completas, onde nem politica nem economicamente conseguimos ter uma solidez e robustez que permitisse o crescimento e desenvolvimento alicerçados no sonho integrado do pan-africanismo, pouco ou nada restava a África a não ser aderir às Instituições de Bretton Woods e beneficiar-se de empréstimos financeiros, políticas de restruturação económica, e toda gama de ajuda externa provida pelo Ocidente.
Volvido mais de meio século após a conquista das independências, a nova relação entre África e o mundo é basicamente assente na concessão de recursos abundantes em África à multinacionais do ramo extractivo – e África voltara a ser pilhada novamente, mas de forma mais assaz e agora com consentimento dos seus líderes que a pela sua ambição individual e a troco de muito pouco, perpetuam os corredores da corrupção, do nepotismo e da má governação que por cadeia estão atrelados a pobreza extrema, fome generalizada, doenças, péssima qualidade de educação e saúde.
África continua a despertar a apetência das multinacionais ocidentais que lucram com a exploração do recursos, fragilizam a nossa economia com falsos incentivos e adiam o “take off” do nosso continente.
Com a emergência e afirmação no panorama mundial do gigante asiático – a China – com o seu ambicioso projecto denominado “A Nova Rota da Seda”, África entra uma vez mais na equação. A China está presente nos cinco continentes e investiu cerca de US$ 1,9 trilhão. Isso equivale, por exemplo, a 13 vezes o valor do Plano Marshall, utilizado pelos Estados Unidos na reconstrução da Europa durante a guerra fria.
Governos altamente endividados, economias super dependentes da ajuda externa, e estados quase capturados tanto pelo FMI e Banco Mundial, ponderam piscar os olhos a China e entrar na chamada rota, hipotecando uma vez mais os sonhos de milhões de africanos. O capitalismo selvagem ocidental e o comunismo mascarado de Pequim fazem a partilha dos recursos de África e nós africanos uma vez mais apenas lamentaremos e nos socorreremos na famosa teoria da maldição de recursos.
Os recursos em si não são uma maldição mas também não são uma bênção quando mal explorados; Quando explorados de forma não integrada e não planificada eles podem ser a causa de guerras e instabilidade de vária ordem.
No geral os modelos de governação que adoptamos, as políticas económicas e sociais que desenhamos tem se mostrado pouco ajustadas às realidades dos nossos países.
Celebramos mais um aniversário de um continente africano. Mais um aniversário debaixo de lamentações. Mais um aniversário em que os traumas do ontem geraram o medo do hoje se sobrepõem a esperança do amanhã. Em África o amanhã mete medo porque nunca sabemos se ele chegará, e se chegar não sabemos como encará-lo porque não o planificamos. E os anos vão passar, as gerações vão se renovar, mas se a nossa mentalidade continuar a mesma, o nosso continente continuará a ser o que sempre foi – um palco onde todos dançam menos os donos da casa.
E chega de procurar culpados lá fora para a nossa fraca prestação. Os culpados somos nós e nós sabemos o que deve ser feito para que África seja aquele lugar em que reine a paz, a prosperidade, a harmonia, onde a autodeterminação é respeitada, onde os valores, as línguas, as tradições, as religiões e todo mosaico étnico e cultural façam parte do rendez-vous das nações.
Por Hélio Guiliche (Filósofo _ Docente Universitário)