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quarta-feira, 29 maio 2024 02:37

Abstenção ‘safa’ hoje o ANC e vai confortar a Frelimo em Outubro, escreve Ericino de Salema

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A África do Sul, a mais poderosa economia da África Austral e uma das mais fortes de África, com um Produto Interno Bruto (PIB) de 377.782 milhões de dólares norte-americanos (USD), quase 20 vezes maior que o de Moçambique (USD 19.157 milhões), assinala, hoje, 29 de Maio, um aparente grande feito histórico: o país regista o sexagésimo quarto dia, ou dois meses e quatro dias, sem cortes programados de energia, eufemisticamente denominados load shedding, uma das mais evidentes marcas da crise governativa do Congresso Nacional Africano (ANC), com severos impactos sobre a indústria transformadora e o turismo, e, em consequência, também sobre o emprego.

 

Mas será que essa ‘façanha governativa’ que a Administração Ramaphosa regista hoje é um sinal inequívoco de que a crise energética está já ultrapassada na África do Sul? Longe disso! É tudo sobre a efectivação da estratégia de sobrevivência do ANC, em cujo pacote cabe não só a energia, mas também, mais visivelmente, a saúde e o apoio social às famílias vulneráveis.

 

Num acto descomunal e de absoluta surpresa, por contrariar os princípios de ampla participação popular e de consulta às partes interessadas, Cyril Ramaphosa, Presidente da República (PR) da África do Sul e do ANC, em nome do qual se apresenta como cabeça de lista (lista nacional) e candidato à sua própria sucessão nas eleições legislativas e provinciais de hoje (N.A.: no sistema sul-africano, o PR é eleito na primeira sessão da Assembleia Nacional a seguir a um pleito legislativo), aprovou, a 15 de Maio corrente, o Seguro Nacional de Saúde (NHI, na sigla em inglês), um claro presente envenenado aos perto de 28 milhões de eleitores.

 

Aliás, o próprio Ramaphosa deixou escapar que o NHI tem tudo para ser um embuste, ao afirmar, na semana em que o transformou em lei, que “as divergências ainda existentes serão resolvidas com o tempo”. Até os seus “eternos aliados” da Business Unity South Africa viram-se chocados, conforme disse ao Sunday Times o respectivo director executivo, Cas Coovadia. Destacados sindicados e a Health Funders Association já levaram a lei em alusão ao tribunal, para que a mesma seja considerada inválida e inconstitucional. 

 

Aos milhares de sul-africanos que se esbarram, há anos, com todo o tipo de problemas, fome inclusa, situação que tende a agravar-se devido à crise sem precedente de desemprego, a Administração Ramaphosa ofereceu, semana passada, um progressivo pacote de apoio social, expresso em dinheiro.

 

Mas serão esses ‘embrulhos políticos’ bastantes para manter o ANC no poder?

 

Ainda que o ANC tenha melhorado o seu posicionamento nas sondagens eleitorais recentemente realizadas, sobretudo pela Ipsos e pela Social Research Foundation (SRF), em nenhuma situação se prevê que o partido no poder no país vizinho desde a primeira eleição multirracial e democrática, realizada em 1994, consiga maioria absoluta (50% mais 1) dos votos, condição indispensável para fazer eleger, na primeira sessão da Assembleia Nacional, o PR e, em consequência, formar governo. Sem isso, só por via de uma coligação pós-eleitoral.  

 

Não deixa, pois, de ser verdade que a suspensão, definitivamente temporária, da zanga que históricos do ANC mantém com o Presidente Ramaphosa, com destaque para os antigos Presidentes Thabo Mbeki e Kgalema Motlantle, manifestada através do seu ingresso na campanha, ajudou o ANC a se aproximar dos 50% dos votos, continuando a ser muito improvável que consiga formar governo sem precisar de se coligar.

 

Com a estratégia de ‘colocar a carne toda no assador’, o ANC viu, segundo a SRF, o seu potencial posicionamento nas urnas a subir de 36.4% para 45.1% em um mês (de 16 de Abril a 16 de Maio), o ponto máximo em todas as projeções realizadas com credível alicerce científico.  

 

Entretanto, uma baixa afluência às urnas hoje na África do Sul pode ser a panaceia para, pelo menos, o ANC manter alguma dignidade, mesmo não conseguindo maioria absoluta. “Com a actual situação de insatisfação generalizada no seio da população, o mais provável é mesmo uma fraca afluência às urnas, o que beneficiará o ANC”, vaticina a Ipsos.

 

A mais recente sondagem da Ipsos sugere três possibilidades de participação no pleito de hoje: baixa afluência, com registo de entre 41% e 43%; afluência média, com entre 57% a 59%; elevada participação, cenário tido como “muito improvável”, que se situaria entre 74% e 76%. 

 

Se se assumir que a elevada insatisfação popular há-de levar os eleitores a se expressarem politicamente através da abstenção, com uma afluência de entre 41% a 43%, o ANC pode ganhar as eleições com 46% dos votos validamente expressos. A Aliança Democrática continuará, nesse cenário, a ‘segunda força’ política, com 20%, seguindo-se-lhe o partido Combatentes pela Liberdade Económica (EFF), de Julius Malema, com 10.3%. Seguem-se, sugere ainda a Ipsos, o MK do “isolado” Jacob Zuma, com 8.9%, o Inkatha Freedom Party (IFP), do finado Mongosuthu Buthelezi, com 3.4%, e, a fechar, vários pequenos partidos com uma projecção combinada de 11.4%. 

 

Mas com quem o ANC vai “dormir”?

 

Considerando como mera hipótese académica o cenário de constituição de Governo de Unidade Nacional (GUN) sugerido por Ebrahim Fakir, do Instituto para a Democracia Sustentável em África (EISA), e por Chris Landsberg, da Universidade de Joanesburgo (Suplemento Comment and Analysis do Sunday Times, edição de 19 de Maio de 2024), como, potencialmente, a melhor plataforma para a África do Sul resolver as suas “mazelas governamentais”, é mais do que certo que o ANC vai precisar de negociar uma aliança pós-eleitoral.

 

Negociar uma coligação pós-eleitoral será, pois, a única via para que o ANC possa estar em condições de formar governo, situação que irá, certamente, remeter os históricos e ideólogos do ANC a uma discussão marcada por um factor: a prevalência do princípio do mínimo aceitável.

 

Ainda que o Presidente Ramaphosa seja catalogado como tendo “muitos parceiros de negócio” no seio dos apoiantes do DA, o certo é que é de excluir, à partida, uma aventual negociação entre este partido e o ANC, dadas as ‘invisíveis feridas’ que ainda sobram do então regime de segregação racial.

 

Negociar com o EFF de Julius Malema e Floyd Chivambo, que, antes de Zuma os expulsar do ANC eram, por lá, os mais destacados jovens do partido no poder, poderá ser uma solução, sobretudo se o ANC obter um resultado desastroso, que seria qualquer coisa como 40-44%. Caso o ANC consiga entre 45% e 47%, então a ‘solução governativa’ poderá ser encontrada de entre as pequenas formações políticas, onde o custo negocial seria muito baixo. 

 

Que “conexão” com e lições para Moçambique?

 

Bem, se os jornais fossem elásticos, ou se a disponibilidade de tempo para leitura, em sacrifício às ‘estratégias de sobrevivência’, não fosse problema, no lugar de Moçambique escolheria, para o entretítulo imediatamente acima, a região da África Austral, onde destacados partidos libertadores, como são os casos da Zimbabwe African National Union – Patriotic Front (ZANU-PF), do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), experimentaram, nos últimos pleitos eleitorais, situações complicadas, para não dizer mais.

 

De resto, a ZANU-PF e o seu candidato presidencial nas eleições de Agosto de 2023, Emmerson Mnangagwa, foram declarados vencedores, mas a tangente e com os respectivos processos eleitorais (legislativas, presidenciais e municipais) a serem declarados não íntegros por vários observadores, incluindo os da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), situação absolutamente descomunal. No mesmo mês, mas no ano anterior (2022), o MPLA e o seu candidato presidencial (João Lourenço) ganharam “como nos filmes”. Tanto a ZANU-PF como o MPLA perderam o pleito nas capitais dos seus países, nomeadamente Harare e Luanda. 

 

No ano passado, Moçambique registou a mais turbulenta eleição autárquica, até com “fortes sinais” de existência de “decisões administrativas” por parte do Conselho Constitucional. O próprio Presidente da Comissão Nacional de Eleições (CNE), o Reverendo Carlos Matsinhe, reconheceu a existência de graves problemas, quando procedia, a 26 de Outubro, à apresentação pública da acta de centralização, tendo anunciado uma investigação ao sucedido, cujos resultados são até hoje desconhecidos, quando se está a pouco mais de quatro meses das sétimas eleições presidenciais e legislativas e das quartas das assembleias provinciais, as segundas do género integrando a eleição de governadores de província. 

 

Em boa verdade, Moçambique irá às eleições deste ano tendo quase todos os problemas e desafios que a África do Sul tem, onde se incluem até os raptos e a fome, que Ramaphosa promete acabá-la de vez, enquanto em Moçambique a realidade no terreno continua a desmentir o triunfalismo exposto em 2023 por Celso Correia, ministro da Agricultura e Desenvolvimento Rural. A propósito, o jornal Notícias dizia, na sua edição de ontem, que “Fome ameaça 33 mil famílias em Búzi”, o que pode significar mais de 165 mil pessoas…

 

À semelhança do que poderá ocorrer hoje na África do Sul, antecipa-se, para o pleito eleitoral de 9 de Outubro deste ano em Moçambique, uma elevada abstenção. Mesmo sem sondagens, é razoável fazer esta inferência, a partir do que tem sido a “reacção” de eleitores por esta África com a sua situação de privação relativa, com raras e honrosas excepções, conforme se testemunhou em Agosto de 2021 na Zâmbia, onde a ida massiva às urnas, sobretudo por parte de jovens, significou grande humilhação a Edgar Lungu, que pretendia fazer-se reeleger. 

 

Mas a história do que sucede, em Moçambique, a seguir a eleições turbulentas, é, talvez, o principal indicador a ter em conta quanto ao nível de afluência às urnas que se antecipa para este ano.

 

Com efeito, antes do verificado no ano passado, no quadro das sextas eleições autárquicas, a pior eleição em Moçambique, sob o ponto de vista de crise pós-eleitoral, tinham sido as de 1999, que foram “tecnicamente ganhas” pelo Presidente Joaquim Chissano e pela Frelimo, por decisão do Tribunal Supremo (TS), fazendo, na altura, a vez do Conselho Constitucional. Nas eleições gerais que se seguiram, as de 2004, nas quais Armando Guebuza foi eleito PR, o país registou a mais alta abstenção (66.48%) de sempre.

 

Ainda que as eleições de 2023 tenham sido “locais”, o certo é que os eleitores de 65 autarquias são uma amostra mais do que significativa para este tipo de leitura, sobretudo no actual cenário de crescente ‘sociedade em rede’. E enquanto a Frelimo parece estar a investir na ‘reanimação da política doméstica’, com a escolha de Daniel Chapo, materialmente jovem e com uma folha de serviços limpa, como candidato presidencial, com a Renamo a sugerir estar a fazer exactamente o contrário, com a confirmação de Ossufo Momade, tido como um “cavalo que não corre”, como candidato presidencial.

 

Escasseiam, entretanto, evidências de que o moçambicano do meio rural, onde reside grande parte da população, ‘não morre de amores’ por um candidato presidencial do perfil de Ossufo Momade, sobretudo se se alicerçar em robusta estratégia eleitoral e contar com o apoio de ‘caras-notícia’ como Ivone Soares e Manuel de Araújo. Por outro lado, uma inusitada ida massiva às urnas talvez seria para a efectivação do ‘voto do contra’, em benefício da Renamo, que, nessa situação hipotética, passaria a ter maior expressão na Assembleia da República (AR). 

 

O certo é que o maior beneficiário de uma eventual elevada abstenção eleitoral em Moçambique será a Frelimo, à semelhança do que poderá suceder para o ANC na eleição de hoje na África do Sul.

 

Em termos de lições para o nosso país, a independência dos tribunais (incluindo o Tribunal Eleitoral), que gera credibilidade, é algo muito sério na África do Sul. Aliás, não houvesse isso a chamada nação do arco-íris talvez estivesse, hoje, a competir para ser um dos mais inviáveis países de África. 

 

Igualmente digno de apreciação e fonte de inspiração é o alto nível de profissionalismo da administração eleitoral, cujo órgão máximo, a Comissão Eleitoral Independente (IEC), só tem cinco membros. A nossa CNE, com 17 vogais (três vezes mais que a da África do Sul), leva, em pleno auge do digital, “anos” para anunciar os resultados eleitorais, em contramão com as boas práticas internacionais.  (Carta)       

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