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segunda-feira, 14 dezembro 2020 06:13

Recurso a empresas militares privadas para combater a insurgência em Cabo Delgado: sem transparência e com resultados desastrosos - CIP

O Governo de Moçambique vai estender, pela segunda vez, o contrato com a Dyck Advisory Group (DAG), empresa militar privada (PMC – sigla em inglês) sul-africana, que desde Abril deste ano auxilia as Forças de Defesa e Segurança no combate à insurgência em Cabo Delgado. Para além da extensão do contrato com a DAG, o Governo terá contratado outra PMC sul-africana, a Paramount, segundo escreve a imprensa internacional esta semana[1].

 

A coberto de segredo do Estado, o Governo está a recorrer, desde Setembro de 2019, à contratação de PMC’s para ajudar a combater a insurgência em Cabo Delgado, sem prestar contas aos cidadãos, seja em termos dos gastos despendidos assim como dos benefícios que se obtêm com o recurso a militares privados.

 

Enquanto escasseia informação relativa aos gastos do Governo com as PMC’s, o desempenho destas empresas no terreno é visivelmente desastroso. Desde que o Governo começou a recorrer aos militares privados para auxiliar as Forças Armadas de Defesa de Moçambique e a Polícia no combate aos insurgentes, o poder dos insurgentes cresceu visivelmente, passando a atacar as sedes distritais e infligindo baixas pesadas às forças do Governo. O Governo tem escondido ao público a informação sobre militares mortos em combate em Cabo Delgado.

 

Contratos obscuros: de russos a sul-africanos

 

A coberto da lei que define o ajuste directo como o regime aplicável, “se o objecto da contratação respeitar à defesa e segurança nacional”[2], o Governo tem, desde Setembro de 2019, recorrido a contratação de empresas militares privadas estrangeiras sem informar aos moçambicanos sobre o objecto da contratação, o valor e outras condições da contratação. Apesar de se reconhecer a necessidade de proteger informação sensível¸ como a de defesa e segurança, não significa que o Governo está isento da prestação de contas. Porém, o Governo não o tem feito num contexto em que a realização dos gastos com a defesa tem aumentando significativamente - em  cerca de 80% entre 2017 e 2020, de 8,304.10 mil milhões em 2017 para 14,957.30 mil milhões até Setembro de 2020[3].

 

A primeira empresa militar privada contratada pelo Governo foi a Wagner Group, da Rússia. Militares russos ligados a esta empresa chegaram a Moçambique em Setembro de 2019 e começaram a actuar em Cabo Delgado. O Governo nunca se pronunciou sobre o papel dos militares da Wagner actuando no território nacional, muito menos das contrapartidas que iriam receber.

 

Publicações especializadas referem que o Governo de Moçambique acordou o pagamento aos militares privados russos com Gás Natural da Bacia de Rovuma[4], mas esta informação nunca foi confirmada pelo Governo, que sempre se recursou a responder às questões sobre o uso de empresas militares privadas, alegando tratar-se de questões de estratégia militar.

 

Sem sucesso em Cabo Delgado, os militares privados russos retiraram-se do combate, enquanto  a imprensa  publicava relatos de baixas entre os seus elementos e de supostas tensões com as forças do Governo[5].

 

Com o fracasso dos militares privados russos, em Abril de 2020 o Governo voltou a contratar outra empresa militar privada, desta vez a sul-africana Dyck Avisory Group (DAG), liderada pelo veterano zimbabweano Leonel Dyck[6]. A empresa militar privada sul-africana trouxe meios aéreos e armamento para ajudar a combater a insurgência em Cabo Delgado. O Governo nunca revelou os termos do contrato, tais como a duração, o valor e as obrigações da DAG, que é informação geral sem grandes implicações nas operações. Entretanto, militares das Forças Armadas de Defesa de Moçambique questionaram a capacidade dos meios aéreos contratados pelo Governo, referindo que se trata de helicópteros civis, adaptados para combate e¸ por isso¸ sem eficácia para o tipo de combate exigido em Cabo Delgado.

 

Devido às limitações técnicas para o combate, os helicópteros trazidos e operados pela DAG em Cabo Delgado não têm capacidade para operar no período nocturno e a sua autonomia de voo é referida por especialistas como muito limitada, não podendo aguentar longas horas de combate no ar sem necessidade de regressar à base, em Pemba, para se reabastecer.

 

Segundo  informação da imprensa, nunca comentada pelo Governo, o contrato inicial da DAG em Moçambique era de três meses, de Abril até Junho. Entretanto, em Julho foi reportado que o Governo estendeu o contrato até pelo menos final de 2020, passando a incluir a componente de treinamento de elementos das Forças de Defesa e Segurança[7].

 

Portanto, a renovação do contrato da DAG e a contratação da Paramount é a terceira vaga de contratação de empresas militares privadas, seguindo sempre padrões de secretismo, embora ao fim ao cabo os militares privados sejam vistos a actuar em Moçambique.

 

Resultados desastrosos: das relações problemáticas com as FADM à perda de terreno para os insurgentes

 

Embora o objecto da contratação das empresas militares nunca tenha sido revelado pelo Governo, o recurso a essas tem como fundamento a necessidade de apoiar as tropas governamentais em técnicas de combate a inimigos complexos, incluindo serviços de inteligência militar e apoio em meios de combate mais eficazes.

 

Porém, as empresas militares privadas estão a falhar, até aqui, nesta missão. Ao contrario do que se esperava com a contratação destas empresas , o desenrolar dos factos no teatro de operações mostra que o poder militar dos insurgentes tem aumentado significativamente  desde que o Governo começou a recorrer aos serviços de empresas militares privadas. Isto pode ser um indicador de que a opção pela contratação de PMCs está a ser contraproducente.

 

Os ataques dos insurgentes às sedes dos distritos de Quissanga (Março de 2020) Mocímboa da Praia (Março, Junho e Agosto de 2020), Macomia (Maio de 2020) Namacande - Muidumbe (Abril e Novembro de 2020), aconteceram depois que o Governo contratou os serviços das empresas militares privadas.

 

Tanto os russos como os militares privados sul-africanos não conseguiram evitar que as infraestruturas de vilas sedes distritais fossem atacadas e destruídas pelos insurgentes. Em todas as vilas sede distritais, os insurgentes atacaram e permaneceram durante dias a destruir os edifícios públicos e privados e a espoliar os bens, acabando por se retirar por iniciativa própria[8].

 

Na vila-sede de Quissanga, os insurgentes permaneceram por mais de um mês e na vila de Mocímboa da Praia continuam até ao presente. Já passam quatro meses[9].

 

Baixas nas FADM

 

Com a presença de empresas militares privadas em Moçambique, era expectável que as FADM aumentassem a sua capacidade não só de defender as comunidades, mas também de vigilância e reconhecimento sobre as manobras do inimigo e desta forma evitar sofrer emboscadas com baixas pesadas nas suas fileiras. Entretanto, o que se assiste em Cabo Delgado é o oposto. Os insurgentes estão a causar enormes baixas nas Forças Armadas.

 

O recurso a empresas militares privadas é sempre tido como uma decisão de alto risco que pode trazer implicações negativas para a sobrevivência do próprio Estado no sentido de: corrosão da sua função primária de garante de segurança no território da sua jurisdição, difusão do seu poder militar por vários actores, fraca prestação de contas sobre as actividades de segurança - dadas as diferenças entre as obrigações  de entidades públicas e privadas[10].

 

No caso de Estados fracos, como Moçambique, muitas vezes, não têm capacidade para lidar com as consequências da privatização da segurança. A difusão dos poderes resultante da contratação de empresas militares privadas pode enfraquecer em vez de consolidar a autoridade do Estado[11].

 

A perda do controlo dos poderes militares do Estado parece o caminho que Moçambique está a tomar com o uso de empresas privadas militares. As altas hierarquias militares reivindicam a liderança no combate à insurgência em Cabo Delgado e entendem que melhor do que contratar PMCs seria treinar e equipar as FADM com capacidade combativa.

 

HḠainda¸ relatos de mau relacionamento entre os militares privados e as Forças Armadas de Defesa de Moçambique. Alega-se que a DAG foi contratada pela Polícia e está sob gestão do Comandante Geral da Polícia e não do Ministério da Defesa[12].

 

No último ataque a Mocímboa da Praia, que culminou com a ocupação da vila-sede, incluindo a base naval local, reporta-se que os militares ficaram sem munições porque a DAG não conseguiu levar munições de Pemba a tempo de abastecer as FADM em combate. E¸ quando as levou, deixou-as longe da posição das FADM e acabaram ficando nas mãos dos insurgentes.  

 

A mais recente emboscada sofrida pelas FADM custou a vida a pelo menos 29 militares de uma Companhia de Força de Operações Especiais. O ataque, de tipo emboscada, ocorreu no domingo¸ 29 de Novembro, na Aldeia de Matambalane, distrito de Muidumbe contra uma coluna de viaturas que transportavam os militares. Ataques desta natureza podiam ser evitados com sistemas de vigilância sofisticados que se esperava fossem usados pelas empresas militares privadas.

 

E¸ tal como de costume, o Governo não comunicou a morte de aproximadamente três dezenas de militares de uma só vez. A tragédia passou despercebida para a sociedade, com o potencial de relegar os militares tombados em defesa da Pátria ao esquecimento. O CIP teve acesso à lista dos militares da Companhia de Força de Operações Especiais que tombaram em combate. Por uma questão ética deontológica, não iremos publicar os seus nomes.

 

Notas conclusivas

 

O recurso a empresas militares privadas pelo Governo para combater a insurgência em Cabo Delgado mostra-se uma decisão de alto risco e ineficaz. Para além da falta de transparência e de prestação de contas sobre os contratos¸ as empresas militares privadas não conseguem travar o avanço dos insurgentes que têm estado a ganhar mais espaço no terreno com ataque e ocupação de sedes distritais.

 

Há ainda sinais de mau relacionamento entre as empresas militares privadas e as Forças Armadas de Defesa de Moçambique devido ao facto de as PMCs estarem a trabalhar com a Polícia, cuja vocação não é de combater a insurgência. Notam-se ainda casos de difusão do poder militar entre as FADM e a Polícia, esta última com apoio das PMC, o que pode gerar uma crise institucional entre a Polícia e os militares.

 

A emboscada e morte de dezenas de militares mostra que as PMC não trouxeram contributos positivos para o aumento da capacidade das Forças Armadas em termos de vigilância das manobras do inimigo.

 

Deste modo¸ recomenda-se ao Governo a reconsiderar o recurso a serviços das PMC após estas terem mostrado incapacidade para ajudar a conter a expansão dos ataques dos insurgentes. Por outro lado, a Assembleia da República, através da comissão especializada, a Comissão de Defesa, Segurança e Ordem Pública deve inquirir o Governo sobre os contratos das PMC em Moçambique, para a devida prestação de contas.(Borges Nhamirre, CIP)

 

[1] DW (2020), Moçambique adquire apoio militar privado para combater terrorismo – imprensa, disponível em https://amp.dw.com/pt-002/moçambique-adquire-apoio-militar-privado-para-combater-terrorismo-imprensa/a-55894478?__twitter_impression=true [consultado a 11 de Dezembro de 2020];

 

[2] Cfr. Artigo 94, alínea e), do Decreto n. 5/2016 de 8 de Março

 

[3] MEF, Relatórios de Execução Orçamental Janeiro a Dezembro 2017 – 2019 e REO Janeiro a Setembro de 2020.

 

[4] SIXTO, D (2020), Russian Mercenaries: A String of Failures in Africa, disponível em https://www.geopoliticalmonitor.com/russian-mercenaries-a-string-of-failures-in-africa/ [consultado a 11 de Dezembro de 2020];

 

[5] Carta de Moçambique (2019) Cabo Delgado: Mercenários do Wagner Group regressam ao “teatro de operações”, disponível em https://cartamz.com/index.php/crime/item/3801-cabo-delgado-mercenarios-do-wagner-group-regressam-ao-teatro-de-operacoes [consultado a 11 de Dezembro de 2020];

 

[6] Ndlovu, M. (2020) Mozambican government hires Zimbabwe retired Colonel?, in Bylawayo24 News de 20 de Abril de 2020

 

[7] Zitamar (2020), Mozambique extendes DAG mercenary contract for Cabo Delgado War, disponível em https://zitamar.com/mozambique-extends-dag-mercenary-contract-for-cabo-delgado-war/ [consultado a 11 de Dezembro de 2020];

 

[8] LUSA (2020) Autoridades moçambicanas recuperam controlo de Macomia anuncia governador de Cabo Delgado, disponível em https://observador.pt/2020/06/01/autoridades-mocambicanas-recuperam-controlo-de-macomia-anuncia-governador-de-cabo-delgado/ [consultado a 11 de Dezembro de 2020];

 

[9] LUSA, Instituições do Estado no distrito de Quissanga encerradas devido a ataques na província, disponível em https://observador.pt/2020/07/08/instituicoes-do-estado-no-distrito-de-quissanga-encerradas-devido-a-ataques-na-provincia/ [consultado a 11 de Dezembro de 2020];

 

[10] Avant, D. (2004: 155) The Privatization of Security and Change in the Control of Force. Blackwell Publishing: MA, USA;

 

[11] Abrahamsen, R. and Williams Michael C. (2007: 139) Selling security: Assessing the impact of military privatization. Routledge: Aberystwyth, UK;

 

[12] LUSA (2020), Governo de Moçambique adquire apoio militar privado na África do Sul para combater terrorismo, disponível em https://www.rtp.pt/noticias/mundo/governo-de-mocambique-adquire-apoio-militar-privado-na-africa-do-sul-para-combater-terrorismo_n1281824 [consultado a 11 de Dezembro de 2020]

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