Pacientar é um neologismo muito utilizado em Moçambique. Não carece de explicação, porque a sua composição é esclarecedora. Este, em alguns meios que explicarei mais adiante, funciona em paridade com a expressão amarrar capulana. Esta última expressão, paradoxalmente ambígua, nuns contextos significa recato (para a mulher) ou seja, não atiçar “os apetites” dos homens para uma relação sexual. E tem-se educado a mulher moçambicana que amarre capulana. Mas, também, significa ter força, aguentar-se, ser corajosa, i.e., pacientar. E é este segundo sentido dessa expressão que me interessa abordar neste texto. À mulher moçambicana tem-se pedido que seja paciente e forte, tanto na sua vida enquanto ser biológico com esse género, como enquanto esposa. Ela deve aguentar com tudo! Tudo!
Todo esse introito vem a propósito da celebração do dia 7 de Abril, Dia da Mulher Moçambicana, criado em homenagem a Josina Machel (1945-1971), que se casou com Samora Machel, primeiro Presidente da República Popular de Moçambique. Segundo reza a história, morreu, acometida por doença, enquanto combatente da luta de libertação nacional. Sobre ela, a maioria de nós só conhece três factos: o de ter lutado pela independência de Moçambique, ter sido esposa de Samora Machel e ter tido um único filho. Este último aspecto (o de ser mãe), aliado ao se ter casado são muito valorizados na vida de uma mulher moçambicana. Tenho referido, citando Raul Altuna, que o casamento e a fertilidade são dos aspectos mais importantes na vida de um bantu.
Há dias, escrevi um texto no Facebook, questionando a razão pela qual, no âmbito das celebrações dessa efeméride, o Dia da Mulher Moçambicana, tem-se perguntado às mulheres “o que é ser mulher moçambicana”. De um modo geral, tem-se respondido que a mulher moçambicana é guerreira. É aquela que acorda cedo, para lutar pelos seus objectivos. Ou aquela que cuida da família. Ou ainda, aquela que amarra capulana. Este protótipo e estereótipo são, para mim, avassaladores.
Em resposta ao meu post, Gizelda Barreto, reforçou a minha inquietação dizendo, e cito:
“No meu tempo, ser mulher moçambicana é aquilo que diz o Hino [da mulher moçambicana]: é aquela que produz, que alimenta o combatente, aquela que ergue alto o farol da liberdade, aquela que diz ao mundo inteiro que a nossa luta é a mesma, é a mulher moçambicana emancipada, que destrói as forças da opressão. Mas isso é a mulher moçambicana de 60/70…Depois de 76 perdi o desenvolvimento do conceito. Depois dos anos 80, ajudamos a construir as forças de opressão”.
A resposta da Gizelda desencadeou este texto, porque acredito que andemos “a construir as forças de opressão”. Tenho, entretanto, muito respeito por todas as outras respostas que lá foram colocadas, como por exemplo as de Luísa Astrid e Edson Chichongue. A primeira disse, grosso modo, que a resposta dada pelas mulheres à pergunta em questão, advém da necessidade que elas têm de celebrar esse dia como o do alívio da sobrecarga que têm no seu dia-a-dia. O segundo referia que as massas actuam quase sempre do mesmo modo e que isso é explicado pela teoria hipodérmica. Aceito.
Voltando à Josina Machel, ao aludido hino, de cor, pela Gizelda Barreto: questiono se não haverá outras qualidades de Josina Machel que valeria a pena, nos dias que correm, enaltecer, para além da sugestão de que foi guerreira? Palpita-me, pelo Hino da Mulher, que ela lutou para “destruir as forças da opressão”. Porque razão é que não arranjamos um outro discurso que saia do registo de se ter que ser guerreira (embora, de facto, a mulher esteja sujeita a muitas jornadas para ser valorizada do mesmo modo que os homens), para estimular as pessoas à ideia de que as lutas podem ser feitas de outras maneira; como por exemplo, utilizar o poder da mulher com suavidade, como o disse, num programa de televisão – alusivo à referida efeméride, uma moçambicana, a Letícia N´zualo, que tem tatuado no seu corpo a frase: “Ser suave também é ter poder”? Julgo haver outras formas de disputa, para nos libertarmos da opressão ou para atingirmos a liberdade ou sermos menos sobrecarregadas pela vida.
Se as armas não conseguiram ainda libertar-nos, parece-me sensato partirmos para outros modelos. Não diria que sejam fáceis, mas são outros. Podem imprimir novas dinâmicas. A mecânica da opressão ou o acordar mais cedo que o homem e carregar os fardos da casa, não me parecem saudáveis. Quem sabe, educando o homem para participar desse acordar cedo em conjunto, resulte? Será utópico? Têm morrido muitas mulheres, vítimas de “carregar o lar/a casa” (a tal sobrecarga referida por Luísa Astride); ou a tal ideia de se ter de pacientar ou amarrar capulana. Afinal essa não deveria ser uma tarefa conjunta? Qual é a razão de uma ser guerreira e o outro só colher os frutos ou automaticamente ter direitos? Por que razão é que a maioria dos homens também não pacienta? Ou por que razão é que já nasceram com direitos adquiridos e as mulheres com deveres imutáveis?
Então, é no âmbito dessa peleja que me aparece a ideia de que um outro paradigma, que não deve ser novo, deverá ser e cuidar do diálogo. E essa ideia pode ser inspirada em Simone De Beauvoir, Gayatri Spivak e Carl Jung. Um parêntesis importante é o de que, nessa semana da mulher, decorreu numas das salas da Universidade Eduardo Mondlane, na Escola de Cultura e Arte (em Maputo), uma palestra sobre Beauvoir, ministrada por Guilherme Mussane, um docente dessa escola e isso trouxe-me a ideia de que haja quem esteja atento à importância de se discutir outros paradigmas ou outras formas de se “ser mulher”.
Beauvoir defende que género é uma categoria socialmente construída. Entenda-se género como a atribuição de papeis sociais em função do sexo, que segundo a autora é uma criação para oprimir a mulher (ela apresenta como exemplos disso o relegar-se a mulher ao trabalho doméstico e ao cuidado com os filhos). Recordo que Simone escreveu a obra O Segundo Sexo, em 1949, de onde essas ilações podem ser tiradas. Se esses papeis ou essa opressão são socialmente construídos, também podem ser socialmente “retrabalhadas”: Não diria destruídas, mas, ao menos, deixar-se a possibilidade de escolha de cada um seleccionar o que deseja, independentemente da prisão no sexo biológico.
A questão geral colocada por Spivak é se o subalterno pode ter voz. No seu texto “Pode o subalterno falar”?, publicado em 1985, critica a questão da violência epistémica que dá supremacia aos saberes do Ocidente, em detrimento dos do Terceiro Mundo. A escritora elabora, na sua análise, que há algumas ressalvas a serem estabelecidas. Se há alguém do Primeiro Mundo a falar pelo outro do Terceiro Mundo, fica algo mais por ser dito, uma vez que, seja em defesa ou não do inferiorizado, é importante que o visado fale por si. Para esta autora o “lugar de fala” é fundamental. Dizendo de modo simples, é mais fácil alguém explicar, pessoalmente, o modo como os sapatos lhe apertam os calos, do que alguém a explicar como é que seria se fosse com ele. Refira-se que o contexto tem a ver com factos e não com representação ficcional. Ou seja, a mulher moçambicana precisa de ter o seu “lugar de fala”.
Já Jung, na sua obra Os Arquétipos e o Inconsciente Colectivo, afirma, entre outras coisas, que este é constituído por formas de agir herdadas de ancestrais (são pensamentos e modos de agir partilhados colectivamente), que são diferentes do inconsciente pessoal; este último é um conjunto de ideias reprimidas ao longo da vida de um indivíduo. Esses pensamentos são exclusivos desse indivíduo e o modo como são arquivados na sua consciência dependem das suas experiências de vida. Manifestam-se de modos diferentes em cada indivíduo. Se pensarmos na ideia de deixar um mundo melhor para as mulheres, a mim parece que valeria a pena construir um inconsciente colectivo baseado na suavidade com que mulheres e homens podem construir um mundo melhor, sem opressão e sem seres subalternos; porque, dependendo de como a ideia de inferioridade for criada, nas mulheres, por exemplo, a sua superação é variável, em função de ultrapassar ou não o trauma causado. E em função do que já instituiu colectivamente. Por isso é que seria vantajoso um trabalho colectivo para suavizar o mundo.
A questão que se coloca é que desde há muitos anos está criada a ideia de que as mulheres devem ser guerreiras, devem fazer o dobro ou o triplo do que o homem faz, para terem o seu “lugar ao sol”. Poucas são as que têm possibilidade de partilhar a dor que sentem nesse papel de subalternas e a poucas é colocada a possibilidade ou a verdade de que se pode viver de um modo diferente, numa condição de igualdade; daí a ressonância de se ser guerreira, sem se reflectir que existem outras possibilidades de luta ou que poderia existir a possibilidade de ser dado à mulher um mundo de possibilidades adquiridas como as do homem, a de não terem de pacientar, nem terem de amarrar capulana.
Ou por outra, sobre a Josina Machel, às tantas, poder-nos-iam ser ensinadas outras qualidades suas; por exemplo, o que esteve por trás da ideia de se juntar ao Movimento de Libertação de Moçambique, acreditando que a par do homem tinha possibilidades de defender o país. Não tenho nada contra a celebração de seja qual for a efeméride, mas tenho, sim, contra o facto de se relegar apenas a essa efeméride a possibilidade de se usufruir, plenamente, da alegria por trás da data. E, consequentemente se enaltecer o lado do se ser “guerreira”. Além disso e, nos dias que correm, algumas mulheres têm até desvirtuado a alegria com que se celebrava a data, fazendo coisas que nem elas próprias em sã consciência aprovam. Tem havido alguns excessos na diversão de comemoração da data.
A par dos grandes slogans sobre o ser mulher moçambicana há outros excludentes: os de que ser mulher é ser mãe ou que ser mulher é ser-se boa esposa. O que é das mulheres que não concebem ou que não se casam? Serão menos mulheres ou serão menos moçambicanas? É que em algumas sociedades moçambicanas quase que nem se admite a ideia de se escolher não se ser mãe ou se escolher não se ser esposa. Li, para efeitos de escrita do presente texto, uma breve biografia de Simone de Beauvoir. É considerada uma grande intelectual no mundo. Teve uma filha adoptiva. Diz-se que teve um companheiro até ao fim da sua vida e não se casou por escolha própria. Viveram no chamado “relacionamento aberto”. Esta mulher questionou os papeis atribuídos ao género, assim como o casamento tradicional monogâmico e nem por isso foi menos mulher.
*Sara Jona Laisse é docente da Universidade Católica de Moçambique e membro do Graal-Movimento Internacional de Mulheres Cristãs. Contacto: Este endereço de email está protegido contra piratas. Necessita ativar o JavaScript para o visualizar.
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