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terça-feira, 26 março 2019 09:14

Mais de 60 mil com malária e febres e sob o risco da cólera

A passagem do Idai deixou um rastilho de diarreias e malária na Beira, e a probabilidade de ocorrência da cólera é enorme. Um surto de doenças que as autoridades, na manhã de domingo, apontavam como “inevitável”e que já contava com 68186 vítimas e pouco mais de 100 óbitos.

 

Os números são do Hospital Central da Beira (HCB), do Centro de Saúde da Munhava, Ponta Gêa, Inhamizua e Cerâmica. Só o HCB registou, após a tragédia, 2558 crianças com menos de cinco anos com casos de malária, 1798 com diarreias. O Centro de Saúde da Ponta Gêa, por exemplo, atendeu 771 crianças da mesma idade com malária e 1355 com diarreias.

 

Moçambique é o país com a terceira maior percentagem (5%) de casos de malária no mundo e o oitavo onde a doença mais mata (3% do total de vítimas), segundo um relatório anual divulgado pela OMS. Funcionários da Saúde apenas dizem que “há muitas mortes e inúmeros casos de cólera”.  Mas um especialista em epidemiologia garantia ontem que ainda não havia evidências de cólera, que testes estavam a ser feitos mas que as condições de sanitárias eram altamente precárias e que a eclosão da doença era tida como inevitável.

 

O destino dos Celsos...

 

Enquanto Celso Correia afirmava, no Aeroporto da Beira, rodeado de jornalistas, que era “inevitável” que surgissem “casos de cólera e malária”, outro Celso, noutra ponta da cidade, recorria à sobras de estacas, madeiras e pregos desprendidos das casas de construção precária, pela fúria do Idai, para construir um caixão para a filha menor, “vítima de cólera”. “O pior que pode acontecer a um homem é enterrar uma filha deste jeito”, refere. Não sobrando espaço para a dor, “é preciso continuar a viver…tenho uma casa por reconstruir”, diz.

 

Celso não é o único cidadão nessa situação, na linha divisória entre a cidade de cimento e a Praia Nova, um dos bairros mais afectados pelo Idai. Um grupo de jovens também constrói um caixão nos mesmo moldes. É para uma mulher adulta, mas não deve ter mais do que um metro e meio, é estreito e com pequenas aberturas na base. É o caixão possível.

 

No interior do bairro, deitado num catre, Paulo vira-se e revira-se para encontrar uma posição menos sofrível, um exercício inútil naquele cenário dantesco. As febres altas e os vómitos, com semanas de duração, já anunciavam coisa pior. A sua casa continua intacta, como se o ciclone, ciente do seu drama, tivesse sido assomado por uma crise de compaixão.

 

Jaime, por sua vez, tenta concertar uma chapa retorcida pela força do Idai enquanto, do outro lado, a maré caminha triunfante pela terra adentro, anunciado uma desgraça futura. As quatros estacas onde vai colocando as chapas para desempenharem o papel de paredes foram aproveitadas do que sobrou dos escombros. A casa, essa, não passa de um exercício de fé e a maré cedo ou tarde vai acabar por mostrar-lhe que ali já não é lugar para viver.

 

Celso, Paulo e Jaime compõe uma parte ínfima dos rostos da tragédia na Beira. Antes do Idai, a percepção entre as autoridades da Saúde, era a de que manter distante o rasto da cólera já não era uma prioridade. “Quiçá não se recordam do que seja cólera. Um só caso tem um grande potencial epidémico”, ressalta um responsável dum centro de acolhimento que nos lembra que não há autorização para falar.

 

“Especialmente com as condições sanitárias que temos aqui, não temos escolha para não combater a cólera e outras doenças imediatamente”, refere um membro da Associação Moçambicana de Enfermeiros. “O que fazemos agora é o mínimo que se pode fazer. Mas cada vez que chove, a cólera renasce”, lembra.

 

O caso da cólera, no qual as inundações após a passagem do Idai afogaram os avanços da Saúde ao largo de seis anos, ilustra bem porquê os agentes da Saúde e as ONG sentem-se como o mitológico Sísifo, arrastando esforçadamente a pedra montanha acima, somente para ver como volta a rodar rumo ao chão. Há cólera e mortes na Beira, mas os dados das autoridades de Saúde, como ilustram as imagens, mostra que tudo é registado como diarreias e malária. (Rui Lamarques)

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