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quarta-feira, 28 novembro 2018 03:00

A raça é apenas uma mentira. Mas são muitos os que nela ainda acreditam

Preconceitos e polémicas em Dresda para uma exposição que recorda aos visitantes não apenas as aberrações do passado colonial mas também a persistência das discriminações. Os grupos xenófobos, muito aclamados na Saxónia, não concordam com a proposta.

As raças humanas não existem. Não há nenhuma séria evidência científica na divisão do género humano em diferentes grupos raciais, a partir dos aspectos exteriores como a cor da pele, a estrutura corporal, a língua. Na realidade, a ideia de raça é uma construção, uma ideologia que surgiu no tempo do Iluminismo e que, durante dois séculos, serviu para justificar a escravatura, a submissão e o saque, utilizando largamente os instrumentos da ciência. Mas, para além de ser uma ideologia do passado, recusada e desprezada pela narração maioritária das sociedades modernas, o racismo é igualmente uma prática diária que vê milhões de pessoas discriminadas ou serem objecto de violências.

Parte desta premissa, levantando debates, polémicas, bem como reacções indecentes, a exposição Racismo, a Invenção das Raças Humanas, que está aberta, até ao próximo dia 6 de Janeiro de 2019, no Deutsches Hygiene-Musem de Dresda. Sob a curadoria de Susanne Wensing e um acervo de 400 peças, entre instrumentos, moldes de gesso, filmes, fotografias, desenhos, documentos pseudo-científicos (como as tábuas de Cesare Lombroso), o certame não representa apenas o relato pontual de métodos, protagonistas e passagens históricas através dos quais a imensa mentira racista adquiriu vida própria, exercendo um poder nefasto e propagado. Mas constitui também uma sentida reflexão sobre a actualidade, que levanta questões ainda sem resposta: o que nos separa? O que nos une? Como gostaríamos de viver juntos?

A exposição de Dresda é uma exposição difícil. Acima de tudo por causa da cidade onde se realiza e, em consequência, pelo edifício que a acolhe. Com efeito, a capital da Saxónia é o lugar de nascimento da Pegida, o movimento anti-islâmico e anti-imigração que cada segunda-feira junta enormes aglomerados de gentes na Theaterplatz, tendo-se tornado a referência cultural e pré-política obrigatória de todos os que na Alemanha recusam a sociedade aberta. Além disso, o Land é a fortaleza reconhecida de AfD (Alternative für Deutschland), o partido de extrema direita xenófoba que nas últimas eleições federais conquistou mais de 27 por cento dos votos, segunda maoir força política depois da Cdu da Chanceler Ângela Merkel. Mas um terreno escorregadio para a exposição é oferecido pelo próprio Deutsches Hygiene Museum, inaugurado em 1912 na época imperial, para educar o povo sobre os temas da saúde e que, na realidade, esteve virado desde o início para a busca da higiene racial. Ao ponto de, quando os nazi subiram ao poder em 1933, tornou-se, imediatamente e sem grandes traumas, instrumento privilegiado do ensino racista e antisemítico do regime de Hitler, teatro de exposições como Sangue e Raça ou O Povo Eterno. Neste sentido, a reflexão sobre o racismo é também uma reflexão crítica sobre o próprio passado.

Esteve claro desde o início o quão pesado era o clima. Quando em Dezembro passado o Director do Museu, Klaus Vogel, apresentou na televisão o projecto pronunciando a frase "as raças humanas não existem", foi alvo de uma onda de insultos e ameaças nas redes sociais. Contudo, reitera Vogel, a exposição não pretende ser um desafio para quem protesta na praça com Pegida ou quem vota no AfD mas é, pelo contrário, "uma tentativa de tormar claro aos visitantes que o racismo é, ainda hoje, algo enraizado na nossa sociedade, procurando, assim, fazer com que se possa reflectir sobre as razões da mesma recusa dos outros". Dividida em quatro secções, a mostra parte dos começos da pesquisa sobre as raças no século XVIII. Estão presentes as tábuas sobre as "variedades humanas", de Johann Friedrich Blumenbach, que inventou a divisão entre caucasianos, mongóis, etíopes e por aí fora. No topo da escala, obviamente, os brancos europeus, o tipo caucasiano, uma definição ainda hoje utilizada nos balcões da imigração da América do Norte. Até mesmo a tríade liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa valia apenas para uma porção limitada do género humano, a branca do norte: assim, o retrato a óleo do único negro que participou na Convenção de 1793, o senegalês Jean-Baptiste Belley, representa este escravo liberto em vestes elegantes de deputado, encostado ao busto de um escritor, mas com a mão na braguilha, onde se nota um grosso inchaço, sinal inequívoco da sua incivilidade.

O segundo espaço da exposição é dedicado ao Museu e à sua história não gloriosa, ou seja, uma autocrítica feroz sobre o papel que teve na difusão do mito da superioridade racial. Foi em Dresda que em 1933 teve lugar a primeira exposição itinerante sobre a "arte depravada", na qual se pode apreciar o maravilhoso retrato a óleo de Oskar Schlemmer, pintado em 1914 por Ernst Ludwig Kircher. E foi numa destas salas que em 1939 foi organizada a Deutsche Kolonial-Ausstellung, uma impressionante síntese das ambições colonialistas e suprematistas da Alemanha. O período colonial é precisamente o enfoque da terceira parte da exposição. Não apenas a alemã, naturalmente, visto que na segunda metade do século XIX a ideologia racista alcançou uma dimensão geopolítica, tornando-se um dos traços fundamentais da ordem mundial. Aí encontram-se todos os dispositivos das teorias pseudo-científicas, das representações, das classificações etnológicas, das pesquisas que acompanharam e justificaram o domínio do mundo por parte do Ocidente branco, em nome da sua superioridade. Até os mapas geográficos eram elaborados ao serviço do imperialismo, com a Europa desenhada maior do que as suas dimensões reais e as terras vizinhas ao Equador quase reduzidas a miniaturas.

Finalmente, a actualidade ou, se prefirmos, a banalidade do racismo do dia-a-dia, onde vídeos e filmes contam experiências de vida vividas, tais como a entrevista de John e Joshua Kantara a Theodor Wonja Michael, 93 anos, afro-alemão, que volta a percorrer um século de racismo na Alemanha a partir da sua extraordinária perspectiva. Ou como o vídeo-instalação de Barbara Lubich, artista italiana de Dresda, que coloca os visitantes em comparação com os seus próprios clichés. Lubich mostra as fotografias (em três poses diferentes) de cinco pessoas de diversa origem e, separadamente, oferece três hipóteses de biografias. Apenas uma destas é a correcta. A questão é qual destas biografias pertence a qual pessoa. O mistério é resolvido no fim. E quase todos se enganam. «Quero que se confrontem com as suas próprias expectativas e os seus próprios preconceitos».

A exposição pretende obviamente contrastar o racismo, e não exibi-lo. Mas nunca é fácil mostrar os estereotipos (e as salas do Deutsches Hygiene-Museum estão repletas deles) de modo crítico, evitando reproduzi-los. Em Dresda o risco estava presente, tanto mais que ninguém do grupo inicial dos organizadores tinha tido experiências pessoais de discriminação ou era originário de países africanos. De maneira que, na fase final da preparação, foi criada uma comissão científica formada por activistas, pesquisadores e outros extra-comunitários, que voltaram a ver a preparação, decidindo alterações e comentários acrescentados sob várias formas a muitos dos objectos expostos ou até eliminando alguns, como os restos de ossadas humanas. Mas sobretudo sugerindo toda a parte dedicada à actualidade. Mudaram até o título: o original era Racismo. Um fantasma. Só Racismo, sugeriram. «Para eles — afirma Susanne Wernsing — esse não é um espectro, pois, quando de manhã apanham o transporte público, ouvem os comentários ou os insultos que são formulados nas suas costas».

Artigo publicado em "La Lettura", magazine literário do Corriere della Sera, no dia 10 de Junho de 2018

 Paolo Valentino, correspondente do Corriere della Sera em Berlim

| tradução: Matteo Angius

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