Na semana passada, uma mensagem de WhatsApp circulou, viral, pela net fora, sendo consumida vorazmente pelos utentes daquela rede social. Era o relato do drama de uma família que teve uma paciente internada no famigerado Hospital Privado de Maputo (HMP).
Quase cinematográfico, o enredo juntava dor, chantagem e morte. Uma mulher foi internada, melhorou (e sua conta subiu drasticamente) e depois virou óbito (quando a família revelou dificuldades de juntar as somas cobradas). Mesmo depois do óbito, o HPM insistiu na cobrança, como o cobrador do fraque...com seu bisturi apontado para uma veia jugular da doente. Os detalhes dessa vergonhosa trama estão descritos num artigo de “Carta” nesta edição. Mas, são factos que em Moçambique repetem-se ao longo do tempo, com personagens diferentes.
O problema – métodos funestos que as clínicas usam para cobrar preços exorbitantes pelos seus serviços médicos – tem barbas. Ele decorre da ausência de regulação. Com a introdução da economia do mercado, em meados da década de 80, Moçambique foi liberalizando actividades que eram, então, da exclusiva alçada do Estado. A propriedade de clínicas privadas e o exercício da actividade médica foram liberadas.
Ao longo dos anos, clínicas privadas cresceram como cogumelos, mas o Estado nada fez para impor ordem na sua actuação, mormente no que diz respeito à regulação da oferta de procura de serviços médicos, especificamente na determinação dos preços dos actos médicos.
Nos seus primeiros anos, as clínicas privadas usavam como referência os preços praticados na RAS, fazendo tábua rasa da diferença do poder de compra entre os consumidores dos dois mercados. Mas assim foi...que o próprio Estado foi arrastado para essa perversão, usando de um artífice qualquer para abrir uma clínica com preços de privado no serviço público, concretamente no Hospital Central de Maputo.
Ao longo dos anos, a falta de regulação oficializou uma selvajaria que se foi sedimentando nas barbas de um Estado ausente, de Governos incompetentes e de uma Assembleia da República completamente à leste do problema. Chegamos a este ponto de pandemia ética. Cada clínica tem o seu precário, carcomendo as poupanças dos seus utentes, que não têm onde se queixar, nem na Provedoria de Justiça, cuja função de advocacia para a melhoria de quadros regulatórios é quase nula.
Se as nossas elites políticas quisessem, o Governo já teria posto alguma ordem no precária dos actos médicos. Mas não, essas elites são tratadas em hospitais de fora do país (embora a epidemia do Covid 19 tenha mostrado que essa saída tem limites). Por outro lado, no advento do associativismo, era esperado que as organizações de classe no sector dessem um contribuído para varrer a podridão.
Mas nada! A Associação dos Médicos de Moçambique (AMM) tem sido uma nulidade nesse sentido. Era ela que devia chamar para si a prerrogativa de estabelecer, anualmente, um precatório para os actos médicos em Moçambique, numa perspectiva de auto-regulação. É assim que se faz na RAS. No país vizinho, todos os anos a associação dos médicos local determina os preços para cada acto médico.
Em Moçambique chegamos à aberração de o Instituto do Coração vir divulgar seu precário, como fez recentemente, num fingimento de transparência que só acontece em país desgovernado: cada clínica tem o desplante de marcar seu próprio preçário, sugando o pobre bolso dos moçambicanos. Este vazio ético se estende ao papel esperado da Ordem dos Médicos de Moçambique. Mais de 15 anos depois dela ter sido estabelecida, ainda não fez o suficiente para que o seu Código de Ética Médica fosse aprovado pela Assembleia da República.
Mas chegou a altura de dizer basta! As novas gerações que hoje comandam as entidades relevantes da Saúde têm uma oportunidade histórica: reverter esta prática de medicina de rapina que comanda nossa medicina privada. Já chega!