Conheci-o em Boane nos princípios de 1975, vindo das matas após a assinatura dos Acordos de Lusaka. Era jovem, provavelmente na casa dos trinta, e uma das características que lhe notei logo a partida é que ele era frio. Estava talhado para as batalhas mais ferozes, por isso tinha dificuldades em separar as matas da guerra que ajudou a vencer, e os treinos militares para mancebos que vinham da cidade. Foi-lhe confiado o 1º batalhão de instruendos, e em pouco tempo os jovens já falavam de Madebe, um homem temido não só pela rigorosidade de comando, mas sobretudo porque era uma pessoa inesperada. De certa forma rude.
Lembro-me que nos treinos de preparação político-militar, Maurício Madebe usava balas reais para a fase de progressão sobre o fogo do inimigo. Disparava rasante e gritava, avança! E os instruendos avançavam, ou vergados com armas sem munições, ou rastejavam como guerrilheiros. E Madebe divertia-se com a saga, libertando freneticamente a música dos projécteis. Ele era o instrutor mais obstinado, e por conseguinte, formou o melhor batalhão do centro que tinha na cúpula da chefia uma dupla de orcas constituída por Dinis Moyane e Manuel Mandjichi.
Embora eu não pretencesse ao 1º Batalhão, era próximo de Madebe. Havia entre nós uma espécie de empatia. Aos fins-de-semana saía comigo e andávamos por aí num Land-Rover conduzido por um motorista que se tornou cúmplice de nós. Mas há uma coisa que jamais me sai da memória, Maurío Madebe nunca aceitava que eu lhe apertasse a mão. Não apertava a mão de ninguém, mesmo depois dos copos. Fumava cigarros da marca “Havana”, e como ele dizia, era em homenagem a Cuba e a Fidel Castro.
Na semana passada fui ao bairro militar para uma visita de surpresa. A primeira sensasação que tive ao penetrar no dito reduto dos macondes, é de que havia ali um rastilho aceso, e o elemento crucial da dinamite será Maurício Madebe, um búfalo que o ex-presidente Armando Guebuza quis ferir, sem contudo o fazer porque o próprio Madebe avisou que se o fizesse, as consquências seriam por demais fatídicas. E Guebuza acatou o aviso. Temeroso.
Não há guarda na casa de Madebe, nem cão, o que significa que o cão pode ser ele. Um cão que nem é cão, é um búfalo. Transpus livremente o portão do muro de vedação, na esperança de ouvir algum movimento dentro de casa. Na verdade ouvia-se música e reconheci o Casimiro Nyusi cantando “Ximbombo” a um volume moderado. Toquei a campaínha a primeira vez.....nada! A segunda.... também nada! E a terceira foi quando uma voz aparentemente resignada responde, entra!. Era o próprio Madebe, reconheci-o pelo timbre da voz, e pelo sotaque ximanconde.
Antes dse nos saudarmos perguntou-me se “vai um café”. E eu como não desdenho esse estimulante, aceitei de pronto. Perguntou-me ainda se “vai com um cheirinho”, e o “cheirinho” havia de me ajudar a espantar o frio. Caí na fita.
Maurício Madebe treme nas bases. Dentro da sua casa não se ouve nenhum outro som que não seja o “Ximbombo”. As janelas estão todas fechadas e cheira a bafio. Mas o que ainda dá graça a vida do comandante de Boane, é esta mulher que me serve o café. Uma senhora de beleza ilimitada e o meu anfitrião disse-me que era sangue do sangue dele. Nem parece! Madebe ainda vive a guerra, tem uma pistola negligenciada no sofá, e eu perguntei, é para quê isso, comandante? E ele não respondeu.
No fundo a minha pergunta pode fazer sentido. O homem parece movido mais pelas lembranças do que pelo futuro. E a uma pessoa nestas condições, o melhor é não fazer perguntas. De resto ele parece frustrado.
Estranho! Eu podia jurar de pés juntos que, quando o Chefe de Estado e Comandante em Chefe das Forças Armadas diz que o povo deve estar vigilante e deve apoiar o Estado no combate ao terrorismo, está a se referir em relação a todo tipo de apoio. Eu pensava que estar vigilante era fofocar para malta militares e polícias sobre quem tem comportamento suspeito na zona. Pensava que ser vigilante era estar atento às peripécias do inimigo. Pensava que apoiar na luta contra o terrorismo era dar abrigo, comida, água, suruma, aconchego, etecetera, aos militares e polícias para ficarem mais fortes e espertos.
Eu então estava todo convencido que dar informações sobre quem pretende prejudicar os nossos irmãos das Forças de Defesa e Segurança era um acto heróico e condecorado. Juro!!! E, para mim, estar vigilante incluía revelar quem são os traidores dentro da corporação. Do tipo, encontrar uns bradas fardados num Mahindra lá para as bandas de Quissanga e dizer: hei, bradas, vocês sabiam que a Anadarko [Total] manda um dinheiro para vocês e o vosso chefe come sozinho?... e depois sair a correr. Eu pensava que aí então eu já podia concorrer para o Prémio Nobel da vigilância.
Por isso, quando o Canal de Moçambique revelou que havia um contrato entre as multinacionais e o Estado moçambicano sobre um subsídio para os putos militares e polícias e que alguém andava a comer com seus amigos, eu então fiquei radiante. Até já estava a pensar em falar com o Matias Guente para começar a fazer "laives" no Zoom sobre "coaching" de vigilância ou, então, criarmos um instituto superior de vigilância civil com preços bonificados. Quando o Armando Nename depositou 50 meticais na referida conta para apoiar os militares no combate aos insurgentes, vi nele um candidato a professor da disciplina de Vigilância Prática. Afinal, estava enganado!
Hehehehehe... O que eu pensava que era vigilância é, afinal de contas, conspiração. O que eu pensava que era todo heróico é crime de simulação. O que eu pensava que era apoio é segredo do Estado. Estranho isso!!! Um segredo do Estado guardado no sector privado. Um segredo do Estado moçambicano confiado a um gerente de um banco comercial privado com origens portuguesas. Um segredo do Estado com nome de um indivíduo guardado no computador de um outro indivíduo. O que devia ser segredo do M'tumuke passou a ser do Estado. Vai entender!!!
- Co'licença!
É comum ouvir de que Moçambique herdou um Estado atrasado e que a culpa fora o azar de o seu colonizador (Portugal) também sê-lo e assim ter obstruído o desenvolvimento. Nesta visão subjaz a ideia de alguma pena em não se ter explorado ainda mais o país e por mais tempo, porventura desde a chegada de Vasco da Gama, em 1498, e não apenas com a ocupação efectiva nos últimos 72 anos da colonização. Para esta visão, a alternativa que traria desenvolvimento é a de um colonizador rico/desenvolvido (Inglaterra). Assim não foi e ao que parece paira alguma mágoa em não ser a língua inglesa, a oficial de Moçambique.
Em 1975, o facto de Moçambique ter herdado um território com o seu potencial ainda por explorar é visto como fatalidade e não como a oportunidade que o país teve para afirmar, e de raiz, um rumo autóctone do seu desenvolvimento. Aliás, no discurso presidencial do passado dia 25 de Junho, a data da independência, os ganhos reivindicados soam trabalho porque o ponto de partida estava bem próximo de zero e o ponto menos próximo de zero não teve a devida continuidade, mesmo que em moldes diferentes, fora devastado. Ademais, a trabalheira de “Escangalhar o Aparelho do Estado Colonial”, caso este fosse o de um país desenvolvido, eventualmente, e nos tempos que correm, ainda seria uma árdua e soberana tarefa.
Do exposto, transcorridos 45 anos da independência nacional, depreende-se que a inferência de que o actual atraso de Moçambique é por culpa do atraso de Portugal é equivalente a de que o país seria uma forte e pujante economia caso Portugal, à época da colonização, tivesse o poderio da Inglaterra, ou este o colonizador, ficando a dúvida se a sorte de Moçambique seria bem diferente e melhor que a do grosso das independentes colónias inglesas, em particular as de África. Todavia, acredito que seja um lapso a leitura de que a colonização é boa desde que sob a égide de um colonizador rico/desenvolvido e de que na sua retirada, deixe desenvolvimento e não o atraso do colonizado. E também acredito, que já é tempo do atraso de Moçambique assumir uma outra paternidade.
PS: Em uma das suas visitas à Moçambique e antes de ocupar a presidência portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, falando da passagem afectuosa do seu pai por Moçambique, na qualidade de Governador-geral, fez um comentário que mereceu, na altura, um raspanete, salvo erro do “Bula-Bula” (a última página do Jornal Domingo). “O meu pai foi um colonialista bom”, cito o comentário de memória. “Como se o colonialismo fosse algo bom”, cito, e também de memória, o dito raspanete.
Tenho dito incansavelmente que a coisa que mais me preocupa nesta nossa juventude é a falta de foco. Não sei se isso é incompetência ou preguiça ou medo ou negligência ou efeito de álcool e narcóticos ou falta de tempo ou sei lá.
Temos consciência dos inúmeros problemas que nos assolam e também temos consciência que somos nós próprios que temos de resolvê-los. A ideia que está nas nossas cabeças é participar dos fóruns de tomada de decisão para mudar o rumo das coisas. Ou seja, lutar para alcançar o poder para poder discutir os assuntos com uma visão mais contextualizada e realística. Do tipo ser como Eduardo Mondlane: ter consciência dos problemas do país, conhecer o inimigo, desenhar estratégias de combate e eliminá-lo. Mas, infelizmente, não é isso que acontece connosco.
Estou muito preocupado connosco. Quando alcançamos o poder a primeira coisa que fazemos é não reconhecermos os problemas que tínhamos assumido antes de ali chegarmos e pelos quais fomos confiados o lugar. Segundo, criamos problemas fantasmas que nos desviam dos problemas reais. Inventamos assuntos para distraírmos os menos atentos. Terceiro, assumimos que somos os mais sábios e inteligentes do que todos os restantes jovens que estão na periferia do poder. Quarto, queremos comer o poder. Ou seja, sermos os primeiros beneficiários do poder. Dinheiro e mordomia. Quinto, prepararmos a nossa própria reintegração. Achamos que já servimos o país o suficiente que já não podemos fazer mais nada. Damo-nos o direito à reforma precoce.
Falta de foco. O Janfar diz que a nossa Ele-A-Eme, a aviação de bandeira, está muito bem, que está a fazer muito dinheiro e que está a concorrer para "miss universo" de aviões. O Gilberto é esse que já arranjou fantasma dele: o problema do nosso futebol é o nome da seleção. Se for Rinoceronte, iremos ao Mundial. Petersburgo é aquele que consegue criar 400 empregos por dia, em plena pandemia de Covid-19, com aquele seu teorema que acordou Einstein e Pitágoras. A mana Eldevina é essa da cultura e turismo, a qual se gratifica com um disco de Eme-Ci-Rodja e um pacote turístico ao Bazaruto a quem conseguir achá-la mais gorda ou magra. Os jovens que estão no parlamento são aqueles que só estão a contar os dias para se auto-reintegrarem.
Estou a imaginar, se estivéssemos na década de 1960, em Tanganhika, imbuídos do sonho nacionalista de libertar o pais. O que seria de nós? Estaríamos a dizer que o país está muito bem, a desenvolver e o povo a gozar de muita liberdade e paz. Estaríamos a dizer que a escravatura e o xibalo é uma forma mais criativa e avançada de ginástica acrobática para o bem da saúde física e mental. Estaríamos a dizer que o problema do país é o nome Moçambique... porque dizer "Môôô" é uma forma tradicional de assustar crianças. Estaríamos a dizer que o nome Moçambique é muito ingénuo porque começa com "MOÇA" e moça é adolescente... só se for RAPAZmbique. Estaríamos a procurar um nome em extinção, protegido e que vende. Os que venceram na frente de Tete já estariam a se reintegrar e não aceitariam passar à frente de Niassa.
Foco é tudo. Não teríamos malta Josina, Marina, e companhia, porque muitas guerrilheiras estariam a fazer selfies na casa de banho do quartel ou, então, a procurarem xixi de macaco. Não teríamos Samoras, Manyangas, Mondlanes, Guebuza (não, este teríamos) porque muitos guerrilheiros teriam se perdido no mato a procura de gonazololo. Sem contar com aqueles historiadores, físicos nucleares, advogados, e quejandos que se teriam especializado em escovar as botas de Eduardo Mondlane. Nada de sacrifícios, só mordomias. Na hora de atravessar o rio Rovuma, íamos querer sentar na classe executiva da canoa.
Estamos sem foco e os nossos reais problemas desapareceram. Somos uma geração sem problemas.
- Co'licença!
A “Política do Manípulo” é uma das formas de pressão que é utilizada entre nações, e não só, de modo a prevalecer os superiores interesses de quem a recorre. A Rússia é o exemplo paradigmático, aplicando-a com o contrato de fornecimento de gás no seu relacionamento tenso com a Ucrânia. Por cá, ela não é estranha e baste que se lembre da empresa EDM (Electricidade de Moçambique), sobretudo quando o assunto é a manutenção de equipamento, o de clientes com facturas atrasadas, e também, e é recente, em casos incomuns como foi o de um jovem que escalara (por amor?), na Matola, uma das torres de transporte de energia.
Do intróito está claro de que ficar “às escuras” e por força da “Política do Manípulo” é também uma forma de resolução de problemas. E se ainda sobra alguma dúvida, notadamente em relação a sua eficácia, reforço a aclaração com mais dois exemplos, sendo um desportivo e outro eleitoral. No desporto, e cito o basquetebol, quem não se lembra de algumas das suas noites memoráveis às custas do recurso ao manípulo do quadro eléctrico do Pavilhão do Maxaquene e, creio, em algum momento, o da EDM. Nas eleições, particularmente na contagem de votos, consta a ocorrência sincrónica do milagre da multiplicação, e de invejar à Jesus Cristo, com o corte cirúrgico no fornecimento de electricidade.
Contudo, o recurso à “Política do Manípulo”, embora pareça sólida, nem sempre é a solução acertada para os problemas. Assim é, e há mais de três meses, com a pandemia da Covid-19. Sucede que depois que fora accionada a posição “OFF” do manípulo, não se acautelara um conjunto de procedimentos – os ditos esforços nesse sentido -, que propiciassem uma resposta adequada e equilibrada aos problemas que determinaram o apagão, e de que só depois é que se accionaria a posição “ON”. Com o desespero à vista e havendo a necessidade de libertar alguma energia para certas áreas, o Presidente da República, no quadro da 3ª prorrogação do estado de emergência, accionou o manípulo geral, deixando alguns disjuntores na responsabilidade dos timoneiros das respectivas áreas. E aqui, em algumas das áreas, e de tanta escuridão, já ninguém sabe onde localizá-los ou de quem é a responsabilidade por accioná-los e nas condições que se acharem criadas.
Em suma, a fechar, fica o alerta de que trilhar pela “Política do Manípulo”, consciente ou não, nem sempre resulta e o seu recurso, mormente no processo de governação, fora caro, é para quem pode e não para quem quer. Por enquanto, a avaliar o acalorado debate sobre o regresso ou não às aulas, resta-me apenas apelar à calma que a procissão ainda vai no adro.
P.S: A propósito do recurso à “Política do Manípulo”: nos tempos do “Apartheid” na África do Sul e da “Guerra dos 16 anos” em Moçambique, enquanto a EDM emitia “Avisos de Corte” aos seus clientes devedores, a África do Sul fazia “Cortes de Aviso” no fornecimento de energia à Maputo. Tenho de memória esta situação e creio que mereceu, na altura, uma carta do leitor.
Por Luís Loforte
A partir do entendimento quase generalizado de que a mão externa aproveita-se das dissensões internas para os seus desígnios, fácil será entender o ponto de vista do João Bernado Hon'wana. Quem viveu o colonialismo e observou com atenção algumas das suas tácticas, há-de ter observado que os estigmas tribais foram fomentados pelo fascismo com o fito de "dividir para reinar". É um jargão, sim, mas era esse o objectivo.
No Sul e no Centro também abundam esses estigmas sociais. E, como sabemos, os estigmas conduzem sempre à marginalização. Aqui, falo do que julgo saber. No Sul, os estigmas foram sendo esbatidos pelas transferências massivas de funcionários públicos para o Centro e Norte, onde, num meio inicialmente estranho, as famílias foram desenvolvendo sistemas de solidariedade entre elas. Se rongas e manhambanes execravam os changanes, e estes vilipendiavam manhambanes e rongas (que estes até se casavam entre si sem problemas), os encontros no Norte e Centro foram aplacando e silenciando os ânimos. Tendo vivido em Cabo Delgado por muitos anos e à província me liguei para sempre por laços de sangue, posso com toda a segurança dizer que as dissensões entre macondes e mwanis estão a ser amplamente aproveitadas pela mão externa: no tempo colonial, o maconde era o "imundo inculto", e este, hoje (após a Independência), é a expressão da vingança. Só faltava o fósforo!
De resto, nem sempre negociar significa falar em volta de uma mesa, com mediadores ou sem eles. Só gastamos dinheiro com essas mediações!
Na minha modestíssima opinião, "negociar" passaria por implantar um ensino sério e profissionalizante, acabar com a polarização das oportunidades (quem não sabe a que mãos cai sempre toda e qualquer riqueza que por lá se descubra?), desfamiliarizar, despartidarizar e destribalizar as instituições, promover eleições sérias e convincentemente transparentes. Doutra forma, estamos a enganar-nos uns aos outros. Será isso que o João Hon'wana quis dizer?
Já não me lembro exactamente em que termos, mas foi mais ou menos isto que a brigada do primeiro recenseamento da população em Moçambique, em 1980, em Mocímboa da Praia e por mim chefiada, escreveu no relatório a que fomos obrigados escrever. A pobreza, o cansaço mental, a impaciência, a distribuição desigual, a concentração dos poderes nos mesmos, que se reproduziam, já eram, por então, sinais de que um dia seriam o combustível da insurgência. Em 2017/2018, posso ter concluído, exactamente, a mesma coisa, mas agora em fase bem avançada. Posso estar errado! (Luís Loforte)