“Hoje estou aqui/ entre mártires e traidores/ entre bandidos e inocentes/ entre hipócritas e fariseus” (Vera Duarte, Esta canção desesperada)
Apaixonei-me à primeira vista pelo livro Repensar o Estado: para uma social-democracia da inovação logo que o vi, entre tantos, na prateleira de uma livraria, em Bragança, finais do ano passado. Comprei-o e passou a ser meu fiel companheiro de viagem e cabeceira.
A edição que tenho em mãos sai sob chancela da Círculo de Leitores, da autoria de Aghion, P. & Roulet, A. (2012), economistas franceses, tradução de Francisco Telhado, do original Repenser l’État: poer une social-démocratie de l’innovation (Éditions du Seuil et La République des Idées, 2011).
O livro que, em traços gerais, delineia “os contornos de um Estado repensado: Estado investidor, Estado regulador, Estado garante do contrato social e da democracia” (p.145) tem quatro capítulos, sendo o quarto Aprofundar a democracia (pp. 117-143). É nele que me baseio para tecer estas pequenas notas.
Não sendo cientista social, muito menos economista, este acto emana do exercício da cidadania, como os seus próprios autores testemunham, “a liberdade de consciência e de expressão, o confronto das ideias, a possibilidade de um debate contraditório, de pôr em causa um regime, ou até mesmo de derrubá-lo, fazem parte integrante da dignidade humana” (p.117).
O capítulo Aprofundar a democracia tem como principal linha de força a possibilidade de medição da democracia, assente, por sua vez, na democracia como indicador de crescimento, da liberdade, da criatividade e da corrupção. Nestes nós, a meu ver, podem tirar-se importantes lições para a escola moçambicana (uso o termo escola no sentido de educação), embora a reflexão original se refira aos países membros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), em especial a França.
Para atender às necessidades urgentes da nossa escola (nossa porque também faço parte dela, no dia-a-dia, na sala de aulas), entabulamos às premissas do capítulo em recensão, a liberdade, a criatividade e os valores morais que se querem cultivados em Moçambique. Alias, parecem esses fazer um entrosamento com a linha urdida por Aghion & Roulet.
Ao debruçar-se sobre a liberdade, Aghion & Roulet (2012:122) apontam “é um facto que as grandes invenções não se coadunam com o autoritarismo e a hierarquia” e parece essas práticas amararem a nossa escola ao marasmo a que se encontra. Como exemplo, os autores partilham:
Se Larry Page e Sergey Brin, estudantes em Stanford, puderam desenvolver conjuntamente, no âmbito do seu doutoramento, o que viria a ser o Google, foi porque tiveram toda a liberdade para escolher a pista que desejavam explorar e não receberam ordens dos seus «superiores» relativamente a escolha do tema da sua tese.
(Aghion & Roulet, 2012:123-124)
O autoritarismo e a hierarquia empurraram a nossa escola para o círculo do yes man: só a ideia do chefe vinga, só o chefe sabe, o chefe sabe tudo, só o chefe fala, o chefe fala tudo. Na nossa escola quem sabe ou fala mais que o chefe sofre sevícias. Reina, na nossa escola, o culto do silêncio.
O aluno da nossa escola não só não sabe ler e escrever, isso é de menos. O aluno da nossa escola é ensinado a ter medo do professor, a dizer o que o professor quer ouvir, a dizer direitinho ao pé da letra do apontamento. O aluno da nossa escola deve vestir-se bem e não superior ao professor, deve fazer a barba, o cabelo e as unhas, igual ao que o “regulamento” manda. Experimente furar a orelha!
O aluno da nossa escola é um mero reprodutor que não foi ensinado a transformar uma frase activa em passiva, a inverter o sujeito do objecto, a usar da recursividade proposta por N. Chomsky, porque o professor não disse assim. Da noite ao dia, estamos a formar autênticas multiplicadoras, caixas de ressonância, quando bem formadas.
O professor da nossa escola não fala em reuniões, não aponta erros e nem sabe dizer o que pensa em grupos de whatsapp institucionais com medo de não ser promovido ou ser despromovido.
A nossa escola devia ser o laboratório de ideias. Mas as ideias só nascem em espírito e ambiente livres: livres da burocracia excessiva, livres dos lambe-botas, livres dos chefes pro-adulação, livres da censura, livres do medo.
A nossa escola transformou-se em centro de imitação, “pelo contrário, nos setores de ponta, o crescimento das empresas baseia-se na inovação «na fronteira», que implica delegar pelo menos parte do poder decisório, de maneira a estimular a criatividade no seio da empresa” (Aghion & Roulet, 2012:124).
A criatividade só é possível onde não se tem medo de errar, onde não se tem medo de experimentar novas coisas, novos métodos, novas técnicas, na fronteira entre a realidade e a loucura. Este espaço parece cada vez mais longe da escola moçambicana.
A gritante falta de valores morais na sociedade moçambicana é, em grande medida, produto da nossa escola. Numa escola aonde a democracia não está aprofundada não se pode praticar os valores da tolerância, da escuta, do respeito, da cedência, do perdão, do amor ao próximo, da paz. E, em última instância, nesse ambiente não se pode exaltar a pátria.
A nossa escola inverteu os paradigmas: transformou nacionalistas em gatunos, dirigentes em corruptos. A mudança desse quadro, tal como Aghion & Roulet (2012:118) sugerem para uma economia de crescimento, parece estar no aprofundamento da democracia na nossa escola. E isto passa por: (i) um maior grau de democracia e descentralização na gestão da nossa escola – que, por sua vez, propicia a criatividade e o aparecimento de novos paradigmas; (ii) um sistema político mais democrático e menos corrupto, onde os lóbis exercem menos influência sobre os gestores da escola – o que dá lugar à inovação; e (iii) evitar comportamentos de favoritismo ou de clientelismo – o que impede que a escola seja tomada por interesses da casta dos gestores a base de favores e apetências pessoais.
Para fortalecer esse quadro de uma democracia aprofundada, para o qual a escola joga um fator determinante, Aghion & Roulet (2012:129) sugerem que os meios de comunicação social sejam suficientemente independentes para apontar o dedo a práticas políticas duvidosas ou abusivas e que se criem instituições adequadas e dotadas de meios suficientes para avaliar as políticas públicas de forma sistemática, independente e rigorosa.
Enfim, parece aprofundar a democracia na escola moçambicana ser o passo para o povo tomar o poder.
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[1] Linguista, escritor e docente.
A todas e a todos, permitam-me que expresse a minha felicidade por estar aqui na Universidade Lusófona do Porto, para fazer parte da mesa redonda sobre o ‘Associativismo e Cidadania’, na companhia da Cecília Gonçalves, Fátima Cordeiro, do João Russo, do Joaquim Guedes, e do Alberto Magassela.
Ainda no espírito de 8 de Março, é com muito gosto que me dirijo às raparigas, jovens e mulheres, presentes nesta sala.
Antes de começar, permitam-me, de igual modo, agradecer a Índico Associação Cívica de Moçambique, em Portugal, pelo convite.
Como nota prévia, devo confessar que o convite que recebi com muito gosto para ‘cogitar’ sobre ‘Associativismo e Cidadania’ no contexto global é desafiante pois o meu ‘raciocínio’ melhor funciona na lógica local, glocal e global. Todavia, o termo desafiante faz parte de um leque de palavras que se tornaram ‘corriqueiras’ no contexto moçambicano. Espero saber fluir nesta globalidade multi e pluricultural.
Falar de associativismo e cidadania, ou melhor, o que no nosso ‘dialecto’ seria o jargão “activismo”, faz parte da característica ‘social’ do ‘eu’ que pensa no outro, um ‘eu’ que não se dilui na relação com o outro, mas sim que se fortalece e se humaniza cada vez mais na companhia do outro. Para o contexto ‘local’ português, diria: um ‘eu’ que busca aprender e fortalecer com o ‘eu’ multicultural.
A cultura que o activismo, ou se preferirem, que o associativismo e cidadania devem evocar, é a cultura das entrelinhas dos artefactos, a cultura implícita nas capulanas, uma cultura mental imbuída de abertura e aceitação do outro.
Cultura não como uma condição acrítica ou condição pré-lógica, cultura não como polarização. Mas cultura como terapia, cultura como superação, cultura como o bem-estar e bem-ser, cultura como status quo na ciência, cultura como ética, cultura como empatia, cultura como alteridade e cultura como glocalidade.
Actualmente esta temática ganha mais relevância na condição de movimentos sociais, pois hoje, ao que mais se assiste, infelizmente, é o fenómeno do nossismo, isto é, a lógica nós e outros, ou estás comigo ou estás contra mim. Simplificando, vivemos hoje numa época em que se legitimam, de maneira estrutural, as várias formas de intolerância e violência (simbólica) face ao ‘estranho’, ao ‘viente’, ao ‘diferente’. Pois, para uns, a narrativa actual sobre a cidadania pode ser um campo de aberturas analíticas e, para outros, pode ser um campo fechado, linear e sem esperança.
Quando estes dois não comunicam, não procuram uma forma de entendimento, entram para um status quo nocivo que levaria a pontes quebradas, onde, de um lado, tens o eu e do outro lado bem distante tens o outro que pensa de forma diferente e, consequentemente, é visto como o eterno outro a ‘abater’, o que seria o nossimos.
O triângulo euismo, outrismo e o nossismos faz parte das formas (ins)conscientes da fobia pelo diferente, criando assim várias nuances do nossismo, a saber:
Nós produzimos inconscientemente estas formas de ‘medo’ perante ao desconhecimento, que não precisa ser necessariamente físico, pois, muitas vezes, ele está na dimensão mental, cultural e ideológica.
Os discursos dos governantes, dos políticos e dos activistas estão cheios de narrativas acerca da cidadania activa, mas, no final do dia, trata-se de uma cidadania formal ou informal? A zona de conforto está na narrativa da cidadania formal, legislada, aquela que fica bem na fotografia, pois tem um ‘rosto’.
A cidadania informal irrompe do quotidiano, não conhece ‘as leis e as regras’, não tem ‘rosto’, a cidadania informal é rica pelo anonimato, ela é elástica e flexível. Isso faz dela vítima da sua própria condição.
Cidadania é saber ser, saber estar e saber viver com os outros, ou seja, estar online pelo lugar do eu e pelo lugar do outro.
Cidadania pressupõe o eu social, o outro, o grupo, a relação intergrupal que deve ser alimentada pela relação intra-pessoal.
O eu e o outro pressupõem uma comunicação ética e empática, enquanto categorias das nossas relações grupais, pois só somos eu e eles porque existe uma relação com o outro, mas, o que acontece quando não temos a ética e empatia em nome da cidadania?
Riscos ou desafios que devem ser evitados em nome da ‘cidadania’, em nome do ‘associativismo’ e em nome do ‘activismo’, a saber:
Obrigada a todas e a todos
Dos 21 arguidos do processo das “dívidas ocultas”, 11 já estão em prisão preventiva (a detenção de Osvaldo Catela continua a passar despercebida). Ontem foi ouvida a senhora Carolina Reis mas não se sabe se vai ser detida. A PGR corre agora em velocidade de cruzeiro para lograr deduzir uma acusação provisória até o próximo dia 26 de Março, dia em que termina o prazo de prisão preventiva dos arguidos presos a 14 de Fevereiro, caso os advogados não requeiram a instrução contraditória.
A investigação conta agora com mais elementos: buscas efectuadas em residências e escritórios dalguns arguidos recolheram evidências documentais essenciais para a acusação ter forças para enfrentar uma instrução contraditória que promete ser dura. São cerca de 14 mil folhas de processo. Se a 26 de Março, o Ministério Público não conseguir deduzir essa acusação provisória (o que parece pouco provável), a defesa vai exigir a alteração da medida de coação mais grave, a prisão preventiva, para uma mais leve, nomeadamente, a liberdade provisória sob caução.
Mas até agora fica pouco claro se haverá mais detenções. Os critérios usados pelo Ministério Público impedem qualquer futurologia. Aliás, os critérios não são claros. Em Janeiro foi dada a ideia de que nem todos os arguidos iriam ser detidos – alegadamente porque havia quem se predispusera a colaborar imediatamente na investigação, desde o seu início, embora isso não conferisse a qualquer fulano o estatuto de protegido da justiça e de isento de responsabilização.
Mas e depois a PGR passou à fase das detenções propriamente ditas e o que é que vimos?
Quatro perfis de detidos: i) os alegados orquestradores do calote (Nhagumele, Rosário, Ndambi, Leão e Tandane); ii) os receptores directos de subornos da Privinvest (Inês Moiane, Sérgio Namburete e Fabião Mabunda); iii) os receptores indirectos de dinheiro da Privinvest, designadamente pessoas que venderam bens em operações de lavagem de dinheiro (como Sidónio Sitoe); iv) e um último grupo onde cabe uma mistura de arguidos cujo papel se situa entre a gestão de bens comprados alegadamente com dinheiros do calote (como Ângela Leão e Elias Moiane) e o simplesmente desconhecido (Osvaldo Catela).
A questão que se levanta nos meandros mais atentos ao caso é se esta arrumação de perfis corresponde mesmo a um critério mensurável e objectivo ou se o Ministério Publico está a prender com base em outro tipo de critérios completamente insondáveis para a opinião pública. Uma explicação cabal sobre isto é necessária, para afastar nossa tendência imediata de enxergar teorias de conspiração onde ela até não existe, nomeadamente a ideia de que as detenções seguem um cunho eminentemente selectivo.
O problema é que há na lista de arguidos gente com perfil semelhante ao dos arguidos detidos mas que anda à solta. Um exemplo, para não nos limitarmos a já corriqueira menção do nome do ex-Conselheiro Político do Presidente Armando Guebuza, é a figura identificada na acusação americana por "co-conspirador 1".
Juntamente com Teófilo Nhangumele, esta figura, que encaixa no perfil dos detidos que orquestraram o calote, recebeu de subornos cerca de 8.5 milhões de USD, directamente da Privinvest, designadamente em 2013, poucas semanas após o contrato da ProIndicus estar fechado. À luz da delação premida americana, o fulano pode estar isento de responsabilização criminal nos EUA mas em Moçambique também fica isento? Eis, pois, uma questão que merece clarificação imediata. Se a acusação americana foi essencial para a prisão dalguns arguidos por que é que as evidências de que os "co-conspiradores" receberam subornos não são usadas para a sua responsabilização em Moçambique?
Quanto a mim, é fundamental que a PGR divulgue a lista de todos os detidos e explique por que é que uns são presos e outros não. A opinião pública moçambicana está sedenta de transparência também em relação aos procedimentos da justiça. E pergunta-se a si mesma, em todos cantos, com um vozeirão infernal: afinal porquê alguns são detidos e outros se passeiam impunemente?
Se há coisa que não nos podemos queixar é falta de gatunos no governo. Até parece que a cada mandato o governo cessante passa a ser procurado pela Justiça. Parece que a cada cinco anos descobre-se que os antigos governantes eram todos ladrões. É como se neste mandato estivéssemos a colocar na prisão os ministros, governadores, embaixadores, Pê-Cê-As, assessores, directores, secretarias, filhos, etecetera, do antigo governo e no próximo mandato o mesmo vai acontecer com estes que estão a roubar agora. É como se estivéssemos a colher o que plantamos há cinco anos.
Dizia, somos um país de gatunos. Mas atenção: nem todos os gatunos que pululam por aí são de estimação. Os gatunos de estimação não são quaisquer. Nós conhecemo-los. Estão timbrados. Os nossos gatunos de estimação são "Indivíduos" agrupados e codificados em ordem alfabética pela Kroll. Têm selo.
Não misturem os gatunos. Por exemplo, há dias ouvi num café que esse ex-ministro que disse que pagou coisas sem saber faz parte dos gatunos de estimação. Nããão!!! Esse pode ser gatuno, mas é gatuno doutro tabuleiro, não é desse tabuleiro de gatunos de adoração. Grupo desse daí é daqueles que se venderam e se compraram aviões entre si. Depois temos o tabuleiro das embaixadoras, que também é um outro grupo. Essa remessa de larápios pode-se encontrar por aí, em qualquer esquina. Agora, aquele que está com os nossos cunhados é outro nível. É internacional e tem selo da Kroll. Como ele só na China antiga, na dinastia Chang.
São muitos tabuleiros de gatunos. São muitas coleções de gatunos. Cada tabuleiro é uma coleção. Mas a coleção de estimação é a dos "Indivíduos", a nossa relíquia nacional. Neste momento, há muitos grupos em julgamento. Estamos perante um festival de audições e de prisões preventivas, mas o mais importante é não misturar. Não confundir a coleção de Chang com a de Zucula. Chang pertence à bandeja daqueles meninos fosfóricos que estão a brincar de estar presos em Maputo. Esses é que são nossos por afecto. Cada gatuno no seu tabuleiro e cada tabuleiro com os seus gatunos.
- Co'licença!
Os preconceitos de extremos assentam como luva costurada e curtida pela distância entre Cabo Delgado e Maputo, ainda que separados por míseros 2400 km. "Lá onde Judas perdeu as botas" é também lá onde foram inscritas as primeiras pegadas das botas, chinelos e pés descalços que desbravaram o caminho da independência.
Na história política de Moçambique, Cabo Delgado é mui sui generis e ocupa lugar privilegiado em quase todas as páginas, por razões diversas. Ao mesmo tempo em que estamos ligados à Cabo Delgado por inúmeros e viscerais vínculos de história comum, repleta de glórias e vergonhas, desterros e regressos, partilhas e negações, alianças e traições, por vezes, parecemos esquecer que Cabo Delgado somos nós! Mais do que assumir que "Cabo Delgado é Moçambique", como bem dizem os que publicamente expressam suas angústias e solidariedade, importa frisar que este Moçambique de hoje foi possível também por via de Cabo Delgado.
A epopeia de libertação dificilmente se pode narrar sem os marcos e destaques que Cabo Delgado empresta. Se não quisermos recuar demais no tempo e falar dos (in)memoráveis períodos pré-colonial e colonial, podemos ater-nos a alguns eventos que assumiram caracter de marcos da história contemporânea de Moçambique, como o "Massacre de Mueda" (1960) também retratado como último rasgo de resistência pacífica ao colonialismo português. Na sequência, o ataque ao Posto Administrativo de Chai, em Macomia (1964), celebrado pela reputação de ter sido o local onde foi disparado o tiro que teria, oficialmente, aberto o caminho da contestação violenta ao colonialismo que culmina com a independência (1975). Por hora, não importa polemizar e nem disputar a coexistência de versões e representações discursivas sobre estes marcos da "historia heroica'' de Moçambique. Mais ou menos detalhes não tiram a centralidade de Cabo Delgado como um dos principais palcos de actuação e progressão dos guerrilheiros da Frente de Libertação de Moçambique, que ousaram abraçar a onda libertária dos anos 60 e embarcar na "Luta por Moçambique", independentemente das visões e lugares de enunciação da "razão da luta". Cabo Delgado esteve no olho do furacão da "revolução moçambicana" e destacou pela legião de valentes (e nem tanto) jovens que integraram o movimento de libertação de Moçambique (incluindo os que foram expulsos e os que tombaram na jornada).
Apesar de "Teatro de operações" ser parte do jargão corrente na linguagem de corporações militares, cada vez que os porta-vozes da PRM ou FDS ocupam espaços de antena para falarem das ocorrências no "teatro de operações" que Cabo Delgado representa, o mais angustiante é a desinformação sobre os eventos que, novamente, tornam Cabo Delgado, num espaço de violência e simbolismo que, desta vez, rema em direção oposta à nova onda de pacificação e tripudia as promessas de redenção económica do país, pela via dos recursos naturais. Nestas circunstâncias, pela janela que Cabo Delgado representa, Moçambique rende-se ao fatalismo discursivo em que se vaticina a "maldição dos recursos" onde, em tese, se preconiza que a ocorrência de recursos naturais em qualidades e quantidades abundantes e comercializáveis a escala global, e com estruturas políticas relativamente frágeis, é potencial motivo para atrair toda a sorte de abutres, ávidos por injetar o germe da discórdia, semear o caos e tirar máximo proveito, além de despertar o insaciável apetite de cobras e lagartos que habitam em nós e entre nós mesmos!
Após longas batalhas e perfilar de décadas de "vitórias contra o subdesenvolvimento", que não se materializaram; inúmeros planos de conversão da agricultura em "base do desenvolvimento", sem grandes êxitos; décadas de "reestruturação económica", repletas de fórmulas de sucateamento; década de "exaltação do empreendedorismo", com resultados pouco abonatórios; todas elas permeadas por guerras, tensões militares ou seja lá o que quisermos chamar, quando Cabo Delgado redefine-se como polo de exploração de recursos naturais, com potencial de impulsionar o errático projecto de industrialização e desenvolvimento económico de Moçambique - que nunca se recuperou dos excessos e euforias da êxtase da "liberdade", celebrada com gozo no "escangalhamento do aparelho colonial" e promoção do centralismo económico de Estado, através do "socialismo científico" e, mais tarde, quase que abruptamente, abocanhado pelos impiedosos tentáculos da economia de mercado neoliberal - parece que a "sina" de desperdício de oportunidades ataca de novo.
A aceleração do processo de (de)lapidação dos recursos naturais abundantes em Cabo Delgado, menos do que reger-se pela frágil estratégia nacional gás natural liquefeito ou qualquer outro plano de exploração de recursos naturais, desnudou um teatro de disputas entre gigantes e anões de quase todas as tribos económicas globais e locais que jogam as suas cartas, de forma limpa e suja, reacendendo rastos de destruição de que o país precisa desenvencilhar-se.
No arrefecer de Santunjira e na prossecução dos ensaios de reconciliação pós Dhlakama, o escandaloso reavivar de armas, tendo Cabo Delgado como epicentro de inomináveis atrocidades, obscuras nas ideais e ideais que eventualmente pretendem apregoar e, totalmente prenhes das mais vis manifestações do egoísmo humano e do descaso pela vida.
A densa cortina de fumo envolta e atiçada em torno dos acontecimentos de Cabo Delegado, dificultam o descortinar das eventuais razões do terrorismo e do ciclo de extermínio e banimento de comunidades no cinturão dos recursos naturais. O encarceramento e silenciamento de jornalistas, o desestimulo e descrédito à iniciativas de investigação que visam compreender os múltiplos ângulos da quizila, a restrição de acesso e o cancelamento do trabalho de organizações activas no terreno, além de medidas cautelares que incluem a restrição de movimentos, expressam o investimento na supressão de conhecimento das circunstâncias de ocorrência de tão trágicos eventos que só contribuem para a redução da nossa dignidade colectiva como sociedade.
A desinformação oficial (intencional ou não) desde a ocorrência dos episódios que selaram a progressão da saga de destruição, onde as autoridades de tutela se revezam na reprodução de "discos riscados", "está tudo controlado"; "são grupelhos enfraquecidos e quase extintos"; imediatamente seguidos pela multiplicação de ocorrência de relatos de ataques e destruição anarquicamente dispersos por diferentes pontos da província de Cabo Delgado, reforçam a ideia de intencionalidade manipulativa de sonegação de informação, ampliação da cegueira e desligamento da opinião pública sobre a progressão da tragédia. A ignorância que se vende sobre o perfil e eventuais motivos dos insurgentes, instigam-nos a repensar sobre as capacidades instaladas de gerar inteligência de Estado, os métodos e opções de articulação da comunicação Estado sobre problemas e ameaças com potencial de alterar a ordem e segurança pública.
Assim como dificilmente se retém água nas mãos, porosamente, o sangue de mais de duas centenas de cidadãos mortos, entre decapitados, calcinados e esquartejados, escorre dentre o véu da minimização, sulcando novos roteiros, novos distritos, novas localidades e aldeias, feitas presas fáceis que vão alimentado e encorpando o tamanho desse instrumento de destruição que nos faz observar, como quem contempla, impotentemente, num gigante placar eletrónico a progressão do número de vítimas sem que esteja claro um posicionamento de Estado, senão por vagas indicações de que já foram despachados para o "Teatro de Operações" novos contingentes de militares, mais ou menos especializados para conter a progressão do que, por enquanto chamamos "insurgência". Não se demanda que o Estado seja omnisciente, mas que seja capaz de, com alguma celeridade, demostrar capacidade de recompor-se de eventuais surpresas e articular estratégias de entendimento, explicação, actuação e comunicação relativamente consistente e sustentável e não apenas exibir bravatas que se desfazem em menos de uma semana.
Desde Outubro de 2017, mais de duzentas pessoas foram mortas com a mesma crueldade e consistência no modus operandi. Às dezenas, por semanas, atingiu-se a escandalosa cifra de mais de 200 mortos contabilizados, se não forem muitos mais, especialmente se tomarmos em consideração que a subnotificação do número de mortos, independentemente das razões, não é rara em cenários como estes. A Comissão Nacional de Direitos Humanos guarda relatos das atrocidades e registos de violações de códigos de conduta na forma de actuação das Forças de Defesa e Segurança. A Human Rigths Watch regista actos de intimidação de jornalistas pelas FDS. A detenção dos jornalistas Amade Abubacar e Germano Adriano, por alegada "violação de segredo de Estado", evidencia o clima de deterioração dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.
Inequidades sociais e históricas, exclusão económica estrutural, extremismo religioso, expansionismo do terrorismo regional e global, brigas e ressentimentos "interétnicos", atavismos inter-tribais, disputas entre grandes interesses económicos e de controle territorial, sublevações camponesas espontâneas, migrações económicas desusadas, rebelião da juventude frustrada, conspirações dos senhores da guerra, armadilha lançadas por mercenários, prolongamento de disputas de interesses intrapartidário e muito mais, fazem parte do arcabouço de caracterização estereotipada não conclusiva do que se passa no "Teatro de Operações" em que Cado Delgado se tornou. As ofertas e predisposições de "príncipes" para exterminar os insurgentes em três meses, soam a achas à fogueira e pedidos de credenciais para a legitimação da actuação de grupelhos económicos e militares em cenários fartos, quais abutres circundando agonizantes presas.
O obscurantismo que cerca o entendimento da tragédia que se desenrola em Cabo Delgado, na era da informação, é tão despropositado que sequer se presta a função de abrir mentes e "ganhar corações". Quando o PR diz que é tempo de os nossos serviços de inteligência virem dizer-nos o que se passa e, ainda assim, não ter reposta plausível (pelo menos publicamente) talvez seja tempo de rearticular os esforços, ampliar as plataformas de visibilização do tamanho da tragédia, abrir corredores de protecção e assistência às populações deslocadas, potenciar o aproveitamento dos trabalhos das pessoas que vem produzindo reflexões sobre Cabo Delgado e assuntos afins, e reiterar que CD não é terra de ninguém, propriedade privada, cujos dramas e dilemas possam ser tratados somente por debaixo de tapes.
O cerceamento de liberdades de profissionais de comunicação, na era de abertura tecnológica, dificilmente vai prestar-se aos objectivos das táticas adoptadas no passado recente, quando a estratégia de descaracterização dos rebeldes resumia-se em tratá-los como simples "bandidos armados", sem bases sociais e até materiais de apoio e que poderiam ser desmantelados num abrir e fechar de olhos. Não preconizo nenhum repetir-se da história, mas a necessidade de capitalizar do conhecimento histórico sobre as nossas guerras e guerrinhas, ampliar o espectro para novos aprendizados, desviar-nos de chavões ufanistas e triunfalistas do tipo grupelhos já fragilizados e quase acabados e investir na busca e partilha de inteligência para assegurar maior efectividade das escolhas do Estado nas suas formas de actuação nesse trágico "teatro de operações" que se faz de Cabo Delgado. Em tal “teatro de operações”, salvo por melhor elucidação, a única coisa claramente não teatral é o rasto de destruição, de vidas ceifadas, famílias e comunidades destituídas. O resto, urge interrogar, compreender e engajar-nos como sociedade coesa e solidária na preservação da vida, nos esforços de normalização das rotinas das pessoas mais sacrificadas, qual capim em brigas de elefantes.
É tempo de inventarmos qualquer coisa como "década da vitória contra a barbárie" que, a ser bem sucedida, possa abrir espaço para décadas de vitórias pelo que de melhor alguma vez, como país, aspiramos.
Mulher barriguda que vai ter menino
qual o destino que ele vai ter?
Que será ele quando crescer?
Haverá guerra ainda?
Tomara que não!
(“Secos e molhados”, grupo musical brasileiro)
É uma mulher madura, que apesar disso já não acredita na vida. É céptica. Talvez realista. Houve tempos em que no seu horizonte tudo o que acontecia igualava-se à aurora. As próprias palavras que lhe saíam da boca eram o cacimbo em si, que molhava o capim dando-lhe frescura. Renovação. Levava tempo para responder às perguntas, como os sábios. Acima de tudo deixava-se orientar pela fé de que todos nós fomos feitos para viver em paz e em liberdade. Nascemos para a felicidade. Mas hoje ela é a antítese de todas as suas crenças de outrora. Já não tem esperança. Pior, não tem dúvida de que caminhamos em direcção à Hades.
Estamos sentados frente a frente na esplanada do Hotel Inhambane, lugar onde tenho frequentado com alguma relutância, e ela não se cansa de tamborilar com os dedos no tampo da mesa para dar ênfase às concisas frases compostas com pausa. Aliás o tamborilar é mesmo para isso: dar pausa às palavras. Deus já disse, meu caro, tudo o que vier do ventre da mulher será amaldiçoado, mas ao que parece, até hoje ainda não percebemos essa parábola. Continuamos a inocular catervas e catervas de filhos para depois serem assados na fornalha que nós próprios activamos.
Raci traça um futuro sombrio, e diz mesmo que o que nos espera não pode ser outra coisa senão o bréu. Se eu fosse essas jovens que andam por aí, sonhando com a nascente, recusar-me-ia a engravidar. Engravidar para quê se os filhos já saem doentes dos nossos ventres? Alguma vez já tinhas ouvido dizer que as crinças vêm cancerígenas do útero da mãe? Aonde é que ouviste isso? Não assusta? Não mete medo? Come on, meu!
Estamos sentados frente a frente, eu e a Raci. Ela bebe Whisky em doses excessivas, e eu sinto-me confortável com a água que vou consumindo enquanto escuto os discursos de alguém que, quanto mais vai bebendo, mais lúcido vai ficando. Escuta bem, meu caro: Jesus disse assim à Nicodemus, tu e esses para quem estás a falar, não entrareis no Reino dos Céus enquanto não aceitares nascer de novo. Nicodemus não percebeu logo à primeira, procurou Jesus de noite, o Qual voltou a dizer-lhe a mesma coisa.
A mulher que está à minha frente bebendo whisky sem parar perguntou-me se tinha entendido o que ela havia me dito. Eu não lhe respondi. Pois é: o problema é que ninguém está preocupado com o badalo que anuncia incansavelmente a descida da Espada, nem as mulheres como eu, que engravidam e desejam fazer filhos mesmo sabendo que são seropositivas. O quê isso!? O pior é que alguém ao mais alto nível da governação encoraja esse pecado de saber que pode sair uma criança infectada para sempre. Uma criança que virá à terra para padecer, por culpa da nossa insanidade.
Estamos na esplanada do Hotel Inhambane há mais de duas horas e eu devo ter dito apenas duas ou três palavras. Ela é que fala. Com clareza, como agora depois de entornar mais um duplo: até os homens, muitos deles, acreditam que por terem sido circuncisados, estão protegidos contra o virus do HIV. Eu não se essa percepção constitui a verdade. Mas alguém quer lhes incutir isso. Ou seja, quando vêm nos dizer que os riscos de um homem circuncisado são menores, querem nos dizer o quê?