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quarta-feira, 28 setembro 2022 07:11

António Agostinho Neto: 100 anos de uma poesia profética e instigante

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Um centenário parece uma eternidade que esta imerecida lógica da vida impõe sobre a humanidade e nos condicionou às ausências infinitas. A mão invisível persuade-nos a abdicar da presença dos líderes que pavimentaram os caminhos de verde para deixar passar a liberdade e o futuro. De forma prematura, teríamos adorado seguir a revolução, ainda devotados pelas memórias e serenidade poética de Agostinho Neto. Foi como se uma estrela se tivesse escurecido no espaço celestial. 

 

Fiz parte do grupo que saiu para as ruas para receber o Presidente Agostinho Neto, na sua última visita a capital moçambicana. Ele era discreto e exagerado nas suas aclamarias. O oposto de um Samora vibrante e extrovertido. Vimo-los abraçados e em franca cavaqueira. Algumas vezes, mais comprometidos e serenos. Uma cumplicidade que escondia uma amizade que se reconfigurava em irmandade.  Meses depois, a força desse inapelável destino roubou, de todos nós, esse lutador intransigente, com visão profética e mobilizadora. O líder que frequentou mais cadeias e celas políticas, que qualquer outro da sua época. Como prisioneiro político, deambulou por Luanda, Lisboa, Cabo Verde, entre Santo Antão e Santiago e, novamente, Lisboa.  Mas não era a ele que se prendia, mas sim aos seus poemas. Como se pudessem colocar algemas nas suas palavras.

 

Nenhuma masmorra, ainda assim, o privara de escrever esses proféticos poemas que denunciam as amarras e amarguras de um povo que vivia subjugado e oprimido. As prisões de Agostinho Neto desencadearam uma incontestável onda de protestos e de petições, de inúmeros intelectuais, de entre os quais o célebre filósofo francês Jean Paul Sartre; quem diria. Outros celebres intelectuais e artistas, apelaram, igualmente, a sua libertação, como se uma onda de grandes proporções e comoções tivesse invadido os corações de André Mauriac, Aragon e Simone de Beauvoir e, ainda, do prestigiado Nicolás Guillén, poeta cubano. A indignação não deixou de fora o pintor mexicano Diogo Rivera. Tamanho reconhecimento ditou que António Agostinho Neto fosse eleito o prisioneiro político do ano pela Amnistia internacional.

 

Já nos trajes de Presidente da República de Angola, Neto Kilamba, pseudónimo que o consagrou esse médico de profissão, poeta por vocação e iconoclasta líder revolucionário por missão, colocou Moçambique no topo das suas prioridades. Com Machel, sofreram juntos as agressões belicistas da África do Sul racista e da Rodésia de Smith.

 

As visitas de Estado entre Angola e Moçambique se regavam sob o manto da fraternidade. Por isso, Agostinho Neto tem o seu nome associado a toponímia nacional moçambicana, numa auspiciosa avenida no coração da cidade de Maputo. Igualmente, centenas de aldeias mais recônditas ostentam seu nome. Pelo menos, 36 escolas primárias e secundárias de Moçambique tem Agostinho Neto como seu patrono. A empatia e simpatia que granjeou no seio dos moçambicanos alimentaram esse caudal, tão devoto, de memórias que continuaram sendo invocadas entre distinções e designações. Agostinho Neto vive e se imortaliza como líder estrangeiro, patrono do maior número de escolas em Moçambique. Não deve ser obra do acaso.

 

O poeta e presidente que trouxe a independência à Angola foi dos mais proeminentes e carismáticos líderes africanos. Ombreia nesse estatuto com tantos outros intelectuais e líderes como Eduardo Mondlane, Samora Machel, Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos ou, ainda, com Léopold Senghor, Patrice Lumumba e Kwame Nkrumah. Também eles, rendidos e impregnados de veia e pensamentos utópicos, com uma dose de pragmatismo e humanismo. Agostinho Neto, sonhou Angola e todas as antigas colónias portuguesas como territórios e espaços livres e independentes, como Estados de justiça social, nações prósperas e unidas pela irmandade e solidariedade, educadas e, sobretudo, democráticas.

 

A meio da azáfama das eleições no seu próprio país, das cerimónias fúnebres de seu sucessor José Eduardo dos Santos, da fatídica guerra da Ucrânia e de outras intermináveis reuniões partidárias, ficamos, todos, devendo uma homenagem ao saudoso António Agostinho Neto, no seu centenário. Uma espécie de missa reconciliatória e purificadora. Um reencontro com os fundamentos dos nossos Estados e com os sonhos que seguiram outros rumos e horizontes. Ele próprio escreveu, em tantos poemas, que nunca se esta só e nem se deve ignorar a presença do outro; todavia, parece abandonado e sem convicções, no mausoléu que o alberga para que jamais desapareça do nosso imaginário.   

 

Parece, pois, imperdoável que esta amnésia colectiva e ausência de pronunciamentos públicos e de outra índole, não sejam, por conseguinte, merecedores da indignação. Como nos alheamos a esse espírito revolucionário que serviu de menu para a nossa caminhada inicial? Não creio que seja, simplesmente, pela cultura de esquecimento que esta celebração ficou invisível, pois, não pode existir tanto descaso, sem razão, que omita a celebração deste centenário. Fomos presunçosos e, marcadamente desatentos, por quaisquer que sejam as razões.

 

Mesmo que não queiramos fazer-lhe aqui a biografia, seria incontornável reviver seu percurso, desde esse longínquo 17 de Setembro de 1922. Foi no Município do Icolo, Bengo, arredores de Luanda que tudo começou. Ali foi enterrado o cordão umbilical e o jovem António viu a luz do sol pela primeira vez. Oriundo de uma família já assimilada e com créditos evidentemente reconhecidos, seu pai, Agostinho Neto, era pastor metodista e catequista da mesma missão metodista americana, em Luanda. Sua mãe, Maria da Silva Neto, por outro lado, era professora primária. Se aglutinavam os condimentos para que o jovem António enveredasse e revelasse sua apetência pela literatura e rigor escolar.

 

Ele foi educado para saber usar o verbo na sua plenitude.  Esse mesmo poder da palavra o transformou e marcou profundamente a sua personalidade e irreverência. Do poema à utopia revolucionária foi um passo subtil e mágico. Essa utopia o personificou e fez dele jovem inconformado, atento as dinâmicas do seu povo, alguém que não se evadia da realidade e do sofrimento, e que referenciava, nas suas quadras e estrofes, a realidade que o circundava. Emancipou-se e jurou usar essa mesma palavra para combater, sem tréguas, a descriminação e o colonialismo. A deambulação de seus escritos e a tonalidade de suas palavras, converteram-lhe naquele sujeito poético que a humanidade testemunhou e que lutou contra a ordem existente até a independência de Angola.

 

Amadurecido pelas circunstâncias e com o apoio da igreja metodista, foi uma lança que desferiu golpes contra o regime colonial português. Importante salientar a igreja Metodista como a mesma igreja que ajudou tantos outros nacionalistas a prosseguirem seus estudos para melhor combaterem a presença colonial em seus países. Nem mesmo a Congregação dos Padres Burgos ou mesmo Jesuítas teve tanto impacto na preparação e financiamento de estudantes nacionalistas. Eduardo Mondlane teve e recebeu o mesmo apoio.  Não se pode, portanto, dissociar o papel e a responsabilidade da igreja metodista no apoio aos processos revolucionários nas ex-colónias portuguesas.

 

Neto Concluiu o Liceu “Salvador Correia”, em Luanda, onde terminou o 7º ano em 1944, e partiu para Coimbra, Portugal, onde frequentou a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e depois Lisboa. A capital portuguesa fervilhava e transbordava a lava de vulcão da revolução. As dinâmicas propiciaram o momentum e os espaços para que a militância política ganhasse suas letras de ouro e glória. Por ironia do destino, o controlo da polícia política portuguesa fraquejou e permitiu que Lisboa se convertesse na sede embrionária da subsequente revolta anticolonial.

 

Em 1947, António Agostinho Neto integrou o movimento dos jovens intelectuais de Angola, cujo lema era vamos descobrir Angola. Associou-se aos não menos carismáticos Lúcio Lara e Orlando Albuquerque, publicando seus textos iniciais nas revistas Momento e Mensagem, que pertenciam aos órgãos da associação dos naturais de Angola. Casou-se, mais tarde, com Maria Eugenia Neto, seu maior amor e mulher, com quem partilhou todas as cumplicidades que, igualmente, visitou Moçambique, passeando todo o ar da sua descrição, generosidade e sabedoria. Eles tiveram três filhos, sendo Mário Jorge Neto, o primogénito, depois, Irene Alexandra Neto e, finalmente, a Leda Neto.

 

Os seus exímios poemas e a colectânea de textos publicados, insuflaram as mentes e o sentimento libertador. Pelos seus dedos e caneta, transfigurava a vontade de libertação. Neto foi esse esclarecido homem de cultura para quem as manifestações culturais tinham de ser, antes de mais, a expressão viva das aspirações dos oprimidos e a arma para a denuncia da injustiça e crueldade colonial. Um exemplo a seguir pelo simbolismo que representa e pela multiplicidade de acções que desenvolveu.

 

Em 1956, fundaram-se, nos arredores de Luanda, em Angola, vários movimentos patrióticos para formar o MPLA. A 4 de Fevereiro de 1961, as prisões de Luanda foram assaltadas por homens munidos de catanas e armas de fogo. Algumas das quais capturadas em acções anteriores. Mesmo sem lograrem os intentos, estava lançada a primeira salva da luta armada que se alastraria pelo solo angolano. A resposta dos portugueses foi cruel. Bombardearam aldeias e milhares irmãos angolanos sucumbiram aos métodos mais horrendos do colonialismo.

 

Em 1962, sai, de forma clandestina, de Portugal e se estabelece em Léopoldville, Kinshasa, onde o MPLA tinha já a sua sede. O primeiro congresso do MPLA elegeu Ilídio Tomé Alves Machado como seu primeiro presidente, permanecendo em funções até ser preso, em 1959. Foi substituído pelo secretário-geral, Mário Pinto de Andrade, que exerceu o cargo entre 1959 e 1960. Em 1963 foi declarado Presidente do MPLA, substituindo Mário Pinto de Andrade. No interior de Angola, outros movimentos libertadores faziam já a sua luta, a UNITA, de Jonas Savimbi e o FNLA, de Holden Roberto.

 

Ao poeta António Agostinho Neto foi-lhe atribuído, em 1970, o prémio Lótus, pela Conferência dos Escritores Afro-asiáticos. Publicou vários livros cujo substrato e pendor exaltavam o sonhar e lutar pela independência. Ainda hoje, guardo um dos seus poemas, a bom rigor, dos meus substratos favoritos. Este poema foi musicado por Rui Mingas. Minha Mãe/tu me ensinaste a esperar/como esperaste paciente nas horas difíceis/mas a vida matou em mim essa mística esperança/eu não espero/sou aquele por quem se espera. Agostinho Neto revelava e recorria a metáfora da Mãe, como representação da pátria e como o centro de toda a sua narrativa. 

 

Tive o ensejo e prazer de ler um texto escrito por Beto Van-Danem, enquanto encerrava minhas memórias sobre António Agostinho Neto. O autor recorda episódios pitorescos que mostravam a grandeza e personalidade de Agostinho Neto. Era existente e transparente. Só isso permitiu que se mantivesse leal a uma gestão digna, criteriosa, rigorosa e exemplar. Ele entendeu a liderança partidária como uma forma de servir ao povo e não de se servir do Estado. “O Neto era um homem honesto, não vivia deste país e é por isso que morreu pobre”, comenta Van Dunem. Saudades desse tempo e da justeza do movimento pós-colonial.

 

Ninguém ousou jamais questionar, ao longo dos anos, sobre a possibilidade de Agostinho Neto ter deixado contas no estrangeiro. Elas simplesmente nunca existiram. Neto morreu com a roupa que tinha no corpo. Não tinha dinheiro, concluiu Van Dunem. Era, convenhamos, um Machel numa versão Atlântica.

 

Neto partiu quatro anos depois de ter sido proclamado Presidente. Para trás, uma única mancha que pode ter marcado seu brilho: 27 de Maio de 1977. A forma como os revolucionários responderam a um movimento interno e uma alegada tentativa de golpe de Estado. Angola já se retractou, mas as mágoas ficaram muito para além do por do sol. Aqui estão os 100 anos de uma vida plena e tumultuada, uma poesia profética, porém, verdadeiramente, instigante.

 

António Agostinho Neto e seus camaradas e amigos de sempre, Amílcar Cabral, Lúcio Lara, Eduardo Mondlane, Samora Machel, Marcelino dos Santos, Orlando Albuquerque, Ilídio Tomé Alves Machado e tantos outros, incluindo Jonas Savimbi, já tiveram tempo de prestar as contas a divindade e recebem as últimas notícias de José Eduardo dos Santos. Os tempos são adversos onde a revolução e os revolucionários perderam a centralidade e os novos ventos aniquilam os anseios de outrora. Os líderes revolucionários, parafraseando Machel, nunca morrem, porque ganham o tamanho e estatuto de um povo. Povo nunca morre. (X)

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