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segunda-feira, 08 julho 2024 06:53

Francisco Miranda: Voando nas asas da história

Escrito por

JorgeFerrao221220.jpg

Passavam alguns anos e era comum um sketch publicitário que literalmente dizia “saber voar nas asas da história”. Para o delírio dos ouvintes era um slogan que roçava aos píncaros do exagero. Contudo, a nossa companhia de bandeira operava entre as vicissitudes dessa história e as dinâmicas do quotidiano. Os principais protagonistas, contudo, continuavam dignos das menções. Francisco Miranda e outros tantos, se notabilizaram e foram os protagonistas destas peripécias.

 

Nascido em Goa, no longínquo ano de 1957, na Ilha então colónia Portuguesa. Francisco Miranda era o segundo filho de Francisco Vasco António Miranda e Sousa e de Maria de Jesus da Silveira Lorena Miranda; o ponto de equilíbrio de toda a família. Nenhuma história elucida o não ter sido Júnior. Eventualmente, assumiu, ele próprio, seu destino como Sénior.

 

Pai trabalhador dos correios e mãe funcionária da Direcção de Exploração dos Transportes Aéreos (DETA), o que explica a paixão pelas asas. Viveu em Nampula, desde os 3 meses e assimilou-se de cultura emakhuwa. Passou a conhecer a história pela língua, gastronomia e aquela natureza esplendorosa. Aprendeu tudo sobre Musa Mohammad Sahib Quanto, Omar bin Nacogo Farallahi e o sultão Ibrahim. Os desígnios e exigências de uma milenar civilização encantaram sua caminhada e fascinaram seus apetites.

 

Conheci-o jovem, pelos passeios das escolas geminadas Liceu Gago Coutinho e Escola Industrial e Comercial Neutel de Abreu, construídos nos anos 1969-70. Deambulava por entre os jovens da sua idade e mais novos, espalhando uma incaracterística e invulgar rebeldia. O Che Guevara dos nossos tempos. Vezes sem conta, passeava com os inesquecíveis irmãos metralhas. A mangueira sagrada era seu referencial. Ali terminavam todas as disputas e conflitos potenciais. Com ele conheci essa famosa mangueira sagrada. Minha postura apegada a serenidade e  a apologia de não-violência, me afastaram, definitivamente, desse local.

 

Chico tinha uma desenvoltura física de quem vivia carregando pesos. Todavia, não praticava modalidades federadas. Jogava de tudo um pouco e adorava sua bicicleta. Apesar da sua forma mais volumétrica era afável, cavalheiro e impunha respeito aos mais jovens. Criamos uma empatia que perdurou ao longos de décadas. Fez várias confidências, desde o cachorro Camões que perdera um olho em circunstâncias pouco esclarecidas e, desde então, tinha uma pala na vista danificada. Gargalhava com o episódio da cobra verde, completamente inofensiva que estava prostrada num galho de acácia e que, de forma consciente, fora deixada no tampo da mesa da elegante professora de Biologia. Ela desmaiou em plena sala. Estas eram magistrais conversas; episódios que o fizeram cidadão e maturado para posterioridade.

 

Os estudos sempre lhe foram enfadonhos, apesar de muito inteligente. Questionava métodos e a rigorosa disciplina revolucionária. Vibrou, no entanto, com a liberdade e com o mesmo sol de Junho de que sempre se orgulhou. Chico, assim o designamos como jovem, fez uma opção pela aviação ainda em Nampula. Foi despachante de tráfego e, eventualmente, a empresa TTA foi responsável pela sua formação e contratação. Era uma empresa de fumigação aérea que ajudou e comparticipou na formação aeronáutica de mais de uma dezena de jovens, não só de Nampula, mas de todo o Norte de Moçambique. Outros jovens atingiram o patamar profissional, ingressando nas Linhas Aéreas de Moçambique, LAM, criada em Maio de 1980, e que assumira as obrigações celebradas pela DETA, sua antecessora.

 

Francisco Miranda se assumiu como homem dos céus, esses que optam por viver mais próximo de Deus do que da vida mundana. Por cima dos extractos, cirros e cúmulos. Vivia sentindo a plenitude da liberdade e dos avanços tecnológicos. Nas alturas, os segredos são disciplina e rigor, postura metódica e responsabilidade. Nosso bom piloto passou a leitor ferrenho de artigos sobre aviação. Estudava seus manuais como poucos. Num ápice, se firmou como parte dos talentos da companhia de bandeira que tem de tudo um pouco.

 

Os amigos e colegas exaltaram essa mudança. Era como se nós próprios tivéssemos chegado ao cume da terra. Céus eternizados pela amizade e cumplicidade. Depois, seguíamos para o aeroporto para assistir as aterragens e decolagens. Aquela diminuta pista dos antigos dakotas e de aviões de pulverização era, agora, o tapete do Miranda. Aquela mesma pista ruidosa e dos calafrios arrancava aplausos dos passageiros.

 

Miranda vivia nos céus com um naipe de outros colegas como Carlos Soares, José Cachopas, ambos falecidos, Álvaro Lobo, José Ferreira da Silva, Raul Fernandes, Mamede Habbal, Noormahomed e, com eles, as lindíssimas jovens nampulenses. Ter um amigo de longa data, da cidade capital do norte, não era só um prazer, era a certeza de um voo seguro e agradável. Até aquela caixinha de refeições extra, servia para mostrar a família o que se comia nos ares e que os nossos amigos ofereciam. Voar, a rigor, era o sonho de milhares de moçambicanos.

 

A guerra de desestabilização agudizava. Viajar por estrada representava a aventura trágica e o próprio calvário terrestre. Região centro era o tira-teimas dos aventureiros. As histórias sobre as atrocidades e os camiões calcinados pelo fogo eram arrasadoras. Convergíamos todos para os céus. Conseguir um lugar nos aviões dependeria de uma “cunha”. Os nossos zelosos aviadores reinventavam a nova fronteira da geografia. Pela primeira vez viajei no cockpit. Adrenalina pura. Ele, ali bem perto, óculos de sol e controlando minhas emoções. Um voo de fazer perder todos os apetites. Todavia, experiência que não ouso repetir, agora que a segurança aérea se intensifica. Nascemos para viver na terra e juntos dos nossos. Aqui as florestas e rios tem outra e rara beleza.

 

Francisco Miranda subiu pelos degraus da avaliação e se consagrou como destacado piloto Comandante. Se sentou aos manípulos do DC-10. Tempos áureos da companhia. Ouvimos falar da sua habilidade e sangue-frio. Era a fibra nortenha nos céus do mundo. Eram as cartas de correio que o seu pai Miranda tanto selou que viajavam, agora, no porão transportadas pelo Júnior. Antes, eram os sonhos e as vidas de milhares de passageiros que duplicavam a confiança de uma chegada serena e tranquila, mesmo em tempo de turbulência.

 

Miranda criou cumplicidades com Marcelino dos Santos. Seu tio favorito. Transportou seu ídolo e seus adjuntos centenas de vezes. Falava sobre ele com gáudio, vivacidade e exacerbada emoção. Marcelino lhe enchia as vistas e os egos. Assimilou essa postura de guerreiro intelectual. Combatente aéreo irrepreensível. Copiou os segredos de liderança determinada na tomada de decisões. Reconverteu-se no revolucionário sem bases marxistas, todavia, firme e consequente, como ele próprio dizia com atitude de Amélia Mary Earhart, essa pioneira da aviação no mundo, de quem ele leu com apreço. Amelia Earhart desapareceu no Oceano Pacífico, perto da Ilha Howland, enquanto realizava um voo ao redor do globo, no longínquo 1937. O mundo se rendeu a seus pés.

 

Escutei, várias vezes, o comentário e a façanha de uma aterragem de emergência e bem sucedida do DC-10. Valeu a bravura do nosso Chico. Os elogios rasgados, se sucederam. Depois, seu nome passou para o radar das grandes companhias do médio oriente e outros quadrantes. A sua LAM estava de sobreaviso. Muitos abandonaram a companhia. Miranda permaneceu. Os tempos viram essa LAM se reconfigurando num mercado pouco favorável. Vieram as mudanças na frota. Contrariado, mantinha visão desse passado de glória. Depois, viu seu filho trilhar seus passos. Era um jovem Bruno Miranda que qualificava no estrangeiro e dava continuidade ao clã Miranda da aviação.

 

Igualmente, Francisco Miranda chegou a chefe de segurança de voo e instrutor. Mesmo reformado, por imperativos de idade, a sua LAM era a mais notável e indiscutível referência. Vivia preocupado com os novos tempos e dinâmicas. Achava que uma gestão meticulosa faria da empresa um pequeno El dourado no oceano da carestia e ausência de liquidez.

 

Aos 67 anos e debilitado por diagnósticos pouco consentâneos viu seu corpo minguar e degradar. Recorreu aos especialistas da terra e ninguém conseguiu prover o milagre dos céus. O seu lado mais informal e militante sucumbia. O checklist não condizia com o rigor e critérios mínimos de um voo com segurança. Em tarde de finais do mês de Junho, mês de todas as liberdades, que ele sempre defendeu, o Macua natural de Goa fez a sua aterragem final. Virou estrela. Está onde sempre gostou de viver, nos céus e rodeado de anjos. (X)

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