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quarta-feira, 30 outubro 2024 10:39

Nahota Mustafa das Noites de Lua Cheia

Escrito por

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Não chove em noite de lua cheia. É um saber secular, nem por isso, enciclopédico. Endogeneidade conceptual que transforma o comum em algo super natural. Mas os tempos mudaram, as vontades também. Agora, chove desregradamente. Noutros tempos, a chuva, em jornada solarenga, até simbolizava casamento de macacos. Eles próprios se apadrinhavam, e contemplavam o doce sabor arco-íris.

 

Encontrei o velho Nahota Mustafa, ainda imperial, absorto em seus pensamentos, descrente da vida e desconfiado dos tempos. Debutamos nas saudações, nessa expedita e metódica forma de reencontros, com as cordialidades costumeiras. Aprimoramos os rituais e as apologias à paz, na gentílica praxis Namúli, tão adulterada pelos tempos.

 

A saudação continua um procedimento que revela respeito e cordialidade; segue os preceitos e, de forma hábil, auxilia a dirigir a conversa para o objectivo que pretendemos. Na Ilha, por tradição, os critérios hierárquicos definem as normas do respeito e da fraternidade.

 

Nahota, ou comandante do Dhow, esse milenar barco à vela, quem sabe oriundo do Omã, lá no médio oriente, e que galga as ondas pela nossa costa, também, vive intrigado com a natureza. Esmiúça suas esperanças para contemplar a serenidade do mar, os dias carregados ou vazios de tudo. São as águas que oferecem os frutos para a colheita, ventos para a sementeira, nesse movimento de ondas sobre as quais transbordam as saudades. Ele vê a sua Ilha, aqui onde Luís de Camões, poeta sénior português, também, naturalizado residente, foi celebrado nos seus 500 anos. Nenhum outro lugar fora das fronteiras de Portugal se importou, tanto com ele.

 

Esta Ilha perdeu a sua graça e resvala agora em novas inquietações e mistérios. Nahota, continua incrédulo e contempla o oceano que deixou de ser tudo até a infelicidade felicidade. Ele se preocupa com a tecnologia avassaladora, pois, ninguém mais precisa do seu conhecimento. Os seus ajudantes vivem presos ao celular; dominam a previsibilidade; se recusam fazer ao mar em dias de tempestade. Sequer sabem contar os números dos passageiros, pela ganância de mais uma moeda ou uma nota de pequeno valor. Esta é a crueldade dos novos tempos.

 

Nahota também diz que “o fim de uma viagem é apenas o começo de outra”. Já vimos isto escrito em livros de José Saramago. Para ele, o fim da viagem parece ser o fim da história. Todos os dias, ele testemunha muitos centímetros de areia que desaparecem nas praias cristalinas. Os sintomas climáticos que um dia podem afundar a sua ilha. Incomoda que não existam mulheres pilotando embarcações, apesar da ilha receber mulheres conduzindo viaturas todos os dias. Afinal, por onde anda essa emancipação?

 

Os Dhows, essas incontornáveis embarcações que, ainda, sobrevivem os tempos e as adversidades, transportam pessoas, bens e sonhos, perdurando no imaginário e nas esperanças mais imediatas dos insulares. Sem eles a vida terminaria. Eles são o valor de oxigénio para a sobrevivência da ilha e dos seus habitantes. Junto das areias das praias operam os estaleiros de construção destes Dhows. Nahota acha que já não existem mestres. A sabedoria de construção desaparece todos os dias. Os barcos e as suas madeiras são duvidosos.

 

Para a construção dos Dhows, os instrumentos utilizados são exclusivamente ferramentas manuais, desgastadas pelo tempo, mas, ainda assim, tão úteis quanto funcionais. Trabalham com madeiras nobres como o Mogno, a Teca e até a madeira da mangueira e do coqueiro. Tudo à volta serve. As cordas são feitas de cascas do fruto do coco, que permanecem dentro água, durante mais de três dias, para depois virarem cordas resistentes que asseguram que as partes amarradas permaneçam sólidas e coesas. Esta é uma corda que nenhuma tecnologia consegue superar. A cola é, igualmente, feita das cascas de árvores e é tão efectiva quanto segura. A cada esquina tem meia dúzias de artesãos, feitos Mestres, que estruturam sua organização social e económica, em boa parte, na construção e utilização destas embarcações.

 

Quase toda a actividade piscatória da Ilha, e das localidades da costa, Lumbo, Mossuril, Cabaceiras, Lunga e etc. é feita com recurso ao Dhow. Também eles fazem a navegação de cabotagem para o transporte de passageiros. Transportam a história da glória, da heroicidade e dos desígnios de um litoral que deu vida ao continente e reconfigurou sonhos de viajantes e exploradores, traficantes, religiosos, falsificadores e piratas.

 

Nahota anda preocupado pois estas embarcações, agora, também transportam os noivos e seus familiares entre gentes de Zanzibar e as belas macuas miscigenadas da sua Ilha. Casamentos misteriosos que todos conhecem e ninguém comenta; fingem desconhecer. Ele confirma que existem dezenas de moças casando com jovens de Zanzibar e que viajam indocumentados ao cair da noite. Quem sabe até candidatos à insurgência.

 

Ninguém sabe ao certo de onde vieram os Nahotas. A Ilha de Moçambique, esse ponto de encontro de poetas e escritores, reinventou-se para a sua sobrevivência, abrigando alguns desses artistas, enquanto outros se dispersaram Norte a cima ou Sul abaixo. Os Nahotas são as marcas e o orgulho do cruzamento de civilizações e culturas. Eles representam técnicas de construção naval suaílis, árabes que criaram os entrepostos e, com eles, a miscigenação tecnológica.

 

Ao longo dos anos, poucos se preocuparam em documentar ou assimilar a técnica de fabricação dessas embarcações, o que transformou aqueles que detêm esse conhecimento numa verdadeira elite. Uma espécie de conhecimento que passa de pai para filho e de filho… para mais ninguém.

 

Estes Nahotas continuam os maiores conhecedores dos tempos e dos espaços, são responsáveis por edificar estas conexões e perpetuá-las ao longo dos séculos. Através das suas embarcações, os Nahotas registaram segredos inconfessáveis. Se no passado, eram as pessoas mais respeitadas, o presente lhes virou as costas. Hoje, eles vêem seu prestígio esmorecer, sendo ofuscados pela modernidade.

 

Nahota controla todo o processo de construção da sua embarcação. De forma discreta, revela confiança para deixar a equipa trabalhar, porém ao mesmo tempo a insegurança que os novos tempos propiciam. Com as falsificações, ele sabe que podem trocar as melhores peças de madeira e colocar em risco o seu Dhow. Manter a chama da técnica e da mestria preservada não é apenas garantir que o Dhow jamais desapareça, mas é o assumir que a economia da costa se mantenha intacta.

 

Ele e o grupo de amigos e operadores das embarcações falam sobre as mudanças climáticas, noutros termos, como uma pura invenção política e distante do que sempre foi uma realidade naquela parcela do litoral. Eles assumem que as campanhas políticas, nem sempre, se preocupam em explicar essas mudanças. Porém, quando se assumem na governação, então, justificam tudo, ou quase tudo, como fazendo parte do pacote dessas mudanças. Depois, tiram partido para explicar os ciclones naqueles longos comícios que tem mais de palmas do que conteúdos.

 

Se os ciclones sempre existiram, então, porque, agora, são mudanças climáticas e não ciclones? Ao longo da vida sempre experimentaram ciclones e essa foi a definição. Os mestres dos mares, com suas habilidades e conhecimentos únicos, exigem uma comunicação diferente para serem convencidos. Os Nahotas consideram-se possuidores de poderes especiais, que transcendem a compreensão comum e funcionam como uma reserva científica e climática para a população em geral.

 

Para todos Nahotas, as mudanças climáticas seriam uma mitomania que gera testemunhos invertidos inverídicos e desafortunados. Mas, se por um lado estão preocupados com essas mudanças, por outro, vivem o stress de uma pesca cada vez menos abundante e difícil. Por conseguinte, a pesca esta longe de ser comparada aos bons e áureos tempos, onde a ilha tinha peixe de sobra para as famílias locais e para a revenda noutras paragens.

 

Todos os anos, argumentam, as águas, endiabradas e sem escrúpulos nem generosidades, galgam e cavalgam precisos centímetros das suas praias. A este fenómeno lhe foi explicado que correspondia ao avanço do mar sobre a terra. Mas, se interroga, porque razão o mar não roubava a terra antes? Tive de explicar que esta é a batalha que o planeta perdeu. Os pecados que a terra e os homens começam a pagar em vida. Uma espécie de inversão de valores. Sentido contrário da natureza e do próprio mar, nas suas mares mais altas.

 

A nossa conversa se estendeu pelos ventos. Nahota Mustafa acha que os ventos estão, no mínimo, estranhos e indereccionados. Seguem sentidos esdrúxulos e despojados de bom senso. Trocam de velocidade e direcção sem que se faça um sualat no interior do Dhow. Como observou Chinua Achebe “a terra não pertence ao homem; o homem pertence à terra”.

 

Falamos da sazonalidade de espécies de peixe que viravam sazonais. Os grandes cardumes migram e procuram outros espaços. Nesta época, a pesca reduzia e os cardumes fintavam as redes de pesca. Sem ventos seguros e nem pescado, as carências deixam os pescadores, e todos os Nahotas, sem o menor sentido de racionalidade e muito menos de sustento. Eles não entendem se as suas vidas se fazem de política ou religião, ou se nenhuma delas. Instala-se, então, a desilusão, e a fé e a esperança são esvaídas.

 

Nestas explicações, prestei atenção ao canto das mulheres que aproveitam a maré vazia para colectar crustáceos. O seu canto tem tanto de melancolia como se desespero. Falam de jovens que partiram mais para o Norte e nunca mais regressaram. Mas, também, falam sobre os filhos que não aprendem o essencial na escola. Comenta-se também sobre os jovens que bebem incessantemente durante os finais de semana, começando na noite de quinta-feira e só parando no domingo. Os seus filhos bebem de tudo possível e imaginário; vorazes consumidores. Elas desencontram esse sustento e usam o tempo para ensaiar novas melodias e asseguram que precisam de repetir às canções. Os tempos difíceis oferecem temáticas inesgotáveis. As vozes são afinadas e libertam as suas emoções e almas. ‘Quem canta seus males espanta’.

 

Como escreveu o poeta e filósofo Rainer Maria Rilke, “O futuro entra em nós, para nos transformar em algo que ainda não somos”. A tarde se esfumava lentamente, ameaçando desaparecer com o crepúsculo, cujas cores vibrantes iam do laranja à púrpura, tingindo o céu com tons tão profundos quanto os pensamentos de Nahota Mustafa. Ele queria continuar a conversa, mas não parecia convencido pelas minhas explicações, talvez achando minhas palavras tão efémeras quanto o vento que soprava ao longe.

 

Eu, que não sei prever os ventos do dia seguinte, sentia o peso de sua desconfiança, pois ele, com sua experiência milenar, sabia ler o tempo e entender a linguagem oculta da natureza. Por isso, duvida da minha capacidade de falar sobre os tempos que virão, as dificuldades que o país enfrentará, e os ventos que, segundo seus instintos, serão mais fortes e constantes.

 

Dou exemplos, tentando ser didáctico, mas percebo que ele finge acreditar. Seus olhos, que se perdem de forma vigilante no horizonte, revelam a verdade de sua descrença. Ele vê além das minhas palavras e sente o que eu não consigo prever – os sinais da natureza que sempre foram seu guia. Nahota, com sua sabedoria enraizada nos ciclos do mar e do vento, percebe que o futuro, tão incerto para mim, para ele está escrito nas águas e nas brisas que, sem erro, moldaram sua vida e a de seus antepassados.

 

Teríamos de interromper para que ele pudesse regressar à Mesquita, a Masjid, em busca de reconciliação com Allah. Contudo, aquela casa de oração havia sido alvo de novas regras, e muitos dos sermões já não traziam o apelo nem a convicção de outrora. Os jovens, que estudavam no estrangeiro, voltavam falando de outras escrituras sagradas, levantando questionamentos que antes não faziam parte da rotina daquela comunidade. No entanto, a fé ainda permanecia firme, como a última esperança de que os tempos pudessem, de alguma forma, regressar à normalidade.

 

Hoje, a segurança marinha tornou-se essencial. Estes experientes comandantes de Dhows, que carregam consigo os sonhos e o sustento de tantas comunidades costeiras, precisam agora estar mais atentos do que nunca aos procedimentos de segurança e outros cuidados necessários. As exigências sobre os Nahotas vão além do conhecimento tradicional, requerendo novos saberes sobre como proteger vidas nas águas oceânicas, onde os riscos estão sempre à espreita. Pilotar um dhow continuará sendo o privilégio de poucos, mas a sobrevivência e bem-estar de muitos dependem dessa habilidade.

Sir Motors

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