Este ano completam-se os 102 anos desde o começo da Primeira Guerra Mundial, a única na qual Moçambique participou, directamente, por intermédio da intervenção portuguesa. O livro A Guerra que Portugal quis esquecer, de Manuel de Carvalho, jornalista português, recorda essa desastrosa campanha. Dos cerca de 20.000 soldados portugueses enviados para Moçambique e Angola, com o intuito de precaverem-se dos ataques alemães, aliados aos mais de 50.000 soldados moçambicanos, trazidos dos designados Prazos da Coroa, Niassa, Zambézia e Moçambique, mais de 2/3 pereceram. Portugueses e moçambicanos sucumbiram na frente de combate, sem sequer terem disparado alguma bala. As fatalidades ocorreram devido ao despreparo, ausência de logística, fome, malária, sede e disenteria, e até à própria incúria.
Tudo isto aconteceu na Baía de Tungue, no triângulo de Quionga, actual vila de Palma, que herdou o nome de um Administrador colonial, em Negomano, Namoto e Mocímboa da Praia. Portanto, Cabo Delgado, hoje, a braços com uma nova guerra, tem sido palco de outras tantas desgraças. Esta província, de incontestável mixagem cultural, vive predestinada a sofrer os efeitos da barbárie, chacina e infindáveis traumas humanos. Por estes distritos, se mistura, ao longo de décadas, o sangue de europeus, africanos e asiáticos, numa espécie de cemitério a céu aberto. A saga do desligamento dos espíritos que vagueiam errantes por todos os cantos, procurando uma oportunidade para um dia poderem repousar, tornou-se cíclica, dolorosa e ortodoxamente preocupante.
Se a entrada de Portugal para a primeira Guerra Mundial significou uma oportunidade para os grupos étnicos mais organizados de Moçambique, em busca de mais direitos humanos e sociais, o custo social e familiar foi abismal e inqualificável. A descida dos alemães às margens do Rio Licungo permitiu várias revoltas. A mais significava foi a de Barué. Ao reivindicarem seus direitos e liberdades, contra o domínio português, estes povos sofreram um extermínio.
A história é repleta de exemplos de guerras, negação da soberania, da harmonia societária e paz, aliadas à fragmentação política, a exclusão das identidades e a expurgação do mal, em oposição aos direitos fundamentais dos povos. Hannah Arendt, no seu livro A Condição Humana, aborda o conceito “solução final” de Adolf Eichmann. Esta teoria serviu de substrato para o extermínio de milhões de judeus, ciganos e homossexuais, nos célebres campos de concentração nazis. Era a Europa a negar a liberdade que defendia para dentro dela mesma, atirando violência para fora.
Ela explorou essa brutalidade do mal, associada ao facto de, ao longo da história, as guerras que sempre tiveram a anexação de territórios como substrato, usarem as pessoas mais mesquinhas e ambiciosas para cometerem atrocidades. Humanos que se convertem em selvagens, displicentes e sanguinários. Personificados em sádicos monstros e desrespeitando a vida e sentimentos humanos. Para a guerra no Noroeste de Cabo Delgado, nem as vinganças, ganância, fortalecimento de seu próprio poder, ou visões messiânicas do mundo, podem explicar esta forma atroz, maligna e sevícia de matar seus concidadãos.
Relendo estas obras para contextualizar o descaso de Cabo Delgado, num período de neoliberalismo, mais do que as causas, procuramos entender o sentido da morte violenta e a pós-morte. A morte continua uma temática antropológica por excelência. Quando pensamos no teatro operacional Norte, não ficamos indiferentes à selvageria truculenta pela qual a população tem sucumbido. Nem conseguiremos entender como foi que se criaram os espaços para desenfreada e atroz crueldade, ruindade e falta de esperança e fé que se apossaram desta região.
Quando um ser vivo morre, não morre completamente, porque a sua forma, seu espírito, permanece vivo nos outros seres da sua espécie. Eles se tornam errantes, procurando um espaço definitivo para repousarem. Como dizia Darwin, o evolucionista, a morte de um ser vivo é uma continuidade interrompida e não representa o fim. Acontece, porém, que, com o ser humano, essa complexidade é ainda maior do que com os outros animais.
Vários escritores e teólogos versam sobre a necessidade de os espíritos poderem repousar quando se desligam dos corpos físicos. Por isso, os rituais consagrados a dar eterno descanso às almas e aos espíritos se revestem de muito simbolismo e santidade. De Mia Couto, no seu livro de ficção Terra Sonâmbula, a Paulina Chiziane, Calane da Silva e tantos outros, concordamos, sem excepção, no poder da comunicação entre vivos e mortos e na influência que os espíritos exercem sobre o bem-estar social e moral dos vivos.
Sem veleidades, os africanos são fervorosos e afectivos à paz dos seus espíritos. Em todas as gerações e épocas históricas, às famílias comunicam e recebem bênçãos dos espíritos dos antepassados. A eles são consagradas as homenagens que desencarnavam e transcenderam os espíritos dos organismos físicos. Esta transcendência, não importa o tempo que ocorre, tem um potencial de influência no estado psicológico e de tranquilidade, da esperança e da fé. Por isso, os rituais ancestrais representam uma irradiação mental e um conjunto de vibrações positivas significativas para quem continua na sua peregrinação na terra.
Moçambique e Cabo Delgado, de alguma forma, têm sido espaço para estes conflitos violentos, irracionais, inaceitáveis e de inimaginável perversidade. Os estudos que agora se multiplicam, apontam múltiplas razões. Ainda assim, há uma razão que continua a ser-nos negada historicamente. Naquele espaço do território, continuam vagueando demasiados espíritos, que carecem de tranquilidade e enterro condigno e encarecem a nossa reconciliação como nação. Eles procuram, como cada um de nós, dignidade, respeito e paz. Querem desligar-se do corpo físico, propiciando tranquilidade espiritual a comunidade, trazendo de volta a fé, a razão e a tolerância à diversidade. Em fim, a reconciliação connosco mesmos.
O impacto desta incapacidade de propiciar eterno repouso às vítimas cristaliza um sentimento de banalidade para com a vida e morte, e um desrespeito aos rituais essenciais. Estas adversidades fazem com que os espíritos procurem suas sepulturas, um pouco por todo este país. Esta é a nossa epidemia da descrença e do desligamento físico dos nossos espíritos. Precisaremos de fazer de tudo para salvar as vidas. Ter a capacidade para prover humanismo e conforto que merecem os que partem deste mundo. A espiritualidade e a fé, não podem ser negligenciadas. Essa fé começa por um desligamento dos espíritos dos seus entes queridos.
Nas várias guerras que o mundo testemunhou, se criaram as praças ao soldado desconhecido. Nós precisaremos de fazer a praça do cidadão desconhecido, do pescador desconhecido, do camponês desconhecido. Onde o religamento colectivo com o transcendente seja possível. São desconhecidos e nem se quer culpados por ter vivido no triângulo da riqueza e da morte. (X)