“Os jornalistas também são alvos dos terroristas. A guerra terrorista, na província nortenha de Cabo-Delgado, tende a criar grandes divisões entre a sociedade, de um modo geral e entre a sociedade e a classe dirigente. Na minha opinião, isso se deve às deficiências na comunicação, na era da internet, em que as pessoas podem comunicar-se em privado e em público, estando em qualquer local. Difícil é omitir factos e, ainda que os órgãos competentes não divulguem determinada informação, esta será divulgada, de qualquer forma, com o potencial de ser divulgada com algum exagero, seguindo a velha máxima de que “quem conta uma história, aumenta um ponto”. Assim sendo, o importante, nestes casos, seria instituir-se alguém que sirva de ligação entre os factos no terreno e a sociedade, através dos órgãos de comunicação social. Acusar os jornalistas não é a melhor solução para o problema de Cabo-Delgado”.
AB
A guerra movida por terroristas, na província de Cabo-Delgado, está com tendências a criar múltiplas divisões internas, entre os moçambicanos e entre os moçambicanos e a classe dos governantes. Na minha opinião, razões não faltam para esse mal-estar entre nós e da sociedade contra os governantes. Aqui, devo referir que um dos grandes problemas, que suscita mal-estar entre a sociedade e os governantes é a comunicação.
São raras as comunicações sobre o estado de guerra em Cabo-Delgado. Das bocas dos governantes, ouve-se um exacerbado optimismo, que contrasta com os factos no terreno. Entre esse vazio, criado por quem deve comunicar, surgem os órgãos de comunicação externos, com maior domínio da situação no terreno, que propriamente os órgãos de comunicação nacionais e a questão que se coloca é: porque os nossos órgãos de comunicação não divulgam as notícias que são divulgadas por outros órgãos de comunicação para o mundo. Não havendo essa comunicação, as vítimas, muitas vezes, recorrem às redes sociais para lançarem o seu grito de pedido de socorro!
Há uma coisa inegável nos acontecimentos, quando existe um facto e os órgãos competentes divulgam esse facto, não há como especular sobre esse mesmo facto. O que pode acontecer, e acontece, é cada órgão de comunicação social produzir notícias de acordo com os seus interesses editoriais e, quando é assim, é fácil o cidadão atento tirar as suas próprias conclusões porque, certamente, terá visto nesta ou naquela televisão, nesta e outra estação de radiodifusão e lido nos jornais e por aí. Dificilmente se pode falar de estar a favor deste ou do outro, podemos falar de deturpação da notícia porque é pública.
Pessoalmente, compreendo o mal-estar do Governador de Cabo-Delgado, contudo, penso que ele próprio não é informado, tempestivamente, das ocorrências militares no território que governa. O domínio da situação está nos militares e todos sabemos que o governador não é militar. Enquanto os militares não receberem ordens claras sobre a divulgação das ocorrências no teatro operacional, continuaremos a nos acusar mutuamente. Imagino como terão ficado os jornalistas baseados em Pemba ou em Cabo-Delgado no geral com a “acusação” do Governador da Província.
Por estas e outras razões, é hora, na minha opinião, de todos os órgãos de comunicação social, baseados ou não em Cabo-Delgado, conhecerem o seu interlocutor válido, os relatos esporádicos dos Administradores, o aparecimento periódico do Governador e as raras aparições dos militares são a causa da especulação. Esse interlocutor deve servir, também, para os órgãos de comunicação estrangeiros, de modo a combater as assimetrias de informação.
Para terminar esta minha reflexão, peço a sociedade moçambicana, que nos unamos em torno de Cabo-Delgado. O terrorismo que a população vive naquela província atinge-nos de qualquer forma e todos temos um familiar a residir ou em missão de serviço naquela província, para além de que são cidadãos moçambicanos, nossos concidadãos, que sofrem com a guerra. Por isso, todos nós, devemos dizer basta a guerra naquela parcela de Moçambique!
Adelino Buque
Escrevi e publiquei recentemente dois artigos de opinião. Um tinha como título (IN) Dependência: Não se esqueçam de voltar e, o outro, A Demissão do Povo. No primeiro, tentei fazer um chamamento aos libertadores de ontem, por alguns considerados opressores de hoje; conforme pode ler-se num dos parágrafos do artigo: “Os nossos libertadores, os nossos heróis e os nossos referenciais de luta e verticalidade foram se transfigurando ao sabor do vento, e alguns deles viraram, nossos opressores. Nasceram elites negras, que se esqueceram dos ideais da revolução e se preocuparam em vestir a máscara de ovelha em corpo de lobo. Os nossos libertadores, tornaram-se obcecados pelo poder e pela posição de destaque no banquete pós-independência. Recriamos e personificamos a aquilo a que Frantz Fanon designou de “Pele Negra e Máscaras Brancas”, onde pretos oprimem outros pretos e se acham dignos para o fazer em virtude do tempo emprestado na mocidade e juventude para que fossemos hoje o país livre que somos. E Será que realmente somos?”
No segundo, A Demissão do Povo, iniciei aludindo o facto de o povo ter sido demitido. Em diálogo aceso entre eu, a folha e a esferográfica, não sabia se dizia que o povo se demitiu ou se o povo foi demitido.
Disse: “O povo foi demitido do seu papel de fiscalizador. Foi demitido de monitorar, de reclamar, de pedir para ter dignidade mínima. (…) A pobreza generalizou, as assimetrias agudizaram, a corrupção institucionalizou-se, as liberdades reduziram-se, o espaço cívico afunilou-se, e o povo começou a sentir-se estranho na sua própria terra.”
Longe de pretender fazer futurologia, o alcance era lançar uma reflexão em torno do país que estamos a (des) construir, e perspectivar o amanhã que queremos para nós. Revisitei estes dois textos e vi neles alguma actualidade. Encontrei neles o mote para escrever este artigo que baptizei de resignificar Moçambique. Por resignificar entenda-se a necessidade de dar um novo significado ou recuperar a mística que com o tempo fomos perdendo – A mística da moçambicanidade.
Ouvi, recentemente, a mamã Graça Machel, numa das suas aparições públicas – se dirigir ao povo no geral, mas focando mais à juventude como alvo. Um dos pontos que mais chamou atenção foi quando ela disse: “Jovens, não se sentem em cima do legado de Samora (...) Não deixem o legado deste grande homem se perder.” Entendi como um recado, como uma chamada à acção e um convite à reflexão sobre o legado do Primeiro Presidente de Moçambique independente; à preservação e seguimento do legado deste estandarte da nossa moçambicanidade.
Na cerimónia de outorga do Doutoramento Honoris Causa à renomada e consagrada escritora e activista social – Paulina Chiziane, durante a sua alocução disse em viva voz, socorrendo-se do famoso adágio popular - “A boa fruta se conhece pela sua árvore”; a fruta que temos hoje é azeda, é tirana. O que se passa com a árvore então? E quem é a árvore? – indagou.
A árvore somos nós os mais velhos; somos nós que dirigimos o estado, as instituições, as religiões e a sociedade. E se essa geração esta assim, é porque alguma coisa está errada na árvore. - Retorquiu!
Poderia trazer algumas vozes que ecoam de forma audível entre os mais comprometidos com o projecto de dar um rumo ao país. Vozes de valor agregado para o debate da construção de uma nação em que os valores sociais são mais importantes que todos restantes. Severino Ngoenha, Adriano Nuvunga, Óscar Monteiro, Teodoro Waty, Elísio Macamo, Mia Couto, e outros tantos nomes que não trarei por economia de tempo e espaço, são unanimes em afirmar que precisamos repensar Moçambique e dar um significado a luta pela independência e construção do Estado-nação.
Urge pensar um país mais inclusivo, onde as liberdades individuais e colectivas sejam respeitadas. Um país com independência das instituições, dos três poderes e com uma máquina estatal mais capaz, progressista, comprometida e livre de amarras político-partidárias. Um país em que a corrupção, o despesismo e o nepotismo não figurem entre as primeiras palavras do dicionário social e político.
Precisamos criar uma narrativa para o presente e que possa criar bases de um futuro onde a moçambicanidade possa rimar com a integridade. Uma narrativa que se desconstrói a ideia de existência de sucesso sem trabalho, sem mérito e sem sacrifício. Uma narrativa que coloca o cidadão, e a pessoa humana no centro de todo o processo governativo e como elemento primordial para o desenvolvimento do país. Enfim, uma narrativa que o forte não é quem tem mais recursos e mais poder, mas aquele que pensa de forma mais inclusiva, englobante e acima de tudo nutre amor pelo país.
Precisamos igualmente de sedimentar o pluralismo na nossa sociedade; revigorar a unidade nacional e a aceitação do diferente, combatendo o divisionismo e o etnicismo. Uma sociedade em que os vários pensares confluem para a solidificação deste longo, contínuo e complexo processo da moçambicanização da nossa identidade, de edificação de bases fortes para uma governação forte, altruísta e progressista.
No país conhecido comummente como o país de Mondlane e Machel, onde as liberdades vem sendo sistematicamente reprimidas e asfixiadas, a dúvida é uma realidade não assumida e o medo tomou conta de vários sedimentos da sociedade.
Sim, temos medo de reivindicar o direito de sermos nós mesmos. Sentimento este que gera um questionamento sobre o nosso contributo social e humano para o país, e ao mesmo tempo convida-nos a abandonar esta longa noite escura que nos engole; noite esta caracterizada por discursos vazios, demagogias e descrédito sobre o nosso ser como país.
Agora temos dúvidas sobre a nossa gloriosa epopeia e medo de afirmar que Moçambique é dos Moçambicanos. Parafraseando Mia Couto: Há quem tenha medo que o próprio medo acabe. E eu acrescento, que há quem tenha medo de dormir e acordar sem personalidade jurídica.
A herança da violência do homem branco contra o homem preto – o chicote colonial -, não pode nem deve ser replicada pelas instituições de defesa nem pelos famosos esquadrões na sua mais crua forma de reprimir aquilo que julgávamos ter conquistado com a independência – a liberdade, o direito à autodeterminação e a participação no processo de construção de um estado-nação.
É meu entendimento, e talvez não apenas meu, que a bolha social da tolerância estoirou, e, é resultado de um acumular de situações que levaram anos e talvez décadas para se cristalizarem. Com ela (a bolha social), emergem e as ditas formas de ação popular punitiva e apelo a alternativa e a alternância, ainda que se subassuma que seria mais do mesmo. Nesta manifestação silenciosa, mas bastante ruidosa assistimos a segunda vaga da auto-demissão do povo.
Neste exercício de resignificar precisamos buscar as referências e as bases da criação do nosso Estado - O Estado que outrora foi motivo e objecto de orgulho e júbilo. Um estado onde o bem-estar social e o respeito pelas liberdades individuais e colectivas são respeitadas; onde a educação é um instrumento emancipador e não fonte de opressão e destruição, e onde os mais básicos serviços estejam disponíveis para a maioria.
Entre consonâncias e dissonâncias, uma coisa está a ganhar forma - há uma tentativa de busca incessante por um significado para a nossa existência como povo – a busca por um futuro melhor em que todos nos sintamos parte integral e integrante deste projecto chamado desenvolvimento.
No final o sonho de todos é apenas ter um Moçambique para todos.
Por: Hélio Guiliche
Aqui, entre nós, não é muito comum que um álbum se vinque e tome sua forma a partir do título. “Venho de Longe”, de Elvira Viegas, reforça logo a construção do sentido musical e enriquece o processo conceptivo, estético (e, na expetativa, melódico) das 15 músicas que a compõem. O álbum dá continuidade à evocação de referências das suas vivências que são sinónimos de calos, lágrimas, pesares e tentativas pregações de moral e patriotismo.
E é sobre isso que quero aqui abordar. Elvira faz, neste 2024, 50 anos de carreira e 69 de idade, a completar em outubro próximo. Tem cinco álbuns gravados, “Nfzixikala vitu”, “Tlanga upimela”, “The best of Elvira Viegas”, “Venho de Longe” e “Ora Chegou”, que deixam sempre a sua fragância melódica por onde ecoam. São quatro vidas que me interessam analisar, mas hoje, nesta extensa introdução, interessa-me recuar no tempo e, desde o início, seguir essas pegadas feitas em 50 anos de música.
“Venho de Longe” (uma reedição de The best of Elvira Viegas), como sugere o quarto disco, traz, na sua organização, as melhores músicas da cantora, gravadas originalmente em diferentes momentos e circunstâncias. São esses os calos da sua história, de lá longe de onde vem, que, regravadas e alinhadas, compõem o primeiro álbum ousado da cantora, juntando igualmente instrumentistas como Pipas, Stélio Zoe, Carlos Gove, Sacre, e o seu falecido irmão Pacha Viegas.
E sem rodeios: o disco é a mascote da Música Ligeira Moçambicana – um campo que já foi dividido entre ela, Elsa Mangue e Zaida Chongo. Bem, um pouco forçado também por Mingas, embora o seu estilo circunde entre o ligeiro moçambicano e o moçambicano internacional –, que antes mesmo de reeditado, já tinha conquistado reputação na Rádio Moçambique, reafirmou o valor da artista e o reconhecimento que veio também da Rádio França Internacional (RFI), que o atribuiu o seu galardão maior (Prémio Descoberta), no ano de 1987.
Com audácia, e uma dinâmica crescente, sem por isso quebrar a senoide, o álbum conta a história de um país – e seus inquilinos – que prossegue em meio a tantos problemas, sobretudo relacionados às mais básicas dádivas da humanidade: dar amor aos filhos, aos cônjuges, aos vizinhos, ter esperança e perseverança.
Por isso, as batidas, misturando uma Marrabenta e Afro-Pop, estimulam a nostalgia ao ressoar do teclado característico de Pipas. As composições são modestas, interpretadas com um soltar de voz, em timbre grave: o equivalente melódico da fleuma de poesia cantada. Pois canta com alma, mestria, simplicidade e às vezes complexidade! E não será coincidência qualquer semelhança com Elsa Mangue, a quem ficam também reverentes nostalgias. As duas são feitas de poesia!
Transportando para estúdio a intensidade do ao vivo, Elvira Viegas reafirma-se no álbum em “Errei, pequei” e, abusando da sua criatividade, mistura elementos comuns de diferentes estilos do Afro-Pop, o que dificulta a sua categorização e, ao mesmo tempo, apresenta um material agradavelmente inusitado aos seus ouvintes. A música é uma obra completa, no sentido de que nenhum instrumento envolvido seria muito coerente se fosse ouvido sozinho. A bateria e a guitarra acompanham a voz, estonteante, que repetidas vezes clama: “Errei, pequei com o coração ao deixá-lo chorar”.
A música rasga o peito e reverencia a complexidade poética de Elvira. É sobre dor, prazer, paixão? Não, é sobre a aceitação: “Errei, pequei aos olhos dos homens, descobrindo o meu caminho, não pisando a areia movediça”, diz a música, levando à consciência sobre a necessidade de se ser livre e feliz. E a liberdade se espalha numa tonalidade primorosa. A voz está segura e confiante, o som invade o cenário e casa-se com a melodia até tudo explodir num refrão que alivia a tensão e resolve a harmonia com inteligência e bom gosto.
“Xikala Vitu”, o mesmo que sem nome, continua aqui a fazer subir o álbum e traz ao arrepio dessa viagem rítmica outros brilhos, outros sentidos. Aqui, Elvira recolhe-se mais, divide seus quatro minutos de dor com Sizaquel e Jenny, que também, no fundo, dão drama à música. Uma melodia que dói, que arrebata e nos traz à memória a covarde moda de assassinatos de parceiras em Moçambique. E questiona: “Como te chamarei se comeste a minha boca? Como te escutarei se grelhaste a minha orelha? Como irei brincar contigo se cozinhaste os meus seios? E as tripas o guisado?”
Elvira deita fertilizante nas suas canções melancólicas, e duas delas espraiam-se mesmo pelas lágrimas. Uma delas, Grito da Criança, é o auge de tudo o que Elvira sente e viveu: uma maratona por toda a sua geografia musical e afetiva, tempestade de bateria e melodia, uma crónica da crueldade do abandono familiar, uma obsessão pela moral e um fatalismo pelo caos que vivemos. A outra música, Coração de Pedra, um choro de outra mulher, é útil porque desmente a falácia de que toda a mulher-mãe é protetora.
Texto: Reinaldo Luís
Jornalista e Editor de Cultura
Ricardo Rangel é, indubitavelmente, o mais sagaz, intrépido e profícuo fotógrafo moçambicano do “instante decisivo”. O grande fotojornalista moçambicano do século XX: arguto, vivo, veloz, ágil, astuto. É também um dos fundadores do fotojornalismo entre nós. Nasceu na então cidade Lourenço Marques (Maputo) a 15 de Fevereiro de 1924 – há 100 anos! –, e seria conhecido, celebrado e festejado em muitos lugares do Mundo, onde expôs a sua arte e o seu génio. Tinha nas veias sangue africano, grego e chinês. Andou a vida toda com uma máquina em riste e devemos-lhe um país em imagens ao longo de décadas. Um país que se demarcava do conformismo colonial e nos remetia para a dissensão, para a defesa dos proscritos, para a justiça e para a liberdade e dignidade da maioria excluída. Era, sobretudo, um fotojornalista. A sua lente tinha arte, mas dava-nos sempre notícias. Notícias do seu tempo, o nosso tempo. Era, no fundo, um jornalista arrojado e audaz, intrémulo e resoluto. Um dos nossos maiores intérpretes. Um dos maiores intérpretes da moçambicanidade.
O fotojornalismo, sabe-se, informa. O fotojornalismo é quando a fotografia tem o carácter e a urgência da notícia. O fotojornalista mostra, revela, expõe, denuncia, opina. Interpela, interpela-nos. Indaga, indaga-nos. Esta “disciplina”, por assim dizer, afirmou-se no período ulterior à Primeira Guerra Mundial, entre as décadas 20-30 do século passado. Isto no Ocidente. A Moçambique chegará atrasada, nos anos 30-40. Deve-se, sobretudo, ao “Lourenço Marques Guardian”, de Arthur William Bayly, um famoso comerciante e publicista, oriundo de Durban, que se instalou na antiga Delagoa Bay e prosperou. Uma casa homónima haveria de marcar a cidade durante décadas. Mais tarde, seria o vetusto “Notícias” que haveria de desenvolver a fotografia como informação. Primeiro como pura ilustração do texto. Sempre como apanágio dos ideários da época: do Império, dos colonos e da metrópole e das suas glórias, amesquinhando um povo que Rangel haveria de ajudar a sublevar.
Ricardo Rangel e Sebastião Langa seriam os primeiros não-brancos a fazer fotografia no país. Iniciaram a aprendizagem em estúdios profissionais que existiam na época. Os estúdios fotográficos começaram a ser instalados nos finais do século XIX em Moçambique com a chegada do daguerreótipo. O retrato populariza-se então. Nos anos 30-40 surgem, no país, publicações ao estilo das que então proliferavam na Europa e nos Estados Unidos. O “Ilustrado” no “Notícias”, entre 1933-34, seguindo-se-lhe o “África Ilustrada”, no mesmo grupo editorial, nos anos 40. Mais tarde, em 1951, o “Império”. A cidade de Lourenço Marques e/ou a sua pujança, que lhe advinha sobretudo do seu porto, assume um ineludível protagonismo.
Nos anos 50, primeiro no “Notícias da Tarde” e, posteriormente, no “Notícias”, Ricardo Rangel, já conhecedor dos segredos técnicos da sua profissão – expendera anos na câmara escura –, desfaz o estereótipo: é o primeiro fotojornalista não-branco na imprensa em Moçambique. É também ele que irá romper com os arquétipos vigentes. Rangel empresta à época e ao fotojornalismo um olhar inédito, sempre inconformado e, sobretudo, insubmisso. Recusa os ditames e subverte a linguagem. Uma outra realidade, aquela que só aparecia para justificar o proselitismo do regime, ganha estatuto e dignidade na sua lente. Diverge dos interesses e da ordem estabelecida. Denega o exótico que era prática e traz para as páginas da imprensa uma outra realidade social.
O jornal “A Tribuna”, quando surge nos 60, vai para além da “fronteira do asfalto” (Luandino dixit) e Ricardo Rangel é um dos responsáveis por cartografar, ali, a chamada “cidade de caniço”. Vale, a propósito, ler o que Luís Bernardo Honwana ou Calane da Silva testemunharam sobre o tema. Aliás, muitos anos depois, o próprio fotógrafo haveria de exultar, ao lembrar-se daquelas páginas que se rasgavam diante de outros olhares e através das quais ele moçambicaniza a fotografia. Estamos num tempo – ulterior à Segunda Guerra Mundial – em que uma geração de jovens intelectuais se afirma e há uma importante agitação cultural nos jornais e nas agremiações culturais e cívicas: Noémia de Sousa, José Craveirinha, Fonseca Amaral, Rui Nogar, Luís Bernardo Honwana, Rui Knopfli, Ruy Guerra, entre outros. Há, no entanto, os ecos de “O Brado Africano” e a acção da Associação Africana ou das figuras de Rui de Noronha ou José Albasini.
Rangel calcorreava a cidade com a máquina em riste e há no seu vasto repositório a memória dolorosa do tempo colonial que o mito intenta obnubilar. A periferia e as suas contradições estão também, por assim dizer, inscritas no seu mítico “Pão Nosso de Cada Noite”. Rangel conheceu e amou a noite de Lourenço Marques. Para trás ficaria a memória da Delagoa Bay ancorada ali no tempo, entre os arrabaldes da antiga Baixa, do antigo presídio e toda aquela zona onde se situava a Praça 7 de Março (hoje 25 de Junho).
O porto e a navegação internacional fizeram de Delagoa Bay, primeiro, Lourenço Marques, depois, um lugar de referência para os marítimos de passagem. Fizeram, no fundo, a própria Lourenço Marques. Na baixa, que era o centro da cidade, as ruas tinham um bulício que impregna alguma da nossa boa literatura. Lourenço Marques fora a cidade dos trens, dos “rickshaws” e das galeras puxadas a parelhas. Fora a cidade dos quiosques da praça, dos “bars” e das cervejarias.
Foi naqueles anos fervilhantes e excitantes para os que viviam ou passavam temporadas em Lourenço Marques – anos 50 e 60, sobretudo – que Ricardo Rangel fotografou a vida nocturna de uma das mais emblemáticas ruas da baixa – a Rua Araújo. Desde meados do século XIX que a Rua Araújo se revestira de um carácter dúbio: durante o dia mantinha todo o aspecto normal duma rua comercial e de escritórios, ao fim do dia ganhava os contornos de clandestinidade que a tornariam mais tarde célebre.
Foi com a descoberta das minas do ouro do Rand e a construção da linha férrea para o Transvaal que Lourenço Marques deixar-se-á invadir por gente exótica e estranha. Será esta gente que transformará depressa a Rua Araújo, à noite, numa pequena rua do “Far West”, cheia de “saloons” com bebidas e jogos animados pelas “barmaids”. Na década de 30 do século XX apareceram os casinos com as “taxi-girls”, então em moda em Joanesburgo, e donde veio depois da última guerra outra vaga de “night-clubs”, “cabarets” e “dancings”. Tudo isto em Lourenço Marques, a conhecida Xilunguine, ou a antiga Delagoa Bay. De Reinaldo Ferreira a José Craveirinha, passando por autores diversos, há textos notáveis sobre a Rua Araújo. Há personagens míticas, como Daíco, musas ou deusas.
O jazz, que lhe chegava da longínqua telefonia primeiro, depois dos discos que os marinheiros que faziam a rota do Cabo e aqui aportavam lhe ofereciam, fará de Ricardo Rangel o indutor desta sua paixão entre nós. A Rangel, Moçambique deve a devoção pelo jazz. Não tocava, mas é dos seus maiores divulgadores e promotores. Conhece e fotografa os seus maiores intérpretes. Em 1971, o contra-baixista Charlie Haden, num concerto em Portugal, interpreta “Song for Che” e dedica-a a revolucionários de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Ricardo está na plateia e exulta. Esteve com os seus mitos: Dizzy Gillespie, Miles Davis, Thelonious Monk, Ornette Coleman. Fotografou-os. Apostrofou-os. Os lugares de culto do jazz na cidade guardam a sua presença: Topázio, Zambi, Sanzala, Costa do Sol, Princesa, ou Chez Rangel na Estação dos CFM. Abdullah Ibrahim, aliás Dollar Brand, descobriu na casa de Rangel um disco seu que ele próprio não tinha.
O título imaginoso de José Craveirinha – “Pão Nosso de Cada Noite” – está na origem do livro-álbum, de Ricardo Rangel, publicado nos seus 80 anos, em 2004. O fotógrafo deambulara pelo “Notícias”, “A Tribuna”, “Diário de Moçambique” e “Notícias da Beira”. Estivera na fundação da revista “Tempo”, outro marco. Tudo isto no tempo anterior à independência. Regressaria ao “Notícias” em 1977. Em 1981 torna-se o primeiro director do semanário “Domingo”. Mais tarde irá criar o Centro de Formação Fotográfica, onde se manteve activo – na companhia cúmplice e firme de Beatrice – até ao fim e empreendeu como formador e como uma reserva de sabedoria. Os mais jovens profissionais encontravam nele disponibilidade para partilhar os seus vastos conhecimentos e os seus avisados ensinamentos. Mas também o homem assertivo, incisivo, crítico, indignado. O Mestre.
Não tinha um génio fácil, antes pelo contrário. Era difícil, irascível. Por vezes impulsivo ou truculento. Vituperava a mediocridade, desgostava-lhe o paupérrimo jornalismo, ou a ausência dele. O seu “Notícias” passara a ser um jornal de anúncios e não de notícias. Vociferava, zangado, contra o estado das coisas. Era um conversador brilhante, maravilhoso, contador de histórias, tinha um sorriso rasgado e os olhos e os zigomas que o aproximavam das suas origens orientais. Tinha um olhar brutal, indagador, frontal, poderoso. Por vezes, intimidatório. Mas era fraternal, de uma ternura no sorriso e no olhar, amigo dos seus amigos. No fundo, as suas fotografias transmitiam essa ternura, que ele disfarçava.
Fotojornalista de longo curso, homem profundamente enraizado na história do seu país e do seu povo, Ricardo Rangel testemunhou, não indiferente, uma longa era da vida de Moçambique, tendo-a documentado, como jornalista e como artista. No Centro que criou registou o nosso país em imagens. Um trabalho ciclópico e primordial. É um dos seus legados. Como as suas belíssimas e pungentes fotografias que são o primeiro rascunho da História. O jornalismo – o fotojornalismo – é também isso: o primeiro esboço da História.
Ricardo Rangel era um prodigioso homem do “instante decisivo”, com uma intuição, uma sensibilidade, uma prática e poética que estão na origem de fotografias que fixavam, na “linguagem do instante”, o momento, a essência e o significado da nossa História no século XX. É o fotógrafo de Moçambique. Mas é também um grande fotógrafo de África. Num texto remoto disse de Ricardo Rangel: “Que belo o teu ofício e dos que te antecederam e daqueles que se seguem, este de nos devolverem algo que é nosso antes de nos ter pertencido”.
Foi sobretudo um fotógrafo do olhar. Um dia ofereceu-me uma fotografia da mulher da gabardine com um olhar dilacerantemente melancólico. Ela está na célebre rua, tem uma cabeleira emprestada e nota-se-lhe uma profunda tristeza. Tem a mão esquerda sobre a cintura. Há silhuetas de uma parelha ocasional por trás. Esta, como tantas outras fotografias de Ricardo Rangel, faz parte de uma poética partilhada por uma geração única. De um mito geracional. De uma estética e poética. De uma ética. Guardo-a ciosamente, como guardo a lembrança feliz do amigo.
Ricardo Rangel, que morreu aos 85 anos, a 11 de Junho de 2009, nascera a 15 de Fevereiro de 1924, há precisamente 100 anos! É uma efeméride que nos diz muito. A despeito de sermos um país do descaso, da desmemória ou do esquecimento. O seu nome está entre os nossos maiores intérpretes: José Craveirinha, Noémia de Sousa, Luís Bernardo Honwana, Malangatana, Alberto Chissano ou Fany Mpfumo. Os nossos instauradores. Os grandes intérpretes da moçambicanidade.
Cidade do Cabo, 15 de Fevereiro de 2024
Como se sabe, 14 de Fevereiro é o dia consagrado aos namorados. Trata-se de uma data internacional e Moçambique também celebra esta data, através de troca de presentes, entre os namorados, entre casais e entre amigas e amigos, como forma de demonstração de afecto. Por estes dias, as lojas promovem uma série de produtos, desde as roupas diversas, vários utensílios de decoração entre outros. Outros celebram a data em casas de pasto, hotéis e noutros lugares, tornando-a especial!
Vovó Rapaz é um homem dos seus 60 anos, Pai de cinco filhos, sendo duas meninas e três rapazes. Uma das meninas é casada e a outra namora oficialmente. Chamam-no de vovó Rapaz porque ele não aceita que é velho, sempre que o chamam de “KOTA” revolta-se e a pessoa que ousar chama-lo assim fica marcado negativamente.
Vovó Rapaz tem uma amiga, que é estudante universitária, a cursar Direito. Os pais conhecem o Vovó Rapaz por senhor José Ribeiro. Na família, Vovó Rapaz é bem tratado porque é um bom provedor, tanto para os pais como para a amiga universitária, a quem ele paga os estudos numa Universidade privada. A amiga nutre simpatia e respeito por José Ribeiro, pois, sem ele, nada poderia acontecer, em matéria de formação. Os pais, irmãos e a irmã também têm mostrado respeito e gratidão por ele.
Sucede que, no dia 14 de Fevereiro, para mostrar o amor que tem pelos pais da amiga, para o caso, consideramos “namorada”, José Ribeiro decidiu que desta vez fosse um jantar em casa com toda a família. Entretanto, inadvertidamente, o irmão da namorada trouxe ao jantar um amigo pessoal. Este amigo é, nada mais, nada menos que o namorado da filha de Vovó Rapaz. Infelizmente, o jovem não conhecia essa parte do futuro sogro, sendo que o sogro contava que o jantar fosse íntimo, da família e sem amigos, mas não foi assim.
O jantar foi marcado para as 19h00 , tempo suficiente para José Ribeiro jantar e seguir para a sua casa para mais um jantar, como acontece com alguns homens e mulheres que, por vezes, têm que fazer mais de duas refeições para satisfazerem as suas concubinas ou seus homens! Senhor José Ribeiro fez-se presente às 18h45, trata-se de um homem que aprendeu que a pontualidade é uma forma de disciplina, nos tempos do partido único, de orientação socialista.
José Ribeiro foi recebido como merece um provedor. Estavam nos últimos acertos os preparativos do jantar e foi levado à sala de visitas e servido um dos Whisky da sua preferência, claro. Quando eram 18h55, chega o amigo do irmão da namorada, que é o namorado oficial da filha do Vovó Rapaz em casa e, na casa da amiga, tratado como senhor José Ribeiro. Este também foi levado à sala de visitas onde se deparou com o sogro. Ambos ficaram serenos e, durante a apresentação, fingiram e bem, que não se conheciam e foi assim até ao fim do jantar.
Sucede que Vovó Rapaz, como disse, marcou o jantar para as 20h30 em casa e o futuro genro é um dos convidados. Na saída, o genro quis abordar o sogro, mas teve receio da reacção, então, preferiu seguir o seu caminho em direcção à casa deste, pois, a namorada o esperava, até porque, se alguém está em falta não é o namorado da filha ou futuro genro, mas o sogro, pois, o namorado da filha ficou a saber sobre a vida dupla do futuro sogro.
Acontece que, em casa, Vovó Rapaz é um homem muito disciplinado, gosta de ver tudo na melhor organização, um “moralista” de primeira água, vive criticando comportamentos desviantes e quem o conhece, desse lado, dificilmente pode pensar que ele possa ter essa vida dupla. Chegado a casa, a esposa recebeu-o como sempre, com carinho e demonstração de amor pelo marido. Este foi imediatamente para o banho e, à saída, estava de calções, t-shirts e chinelos. A esposa serviu-lhe uma dose de Whisky, curiosamente, da mesma marca que bebeu na outra família.
O genro chega e também é recebido com honras de genro. O Vovó Rapaz, que sabe disfarçar, nem parecia que ambos saiam de um jantar. Ao genro também lhe foi servida uma dose de Whisky que, nervoso, sorveu num trago, o que causou estranheza da namorada. Ele não é assim, bebe com moderação. Contudo, naquele momento, ele estava nervoso e não sabia lidar com a situação. O sogro notou o nervosismo do genro e sorriu para ele e disse: “esteja calmo filho, depois te explico, mas fique à vontade. Faz de conta que nunca me viste fora deste ambiente!
Estas palavras trouxeram algum sossego ao jovem, contudo, para ele, era difícil lidar com a situação, pois prometera à namorada nunca faltar com a verdade. Ambos juraram não ter segredo um do outro, mas a actual situação, em que o sogro o colocara, constrangia o jovem. A questão é: o que farias no lugar dele? Contavas a verdade à namorada como juraram ou consideravas uma excepção!
Adelino Buque
Em alguns dos pleitos eleitorais anteriores, gerais e locais, tive alguma dificuldade na escolha a fazer, tendo até recorrido ao infantojuvenil Pim Pam Pum. Temo que recorra a este método no próximo pleito eleitoral.
Acredito que não seja o único a recorrer a este método diante da impossibilidade de escolha de um dos candidatos, combinando com o risco em deixar o voto em branco, assumindo que esta decisão significasse a impossibilidade de escolha.
Ademais, e fora o risco, o voto em branco pode significar de que não haja escolha, mas também que o eleitor tenha dúvidas ou não reconheça a credibilidade do pleito em pauta.
Uma saída para os próximos pleitos seria a introdução da opção ”Nenhum Deles” no rol das escolhas. Algo como o ”Não Sei” dos inquéritos ∕sondagens.
Depois que partilhara esta proposta com um académico, este até colocara a possibilidade que tal fosse até um estímulo para atrair mais eleitorais nos dias de votação, invertendo a tendência actual de gazeta.
Subjaz que se o eleitor não vê a priori a quem escolher, por que carga de águas perderia o seu dia na data da votação? Pessoalmente não estou longe deste raciocínio e o da introdução da opção ”Nenhum Deles” no boletim de voto como o antídoto adequado.
Por ora, e para fechar, com ou sem a opção ”Nenhum Deles” no boletim de voto, na data das próximas eleições, 09 de Outubro de 2024, estarei no meu posto de votação cuja comparência prendesse mais com um record: o de continuar a ser um eleitor totalista dos pleitos eleitorais desde o de 1994, o pleito de partida da nossa democracia multipartidária. ”Seu teimoso”. Diria a minha avó.
Nando Menete publica às segundas-feiras
PS: A ideia de introduzir a opção ”Nenhum Deles” no boletim de voto implicaria um ajustamento legislativo no apuramento dos resultados. Por exemplo, e em caso de vitória da opção ”Nenhum Deles”, forçaria que os derrotados incitassem negociações e a formação de coligações, vencendo a coligação que apresentasse uma maioria superior.