Enquanto lá fora a chuva cai em liberdade, tamborilando por sobre as chapas de zinco, Mwali está absorta em pensamentos que a levam aos tempos em que, com o marido, partilhava a vida intensa que ressurgia em cada precalço, trazendo mais labaredas de fogo ao amor dos dois, como se tudo o mais não importasse. Ela está deitada de costas por debaixo dos lençóis que a cobrem até à cintura, com as pernas flectidas, na enorme cama que agora, após o companheiro ter morrido enquanto dormia, depois da esbórnia, perdeu o conforto. Toda a casa está despojada de graça, até o relógio de pêndulo, dependurado na parede da sala já não a diz nada, quem dava valor ao tempo e às horas da Mwali era Mbata que, terminadas as caminhadas que fez na terra, deu o último suspiro numa madrugada de domingo abraçado à mulher que dormia profundamente como ele.
Chove desde a noite e já são nove da manhã. Os céus paráram de ribombar nos seus insuperáveis sons, mas a chuva não! Chove intermitentemente ora em silêncio, ora em rajadas, despertando na mulher as lindas lembranças da cumplicidade com o companheiro, que se tornam muito mais lindas hoje, mesmo estando sòzinha sem o homem que dava todo o sentido à sua vida. Mas se esta – diz Mwali apertando no peito o livro aberto – é a minha história, então deixa-me vivê-la no cume, onde o meu marido gostava de estar comigo. Recuso-me a desvanecer pois, se assim o fizesse, estaria a espetar a lança da dor na alma do Mbata, que será para sempre o meu baluarte.
Mbata era um bom homem, muito embora fosse negligente no que diz respeito aos cuidados com a sua saúde. Fumava de forma inveterada, e provavelmente terá sido ele mesmo a influenciar a mulher a enveredar por esse vício. Mwali fuma demais. Muito demais, e quando está em órbita no eixo do fumo e da bebida, liberta as palavras em cascata para uma plateia constituída quase sempre pelas mesmas pessoas, que a escutam com avidez nas barracas espalhadas pelo bairro Chalambe onde mora, palavras eivadas de poesia, assim como falava o marido, sempre pronto a meter flores mesmo naquilo que parecia um vaso partido, sem condições de preservar a humidade. Só assim, pintando as palavras com as cores da imaginação, como ele próprio dizia à companheira, é que vale a pena conversar. Se não fizeres isso, não é conversa. É demagogia.
Mwali ficou com esses ensinamentos de uma pessoa que partiu sem lhe deixar filhos, Não importa, Mbata passou-me, como testemunho, a imensa luz do candelabro que ele era, e será para sempre. Estes livros todos arrumados meticolosamente na estante, e outros encaixotados, embora nunca os tenha lido, sinto-os como se os tivesse devorado. Conheço a história contida de cada um deles, tornei-me uma fonte que não pára de borbulhar água fresca para o leito dos rios, mas na verdade essa fonte foi construída dentro de mim pelo meu marido. Ele lia, e a única pessoa que tinha de imediato para contar todo o enredo, era eu, sem ele saber que estava fazendo de mim um fiel depositário da sua doce loucura. É esse, o elo mais forte que me prendia ao Mbata.
*Excerto do livro “Mwali”, de Alexandre Chaúque, no prelo
“Ódio mortal ou ódio figadal. Sentimento de ódio muito intenso e leva uma pessoa a desejar a morte de outra. (sentimento de profunda inimizade, aversão instintiva direccionada a; antipatia, repugnância)”
In Dicionário Online
A morte do músico Azagaia despertou, na sociedade moçambicana, um dos sentimentos mais perigosos da existência humana, o Ódio. A ideia com que fico, posso estar errado, é de que muitos estão interpretando erradamente aquilo que foi o pensamento do próprio músico Azagaia em termos de políticas internas nacionais. O pensamento do músico Azagaia, na minha opinião, é fruto da primeira República de Moçambique, proclamada e dirigida por Samora Moisés Machel, a denominada República Popular de Moçambique.
Uma das frases de que é lembrado o músico Azagaia é “Povo no Poder” e Samora Moisés Machel teria em seu tempo dito: “façamos da escola, a base para o povo tomar o poder” e esta frase era como que palavra de ordem, podia ser vista em estabelecimentos escolares e outros lugares de interesse público e repetia, “Povo no Poder”. Depois de Samora Moisés Machel, quem teve sempre em mente esta palavra de ordem é também o saudoso Marcelino dos Santos, que, em quase todas as suas intervenções, colocava a ideia de que o povo deve estar acima de qualquer pensamento e filosofia partidária.
Dito isto, quero chamar a atenção daqueles que, hoje, falam do músico Azagaia como sendo o cidadão que esteve contra a Frelimo, não! Azagaia nunca esteve contra a Frelimo, esteve, isso sim, contra o “desvio” político que a Frelimo teve e creio contínua, com a morte de Samora Machel e a entrada da economia do mercado acompanhado do multipartidarismo. Pode parecer curiosa esta reflexão, quando me refiro ao multipartidarismo, mas é pura verdade, a ideia do povo no poder não é, no meu pensamento, aplicável numa economia do mercado, onde o poder é por excelência dominado pelo capital!
O músico Azagaia nunca foi simpatizante da Renamo e nem do MDM. Para Azagaia, todos os partidos políticos eram “farinha do mesmo saco” cujo interesse é chegar ao poder para se apropriar do bem comum e o testemunho disso é que a nossa Assembleia da República, constituída por três Bancadas, quando se trata de benefícios para eles, são unânimes e “Fingem” discordância quando se trata de legislar no interesse público. veja-se as últimas manifestações do partido Renamo na Assembleia da República, veja-se o abandono do partido MDM da sala de sessões. Mostra que, efectivamente, não há interesse de debate do que pode beneficiar o público.
Pessoalmente, sempre tenho escrito e defendido que, se quisermos continuar como um País “uno e indivisível”, devemos rever a oportunidade das eleições Distritais que, pessoalmente, penso que será um fim da República e a criação de pequenos “Batustões” à semelhança da África do Sul do Apartheid. A ideia não é que não se venha implementar as Autarquias Distritais, a questão é a oportunidade da sua implementação e o impacto Sócio-político e Económico que isso trará. Interessa-nos ou não a questão é lutar pelo poder a qualquer custo!
Virão os legalistas dizer: “a Constituição da República é de cumprimento obrigatório” e eu retrucaria questionando: mesmo que nos estejamos precipitando ao abismo!? Não creio que seja assim, é verdade que a Frelimo tem e continuará tendo seus próprios “pecados” de que resulta a falta de confiança entre as partes, mas não creio, certamente, que seja este caso: pensar no terceiro mandato de Filipe Nyusi!? Creio que essa parte cabe ao partido Frelimo decidir, nenhuma sociedade civil poderá impedir, legalmente, se a Frelimo assim o desejar, pois, usará as armas de que dispõe, quer na Assembleia da República, quer no processo de Governação. Por isso não é por aí, na minha opinião, aliás, a aprovação, pela Bancada Parlamentar da Frelimo, da Lei que altera o período da convocação das eleições gerais, das Assembleias Provinciais e da República é disso testemunha.
O caro leitor questionará: então a sociedade civil deve manter-se calada e impávida perante esse comportamento? A resposta é que não, a sociedade civil deve, de forma estruturada e organizada, interpelar os partidos políticos, para persuadi-los sobre o mal que determinadas decisões podem acarretar. A sociedade civil deve, na minha opinião, sensibilizar a sociedade para o despertar sobre determinadas matérias e seu alcance para que não prejudique a própria sociedade. Isso sim, penso que pode ser o papel da sociedade civil.
Moçambique está de luto. Estamos de luto. Perdemos um grande Homem. Homem com ‘h’ maiúsculo. Um nacionalista exímio, destro, um grande humanista, homem de paz, pragmático, homem de bem. Que escolheu, logo cedo e de livre e espontânea vontade, a medicina como cavalo de batalha para proporcionar o bem e o melhor ao seu semelhante, sobretudo aos seus compatriotas. E porque a essas alturas a sua pátria ainda não estava em liberdade, teve que juntar a sua paixão, a medicina, à luta de libertação nacional para poder libertar e servir melhor o seu povo. Fez as duas coisas: a luta e a medicina. E fê-las com muita destreza! Conquistada a independência, dedicou-se, de jure e de facto, à profissão que escolheu. Foi simples médico em hospital modesto e desconhecido algures; depois, foi director de hospital, também modesto e algures; e só mais tarde é que foi “jogar na melhor posição em que devia jogar”: onde podia libertar abertamente todas as suas qualidades, competências e saberes, humanas, profissionais, acadêmicas, sociais, etc.: Liderança. Foi director. Depois foi ministro da Saúde por dez anos, período durante o qual catapultou o nome de Moçambique para as melhores páginas da Organização Mundial da Saúde. Os indicadores de desempenho do país na área consolidaram-se ainda mais e continuaram a subir no ranking mundial nas várias campanhas de vacinação e de combate a diversas doenças, sobretudo a varíola. De tal sorte que Moçambique tem sido referenciado em várias iniciativas da OMS; foi elogiado recentemente por ter conseguido gerir bem a campanha de vacinação contra o coronavírus, em parte devido ao legado, à experiência e ao histórico que teve a mão de Pascoal Mocumbi.
Espero que, um dia, os historiadores - ou aquele/s que for/em a fazer o registo biográfico deste grande homem - tenham a devida e satisfatória elaboração sobre o contributo que este nobre filho da terra teve no nosso Sistema Nacional da Saúde e na Organização Mundial da Saúde (OMS) - sobretudo, mas não só, o seu contributo na erradicação da varíola do nosso solo pátrio.
No que me toca. Começo o jornalismo em 1987, quando ele passa de ministro da Saúde para o de Negócios Estrangeiros. Digamos que do ministro da Saúde quase nada tenho registado. Do seu novo pelouro, foca (principiante) que eu não era na altura, naturalmente que não era destacado a fazer coberturas que requeressem grandes responsabilidades, saber e experiência. Gradualmente, fui assumindo responsabilidades profissionais. E eis que, em 1993, já depois do AGP, envolvido num projecto pessoal do Presidente Chissano, tive que viajar… lado a lado, com o então ministro dos Negócios Estrangeiros para Inhambane! Estava a recolher uma e outra informação para a autobiografia que o antigo estadista estava então a escrever - já estava escrita praticamente a obra Tempos, Lugares e Espaços, mas uma ou outra coisa tinha que ser complementada e eu tinha que estar por perto, pois eram as melhores oportunidades para encontrar esta ou aquela figura - o trabalho continua, falta a segunda e a terceira parte da biografia... É assim que, estando em visita presidencial a Inhambane, mais em pré-campanha, pois as eleições de 1994 estavam à vista, havia que estar por perto. E a boleia encontrada foi a do ministro dos Negócios Estrangeiros que tinha que se juntar à comitiva presidencial em Inhambane. Lá peguei a minha pastinha com algumas roupinhas e lá me fiz… ao carro protocolar do Dr. Pascoal Mocumbi. Lado a lado nos bancos de traz da “land cruiser”. Não tenho palavras para descrever a angústia que se apossou de mim. Não sabia como aguentar 500 quilómetros ao lado de uma grande figura, o ministro dos Negócios Estrangeiros de Moçambique. Até hoje, não me lembro direito de como aguentei, mas certo, certo é que saímos de Maputo às 13 e tal e por volta das 22 horas chegamos ao destino. Como, não sei… mas não colapsei. Nem serviram de nada os jornais portugueses que levara para ler pelo caminho… Mas foi boa conversa, alimentada mais por ele do que por mim, inexperiente e tímido, além de muito novo! Daí para frente, houve mais simpatia e empatia também.
Feitas as eleições de 1994, Pascoal Mocumbi fica primeiro-ministro, o segundo primeiro-ministro de Moçambique a seguir ao Dr. Mário Machungo (que também repouse em paz). Uma das “coisas” que o Dr. Mocumbi introduz no relacionamento com a imprensa são os briefings semanais com jornalistas. Todas as manhãs das quintas-feiras, lá estava ele, sumptuoso como era, a falar à imprensa sobre todas as áreas do Governo.
Esta prática duraria o tempo em que ele esteve no cargo e… ficaria, assim, a marca do primeiro-ministro Pascoal Mocumbi! Não delegava, não era irregular, houvesse ou não assunto quente, ia pessoalmente e falava de boca cheia sobre todos os assuntos do Governo. Uma e outra vez levava um ministro ou vice, mas na maioria das vezes era ele que punha a sua voz audível. Respostas práticas, concretas e directas.
Tendo saido nos últimos meses do mandato do Presidente Chissano, seguiu-se-lhe a Dra. Luís Diogo. Ainda continuou um pouco com a prática, mas depois… acabou! Não mais houve briefings dos primeiros-ministros… até hoje. Uma prática salutar, que aproximava bastante o Governo à media, ajudava a dissipar quaisquer que fossem as partes menos claras; e ajudava a sociedade a compreender as políticas e práticas. Hoje, nós, os comunicadores, queixamo-nos de que o nosso executivo não se comunica, ou se comunica mal… uma das razões é a ausência desta prática que já foi rotina. No tempo do Dr. Pascoal Mocumbi, não era preciso haver assunto para ele sair ao briefing. Era importante comunicar-se com a sociedade!
Um legado saudável que… botamos abaixo!
Vá e descanse em paz, ilustre Dr. Pascoal Manuel Mocumbi. Cumpriu e muito bem a sua missão na terra!
ME Mabunda
Dez famílias estão, neste momento, senhor presidente, sem rua para chegar às suas casas, porque o que era rua vendeu-se. O que era rua será coroado por um enorme muro nos próximos dias, senhor presidente. São dez famílias que terão de criar pontes imaginárias para chegar aos seus quintais, porque um grupinho da zona decidiu vender o que era rua. Claro que este não é o primeiro caso que acompanho na Matola-Gare, há muitas ruas que são vendidas e terrenos que são disputados por mais de cinco pessoas. E hoje são dez famílias que foram arrancadas uma rua.
Já escrevi, diversas vezes, sobre as negociatas de terrenos que acontecem na Matola-Gare, mas ninguém me ouve. Hoje falo de dez famílias, incluindo a minha, que foram arrancadas uma rua. Aquilo que era rua, com postes de electricidade, com um enorme corredor para autocarros, com um tubo geral de água será vedado nos próximos dias.
Isso acontece na Matola-Gare num terreno que foi arrancado a uma velhinha e vendido, debaixo dos seus gritos, à uma família que hoje pretende fechar uma rua. A velhinha, meu Deus, todos os dias põe-se debaixo da sua angústia e lamentava, tal como essas dez famílias, o seu terreno vendido. O grupo vendeu o terreno e hoje são essas dez famílias que estão concentradas nos seus quintais como água de chuva, pois não têm nem um pedaço de terreno para lhes servir de entrada.
O grupo tentou falar com a dona do mundo que comprou a rua e o terreno. E ela, porque tem dinheiro, porque tem amigos no município, disse apenas que ia doar um beco, um palmo de centímetros, para servir de entrada a essas dez famílias, senhor presidente. Um beco só para encostarmos o corpo e chegarmos às nossas residências, um beco que nos cederemos e passaremos, um a um, como formigas seguindo para um buraco.
Senhor presidente, falo de dez famílias e muitas que estão a surgir que dependem dessa rua. A velha, que era dona do terreno, todos os dias chora pelo seu terreno arrancado e hoje chora pela rua, porque sabe que já não tem onde encostar os seus passos e chorar pelo terreno que um dia foi seu.
Os terrenos são vendidos como tomates na Matola-Gare, mas ninguém se importa em deixar-nos uma rua. De tempos em tempos, somos obrigados a abrir novas ruas, novas entradas, mas dessa vez não temos nada a abrir, pois estamos sem mãos e estamos sem catanas suficientes para lutar pela rua que foi vendida. Viramos bichos que não precisam de ruas, senhor presidente.
Uma rua larga, uma rua que servia de corredor para nos evacuar às nossas residências deixará de existir nos próximos dias, senhor presidente. Dez famílias viverão isoladas numa ilha sem saída como bichos da Idade da Pedra. E como essas famílias sairão ao mundo nos próximos dias? Como essas famílias irão carregar os seus passos para dentro de casa?
Claro que eles fazem isso, porque essas dez famílias são um entulho de pobres. Há meses venderam a rua de um dos maiorais do bairro, mas tudo acabou mal: o maioral usou a força, que me dava muito jeito tê-la, mandou varrer a rua e tudo voltou à normalidade. O bairro todo aplaudiu. E hoje somos nós, dez famílias, que passaremos por isso tudo, porque não temos a força de varrer tudo como o maioral. Nos próximos dias, haverá um muro coroando a rua que nos servia de entrada, haverá uma porta impedindo-nos de entrar em nossas casas.
Depois de nós, as dez famílias, de certeza mais ruas serão contrabandeadas em toda a Matola-Gare. Temos, todos os dias, de dormir com um terço, na mesinha da cabeceira, para orarmos pelas nossas ruas. Todos os dias temos de pedir a Deus para cuidar das nossas famílias e das nossas ruas. Terá Deus, coragem e força suficientes para fazer tudo isso? Senhor presidente, são dez famílias e pedimos de volta a nossa rua e não um esconso em forma de beco qual entrada dos currais.
E estamos nesse silêncio, senhor presidente, porque os donos do bairro ditam as regras e calam os nossos barulhos com “nós somos donos disto tudo”. E as dez famílias, sem donos, como ficarão sem entrada? Senhor presidente, são dez famílias que nos próximos dias viverão isoladas como doentes de lepra por falta de uma rua. Escreverei até que tenhamos a rua de volta, mais dez ou vinte cartas, senhor presidente.
A VP de Joe Biden terminou ontem uma visita a Zâmbia. Kamala Harris deve ter engolido em seco várias vezes durante um evento público em que o líder da oposição zambiana Fred M’membe denunciou a postura imperialista americana em África. O discurso de Fred é cáustico, viperino. A América não tem credenciais para ensinar democracia aos africanos. Etc. E perante Harris, o político recordou as partes mais negras da política americana em África. Ouçam! Um resumo escrito foi circulado várias vezes.
Fred M’membe, para quem não o conhecia, não é político de ocasião. É um político por vocação, no sentido de Weber. Mas um político que se fez na escola do jornalismo. Aliás, ele é um jornalista independente, premiado no estrangeiro, editor do príncipal semanário independente da Zâmbia, o The Post. Isso explica seu discurso, sua eloquência, sem cábulas nem rascunhos, perante uma plateia resvalando entre a hesitação e o cinismo.
É um jornalista habituado a lidar com a verdade, expondo-a nua e cruamente. Alguém que os tem no lugar. Kamala esperava um discurso de hosanas ao sonho americano? Talvez não! Mas saiu da Zâmbia com o nome de M’membe bem gravado na memória. Tufa!
“As primeiras eleições distritais, nos termos previstos na Constituição da República, têm lugar no ano de 2024.” É o que estabelece o n.º 3 da Constituição da República de Moçambique (CRM). Trata-se, pois, de uma consagração constitucional resultante da revisão da Constituição havida no ano de 2018, através da Lei n.º 1/2018 de 12 de Junho, a qual introduziu o polémico pacote de descentralização, incluindo a figura do Secretário do Estado na Província.
Ora, dúvidas não restam de que se operou uma alteração profunda da Constituição de 2004, na medida em que foi modificado o direito de sufrágio universal e de participação política no que as autarquias locais diz respeito, bem como da organização do poder político, para além de ter posto em causa a salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias fundamentais relativos à democracia ou ao processo da democratização do País à luz do princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 3 da CRM. Isto significa que as alterações dessas matérias constituições não deviam ter lugar sem a realização de referendo, o que foi completamente ignorando em violação do n.º 2 do artigo 300 da CRM que determina os limites matérias de revisão constitucional.
Em boa verdade, é preciso reconhecer que a revisão da Constituição de 2004 através da Lei n.º 1/2018 de 12 de Junho foi resultado da vontade e acordo de duas pessoas, nomeadamente Presidente da República, Filipe Jacinto Nyusi e o então Presidente da RENAMO, Afonso Dlhakama, sem qualquer participação pública relevante nos termos da lei para o efeito e em clara violação as regras previstas para a revisão constitucional daquela envergadura. Foi uma revisão constitucional alegadamente sustentada na urgência do problemático acordo de paz assinado entre Nyusi e Dlhakama, atendendo as eleições autárquicas e gerais realizadas em 2018 e 2019, respectivamente. Tratou-se, em bom rigor, de uma revisão constitucional completamente refém da vontade e ambição política e que de entre outros aspectos para o referido acordo de paz e de partilha de poder político previu a introdução de eleições distritais para o ano de 2024.
Correntemente, ouve-se, recorrentemente, a voz do comando presidencial que se opõe fortemente contra a realização das eleições distritais constitucionalmente previstas para o ano de 2024, no sentido de adiá-las para um outro período, alegadamente por falta de condições, sobretudo, materiais e financeiros, assim como falta de ambiente político e social favorável.
No entanto, não são apresentados estudos e evidências inequívocas ao público em geral que alimentam essa posição contra a materialização das eleições distritais em 2024. Curiosamente, para a efectivação dessa posição e vontade presidencial, há que se proceder com a revisão pontual da Constituição da República o que, do ponto de vista temporal, se mostra possível, apesar de revelar fragilidade da Constituição no que diz respeito a maneira como é revista e a forma irresponsável como é usada para firmar compromissos políticos dúbios e amainar os ânimos das forças políticas como parece estar a acontecer com o processo de constitucionalização de eleições distritais e a pretensão da anulação da sua funcionalidade e operacionalização no período constitucionalmente previsto.
Ainda que aparentemente possam estar preenchidos os requisitos para uma revisão pontual da Constituição da República de modo que esteja adiada a realização das eleições distritais, tal não deixa de representar uma grande traição à integridade constitucional para satisfazer a “líbido” política, considerando que há violação das expectativas criadas no seio do povo relativamente a governação descentralizada a nível do distrito, bem como violação da coerência e segurança jurídica no que os preceitos constitucionais dizem respeito, para além de se estar a desvalorizar e banalizar a CRM.
Mais preocupante ainda, é o facto de haver no sistema jurídico moçambicano deficiente mecanismo de protecção da integridade da CRM que é, vezes sem conta, pontapeada para alimentar interesses políticos, num contexto de quase ausência de debate público franco e profundo sobre a salvaguarda da Constituição mesmo a nível da academia e das principais instituições de justiça, incluindo o judiciário, com destaque para o Conselho Constitucional que é por definição o órgão de soberania, ao qual compete especialmente administrar a justiça, em matérias de natureza jurídico-constitucional, conforme resulta do disposto no n.º 1 do artigo 240 da CRM. Em bom rigor jurídico, o Conselho Constitucional mostra-se de mãos atadas para proteger a Constituição de tal modo que as suas atribuições e competências para esse efeito são, na verdade, cosméticas. Pior ainda, é o facto de não haver ousadia bastante, no estrito respeito pela lei e ética científica, para contrariar a vontade ou posição do Presidente da República, mesmo que essa posição esteja a pôr em causa a integridade da CRM.
Portanto, há necessidade urgente de adoptação de mecanismos mais claros de protecção da Constituição da República e garantir que a mesma não seja usada para expedientes políticos não sérios e que a sua revisão seja razoável, respeitosa dos requisitos definidos para tal e que seja feita mediante uma participação pública transparente. No mesmo sentido, urge melhor justificação para o adiamento das eleições distritais agendadas para 2024 com evidências inequívocas e objectivas. Mais do que isso, é preciso explicar a sociedade a real razão de se ter estabelecido constitucionalmente a realização das primeiras eleições distritais para o ano de 2024.
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos