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Ericino de Salema

Ericino de Salema

segunda-feira, 31 janeiro 2022 11:55

(Des)funcionalidades!

Um livro intitulado Descentralização em Moçambique – Filosofia da Reforma, o Presente e o Futuro, da autoria do Doutor Albano Macie, docente universitário, conselheiro do “Constitucional” proposto pela bancada parlamentar da Frelimo e, mais importante, um dos mais destacados autores materiais da revisão constitucional de 2018, está nas bancas há um mês, não estando, por motivos que desconheço, a suscitar debates públicos, como seria de supor, sobretudo pelas propostas que faz quanto à constitucionalmente aprazada eleição de administradores distritais e assembleia distritais a partir de 2024. O autor, que integrou a equipa de diálogo político entre o Governo e a Renamo, por indicação do Presidente da República, Filipe Nyusi, partilha algo interessante: “Do próprio processo de diálogo político, o distrito tinha sido esboçado como delegação de província, mas no último instante tornou-se numa entidade descentralizada, projectada para 2024”. Quando faltam pouco mais de dois anos para as eleições de 2024, num momento em que o ‘modelo bicéfalo’ que pressupõe a coabitação entre o Conselho Executivo Provincial, com o governador à cabeça, e os Serviços de Representação do Estado na Província, sob a égide do secretário de Estado, ainda se mostra gerador de conflitos, pelo menos em potencial, e de difuldades acrescidas de acesso aos serviços públicos por parte do cidadão, sobretudo por conta da sobreposição de competências, ou mera ausência de clareza quanto ao campo de cada um desses dois órgãos provinciais, Macie parece ser muito a favor de uma reforma constitucional, em sede da qual o distrito deixaria de ser entidade descentralizada para passar a ser “delegação da governação descentralizada provincial”. Reconhece que isso “poderia representar um recuo, mas um descompasso mais seguro e eficaz. Portanto, retomar-se-ia o modelo inicial do processo de diálogo político”. Os dados estão lançados. Vamos ao debate, para que possamos serenamente ponderar no que seja melhor para o país, ou fingimos estar tudo bem, para, no fim do dia, transferirmos as disfuncionalidades que estão a ser expostas ao nível da província para o de distrito? Mais: se se elegerem assembleias e administradores distritais em 2024, com que território, que não esteja sob a alçada de entidades democraticamente eleitas, ficarão a Assembleia Provincial e o governador de província? Duvido da sustentabilidade da mera descentralização de competências, mas sem soluções funcionais quanto ao território!  

sexta-feira, 10 setembro 2021 08:24

O juiz e a aplicação da lei no tempo!

Definitivamente, a lógica de aplicação da lei penal no tempo, no julgamento ora em curso na tenda da BO, não parece ser aquela das ciências jurídicas e da lei, mas outra, como voltou a verificar-se ontem. 
 
Em bom rigor, o juiz não pode, ao arrepio da lei e dos princípios do processo, aplicar uma lei do processo revogada, excepto se tal fosse de forma inequivocamente excepcional, donde resultasse benefício para o arguido. 
 
Até parecemos estar em presença de uma explicação a la carte, já que  se o juiz diz que se aplica a lei antiga, ele próprio não deveria ser o juiz da causa!
 
É que é exactamente por esta lei ter entrado em vigor de imediato que ele, o juiz Efigénio Baptista, ingressou como juiz da causa, visto que o novo CPP veio impor que um é o juiz que pronuncia, e outro é o que julga. 
 
Na verdade, ao decidir que é aplicável, no caso, o CPP de 1929 e não o de 2019, o juiz pode ter declarado a sua própria  incompetência  para julgar o caso, e nessa óptica, devia fazer-lhe a vez o juiz natural, no caso a juíza (Evandra Uamusse) que saiu do processo, por conta do CPP de 2019.
 
Claro que essa “competência inquinada” do juiz não passará despercebida em sede de um eventual recurso, o que gerará várias consequências, até de índole económica. 
 
A lógica, e isto é básico, é que a lei processual vem regular os procedimentos que estão em curso, não sendo questão do passado ou futuro. Por isso que a regra é essa de aplicação imediata, excepto, conforme já referi acima, no que mexer com direitos e liberdades, mormente quando não for favorável ao arguido.
(Ericino de Salema)

Um avanço democrático com elevados riscos para a Renamo

 

Por Ericino de Salema[1]

 

*  Actual presidente da Renamo se destaca como “homem de Estado” ao aceitar o Estatuto de Líder da Oposição, mas corre o risco de ver o seu partido transformado em “organização de massas” do partido no poder

 

*  Ossufo Momade perdeu, ainda que ilegalmente, o direito de fixar o seu próprio salário (privilégio que Armando Guebuza concedera a Afonso Dhlakama em 2014), mas ganhou direito a subsídio de reintegração...

 

Embora a Constituição da República de Moçambique (CRM) já conferisse um certo estatuto ao segundo candidato presidencial mais votado, ao considerar-lhe membro de pleno direito do Conselho de Estado, em termos de legislação ordinária nada havia no país até finais de 2014, momento no qual foi aprovado o Estatuto Especial do Líder do Segundo Partido com Assento Parlamentar, através da Lei número 33/2014, de 30 de Dezembro, que efectivasse tal situação.

 

Finalmente regulamentada no passado mês de Maio (mais de cinco anos depois da sua aprovação), através do Decreto número 27/2020, de 8 de Maio, o Estatuto Especial do Líder do Segundo Partido com Assento Parlamentar – que é, na prática, Estatuto do Líder da Oposição, apesar de o legislador ter-se escusado a usar essa terminologia – é visto, nalguns círculos, como uma “almofada política” visando, supostamente, acomodar Ossufo Momade, o líder da Renamo, qual sucedâneo do finado Afonso Dhlakama, que terá deixado claro, desde o início, que não aceitaria aquele estatuto.

 

Seja como for, o que é facto é que a outorga de estatuto especial ao líder da oposição ou do segundo maior partido com assento parlamentar e que não faça parte do governo não é algo exclusivo de Moçambique, mas uma prática em quase todas as democracias dignas do mundo, sendo ele representante de uma franja significativa da população e, por isso, merecedor de dignidade por parte dos próprios estados. Contudo, o contexto em que o mesmo surge[2] e se consolida em Moçambique há-de estar a suscitar as desconfianças que existem à volta do mesmo[3].

 

No Reino Unido da Grã-Bretanha e no Canadá, por exemplo, o líder da oposição, que deve ser sempre um parlamentar, tem um estatuto especial. No Reino Unido, o líder da oposição ganha anualmente perto de 145 mil libras esterlinas, o equivalente a pouco mais de 12 milhões de meticais, quase o dobro do salário de um parlamentar ordinário. No Canadá, a mesma figura leva anualmente para casa pouco mais de 260 mil dólares canadianos, o equivalente a cerca de 13 milhões de meticais, o mesmo que aufere um membro do governo.

 

Na África do Sul, o líder da oposição leva anualmente para casa cerca de 1.600.000,00 randes, o equivalente a cerca de sete milhões de meticais. Além do salário, possui uma panóplia quase infindável de benefícios e regalias, incluindo, por exemplo, cerca de 100 viagens pagas por ano, mobiliário para o seu gabinete de trabalho, assessoria paga pelo Estado, viagens pagas para os seus dependentes, acomodação luxuosa quando em actividade parlamentar e seguro de acidentes pessoais.

 

 O regime jurídico do Líder da Oposição é, na verdade, aplicável “ao dirigente do partido da oposição que, por acórdão do Conselho Constitucional de validação e proclamação dos resultados das eleições gerais, seja considerado o Segundo Partido Mais Votado”[4], num quadro em que “É Líder do Segundo Partido com Assento Parlamentar aquele que, nos termos dos respectivos estatutos, reconhecidos pelo órgão competente do Governo, tenha sido legitimamente designado seu dirigente máximo”[5].

 

Se o diploma legal que aprova o Estatuto do Líder da Oposição estabelece que “o primeiro cidadão que beneficiar do presente estatuto tem o direito de fixar a [sua] remuneração e os subsídios correspondentes, nos termos da lei”[6], o regulamento do respectivo estatuto vem estabelecer, em moldes diversos, que “o Líder do Segundo Partido com Assento Parlamentar tem direito à remuneração equiparada à da função de Vice-Presidente da Assembleia da República”[7].

 

Sendo pouco crível que Afonso Dhlakama, que era líder da Renamo aquando da aprovação e entrada em vigor da lei, ainda que carecesse ainda de regulamentação, tenha escolhido a sobredita remuneração mensal por equiparação – até porque parece não restarem dúvidas de que ele abdicou dessas benesses –, o que é certo é que acha-se evidente um downgrading de Ossufo Momade…e com uma clara violação à técnica jurídica e à hierarquia das leis, não sendo aceitável que um regulamento contrarie uma lei, que lhe é superior.

 

Mesmo assim, e ainda que Ossufo Momade mantenha o amplo leque de direitos e regalias constantes do Estatuto do Líder da Oposição – tendo, aliás, até conseguido de bónus o direito ao “subsídio de reintegração”, tal como se desenvolverá mais adiante –, para algumas situações concretas ele é equiparado aos membros do Governo (ministros).

 

Tal é o caso, por exemplo, da viatura de trabalho, estabelecendo o Estatuto do Líder da Oposição o seguinte: “o Líder do Segundo Partido com Assento Parlamentar tem direito (…) a uma viatura protocolar da marca, cor, série e cilindradas idênticas aos dos membros do Governo”. Do parque automóvel de Ossufo Momade, constam ainda uma viatura ligeira, para o seu “expediente residencial”, além de uma outra para alienação.

 

Dignidade genuína?

 

Se, tal como dissemos acima, a atribuição de estatuto especial ao líder da oposição é algo por demais normal em democracias avançadas, em Moçambique tal é visto como tendo o potencial de enfraquecer o segundo maior partido da oposição, probabilidade que há-de estar a ser considerada tendo-se como base a “jurisprudência” fixada por Afonso Dhlakama, alegadamente de recusar tal estatuto.

 

“As pessoas confundem esse estatuto como se fosse para Dhlakama. Por isso andam rumores de que fui comprado por uma casa e salário…mas não é isso que eu quero. Eu quero uma democracia efectiva no país”, terá assim reagido o falecido líder da Renamo, quando interpelado a propósito por jornalistas na cidade da Beira[8]. Dias depois, em artigo intitulado “AR legaliza instrumento de golpe eleitoral”, o CanalMoz referiu que “Dhlakama já disse que não quer tal estatuto”[9].  

 

Dada a relevância política em ser-se oposição oficial, num contexto em que o líder do partido político nessa condição é o líder formal da oposição, há até partidos políticos que aplicam-se ao máximo para conseguirem esse desiderato, tendo presente, à partida, que ganhar eleições é-lhes algo impossível, pelo menos em certa eleição em concreto. É o que se viu, por exemplo, com o partido Economic Freedom Fighters (EFF) nas eleições de 2019, na vizinha África do Sul, nas quais o seu objectivo cimeiro era destronar o Democratic Alliance dessa posição. 

 

A essência do que significa liderar a oposição é nestes termos descrita pelo político neo-zelandês Don Brash, na altura líder do National Party:

 

“O principal papel da oposição é questionar o governo do dia e pô-lo a prestar contas ao público. O partido que é oposição oficial representa uma alternativa ao governo, sendo responsável em desafiar as políticas do governo do dia e em produzir políticas alternativas onde tal se mostrar apropriado”[10].

 

Não sendo barato fazer política a sério e sendo os partidos políticos plataformas por excelência para a contínua participação dos cidadãos na gestão da coisa pública, é por isso que todos os partidos com assento parlamentar recebem dos governos dos seus países, Moçambique incluso, recursos financeiro para as suas actividades políticas. O que se assume como líder da oposição recebe muito mais quando comparado com os demais, competindo-lhe fazer essas políticas alternativas. 

 

Comumente, a oposição oficial possui acesso privilegiado aos órgãos públicos de comunicação social, para neles fazer réplica política. Em Moçambique, a CRM[11] reconhece esse direito aos partidos representados na Assembleia da República (AR), mas o mesmo sempre se manteve letra morta, supostamente, tal como tem alegado, ao longo dos anos, a Televisão de Moçambique (TVM) e a Rádio Moçambique (RM), por carecer de regulamentação. Estranhamente, nem na lei que aprova o Estatuto do Líder da Oposição, muito menos no decreto que a regulamenta, tal se acha finalmente acolhido, o que é uma oportunidade perdida para a Renamo fazer política a sério.

 

Condições teóricas para a Renamo melhorar, mas…

 

Numa altura em que a sociedade ainda digere as notícias sobre os subsídios de reintegração que são legalmente atribuídos a deputados e outros governantes em Moçambique, ainda que em desarmonia com o princípio constitucional de justiça social, o decreto que regulamenta[12] o Estatuto do Líder da Oposição trás uma “grande inovação”: a atribuição, ao político que seja dirigente máximo do segundo partido mais votado, de um subsídio de reintegração.

 

O mesmo “corresponde a 75% do vencimento base, por cada doze meses de exercício efectivo do cargo, desde que a perda da qualidade de Líder do Segundo Partido com Assento Parlamentar não tenha sido fundada em condenação à pena de prisão maior, pela prática de crime doloso[13]”.

 

Além de remuneração equivalente à de Vice-Presidente da AR, subsídio de representação (20% do salário base), meios de transporte, subsídio de comunicação e viagem em primeira classe, figuram na lista das regalias do líder da oposição moçambicana, que neste momento é Ossufo Momade:

 

§  Gabinete de Trabalho, alocado, equipado e mantido pelo Ministério da Economia e Finanças (MEF), com pessoal de confiança (assessor, assistente financeiro, secretário particular, motorista e estafeta) pago por fundos públicos;

 

§  Residência oficial, igualmente alocada, equipada e mantida pelo MEF, de que faz parte pessoal de apoio (motorista, cozinheiro, servente de mesa, servente de limpeza, mainato e jardineiro) pago pelo Estado;

 

§  Assistência médica e medicamentosa para o líder da oposição como tal, bem assim para o seu cônjuge e filhos menores e incapazes;

 

§  Regime especial de segurança e protecção, que sejam exclusivamente garantidos pela Polícia da República de Moçambique;

 

§  Ajudas de custo, em caso de deslocações nas missões de serviço do Estado, dentro ou fora do país, incluindo as incumbidas pelo Chefe do Estado.

 

Quanto às contratações do acima referido pessoal de confiança, o regulamento do Estatuto do Líder da Oposição diz que os mesmos são engajados por via de contrato por tempo certo, nos termos da Lei do Trabalho, para um período máximo de cinco anos, carecendo esses contratos de visto do Tribunal Administrativo, do que ressalta mais um problema jurídico: a prazo certo, a Lei do Trabalho não permite contratações por períodos superiores a dois anos, renovável uma única vez, o que perfaz um máximo de quatro anos[14].

 

Embora existam os que olhem com desconfiança à flexibilidade de Ossufo Momade de se alinhar com o que sucede por outras geografias, o facto de ele não estar a associar a questão da consolidação do Estatuto do Líder da Oposição com a regulamentação, por exemplo, de institutos jurídicos que possuem dignidade constitucional há cerca de 30 anos, como a réplica política, pode dar razão a leituras tais, sobretudo num quadro em que, como que à guisa de um clientelismo dissimulado, até ganha o direito ao subsídio de reintegração, mas sem se movimentar substancialmente no sentido de essas condições materiais se traduzirem em investimento qualitativo da democracia moçambicana.

 

Registos em nosso poder indicam que a única vez que a Renamo – que em todas as eleições legislativas realizadas no país foi sempre, formalmente, o segundo partido mais votado – constituiu, de forma sistemática, um ‘Governo Sombra’, qual apanágio da oposição oficial, foi em princípios de 2005, meses depois do recrutamento, a partir da academia, de políticos como Eduardo Namburete, Ismael Mussá, João Colaço e Manuel de Araújo.

 

Contudo, Ossufo Momade tem uma soberba oportunidade de desmentir os seus críticos, transformando a Renamo numa oposição cada vez mais profissional, tendo nisso sempre presente os riscos associados ao Estatuto de Líder da Oposição, sob pena de, sem se aperceber, tornar o partido de que é dirigente máximo na mais nóvel organização de massas do partido no poder, a Frelimo.

 

Eis algumas das acções que, a nosso ver, Ossufo Momade deveria considerar urgentemente, para honrar a contribuição dos moçambicanos...até com subsídio de reintegração:    

 

1.           Ossufo Momade deve tornar público o Plano de Actividades e Orçamento para o seu gabinete, com o que estará a efectivar a prestação de contas aos contribuintes, em geral, e, em particular, aos moçambicanos que votaram em si e nele acreditam como “alternativa política” para Moçambique. Idealmente, poderia, mesmo com recurso às Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), elaborar o referido plano de forma participativa;

 

2.           Sendo, enquanto líder da oposição, materialmente um servidor público, Ossufo Momade deve ter presente que lhe são aplicáveis as normas éticas constantes da Lei de Probidade Pública, além, naturalmente, das normas de gestão de fundos públicos, devendo ter presente que agir em sentido desconforme com instrumentos tais pode ser-lhe, um dia, politicamente desvantajoso e fatal;

 

3.           Ossufo Momade deve considerar fortemente a formação de um ‘Governo Sombra’, que seja, de resto, responsável pela execução do seu “programa quinquenal”, com o que estará a fazer oposição política de forma sistemática e justificando os fundos públicos que lhe são alocados entanto que líder da oposição;

 

4.         Por outro lado, há que cuidar da aprovação de uma Lei de Réplica Política, com a qual passaria, por exemplo, a ter acesso aos media públicos, sucedendo o mesmo com os membros do seu ‘Governo Sombra’;   

 

5.           Desenvolver uma agenda que mostre que o estatuto a ele atribuído não é uma dádiva do poder do dia, mas um processo institucional de consolidação da democracia.

  

[1] O autor é Director Residente do EISA em Moçambique. O texto foi retirado do Policy Brief 6 do EISA, publicado ontem, 9 de Junho.

 

[3] Reinstalação nos meios urbanos de Ossufo Momade, presidente da Renamo, no âmado do processo de Desarmamento, Desmobilização e Reintegração (DDR).

 

[5] Número 2 do artigo 2 da Lei número 33/2014, de 30 de Dezembro.

 

[7] Artigo 2 do Decreto número 28/2020, de 8 de Maio.

 

[11] Artigo 49.

 

[13] Número 2 do artigo 10 do Decreto número 28/2020, de 8 de Maio.

 

Companheiros, confesso que algo me possa ter escapado e, aprioristicamenente, peço desculpas por isso: a assinatura, ontem, do “Acordo de Paz Definitiva e Reconciliação Nacional de Maputo” terá significado, automaticamente, a restrição de alguns direitos fundamentais, em particular a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa? Noto, sem esforço, situações claras de ataques verbais, “vilipêndio público”, acompanhados de catalogações como “inimigos da paz”, dirigidas em particular a cidadãos, jornalistas e órgãos de informação que, mesmo saudando, naturalmente, a “paz definitiva” manifestam reservas quanto à sua sustentabilidade, sobretudo enquanto não se estancarem os aspectos que podem estar na origem de situações ou de ausência de paz efectiva ou de paz pobre. Bem, me dirão que os que “descarregam” sobre os que manifestam as já citadas reservas, a coberto da própria Constituição da República, estão também a exercer a sua liberdade de expressão. Gostaria de ser ingênuo, sobretudo estando por demais claro que todos os “descarregadores” pertencem ao mesmo clube político. A razão, diria o filósofo, tem, pois, razões que a própria razão desconhece!!!

quinta-feira, 21 março 2019 14:44

Carta ao Presidente da República

Ericino de Salema

- A propósito do drama humano causado pela infeliz combinação do ciclone IDAI e cheias

 

Excelentíssimo Senhor Presidente da República,

 

Em primeiro lugar, felicito-o por ter chegado, em tempo oportuno, à conclusão de que o não cancelamento da Visita de Estado ao Reino de Eswatini, e que iniciou poucas horas depois de o ciclone IDAI fazer estragos na cidade da Beira e noutros pontos do centro do país e do extremo norte da província de Inhambane, não fora uma decisão feliz. É próprio de pessoas responsáveis se reconciliarem consigo mesmas quando se apercebem de que “meteram água”.

 

O facto de ter saído do Eswatini directamente para o sobrevoo das regiões afectadas sugere, por um lado, que se o Senhor Presidente da República tivesse tido noção, em tempo oportuno, da real dimensão da tragédia que estava iminente, muito provavelmente não teria abandonado o país e, por outro lado, que se não coibiu de agir como Chefe do Estado e, por essa via, cuidar da superintendência das operações.

 

A realização da última sessão do Conselho de Ministros na cidade da Beira foi, quanto a mim, uma decisão feliz do Senhor Presidente da República. Sobre a não participação do representante eleito dos beirenses nesse encontro, Daviz Simango, naturalmente como convidado, ainda não tenho opinião formada, havendo “informações contraditórias” quanto ao que terá concorrido para isso. Mas se o Senhor Presidente tiver tomado a decisão de o marginalizar, não o convidando, saiba que terá perdido uma extraordinária oportunidade de se posicionar como Presidente da República de todos, sem “cor partidária” no que aos assuntos de Estado diz respeito.

 

Excelentíssimo Senhor Presidente da República,

 

Como bem sabe, a gestão de eventos extremos no país tem sido plataforma para os malandros colocarem em prática os seus apetites criminais e animalescos. E esses malandros acham-se presentes em várias esferas, desde a esfera pública à privada, passando pelas igrejas e associações de vária índole, sem pôr de lado as acções desenvolvidas por grupos informais de titulares de direitos (cidadãos aqui inclusos!), sejam eles moçambicanos ou não.

 

Quando foi das cheias de 2000, por exemplo, uma avaliação especializada à resposta dada às mesmas, como o Senhor Presidente há-de estar recordado, chegou à conclusão de que houvera muitos malabarismos, incluindo o “misterioso desaparecimento”, do Instituto Nacional de Gestão de Calamidades (INGC), de pouco mais de 100 barcos que tinham sido doados ao país. No mesmo contexto, negligência ou imperícia gerencial ou outra coisa fizera com que toneladas de mantimentos apodrecessem nos armazéns sob a égide do INGC, havendo gente extremamente necessitada. Alguns gestores de topo do INGC foram até julgados por um tribunal de Maputo.

 

Sobre o INGC, não será exagerado recordar as palavras de Leonardo Simão, na altura ministro dos Negócios Estrangeiros e Cooperação (que tutelava na altura o INGC), sobre a mudança de nome de DPCCN (Departamento de Prevenção e Combate às Calamidades Naturais) para INGC, proferidas numa conferência no Hotel Rovuma, em Maputo: “Concluímos que a imagem do DPCCN estava muito gasta, devido a problemas de gestão e até fraudes, daí a mudança de nome”. Entretanto, o chefe máximo foi mantido, não tendo havido evidências de mudanças substanciais nos sistemas de gestão.

 

Excelentíssimo Senhor Presidente da República,

 

A observância de uma gestão transparente, inclusiva e profissional da resposta ao desastre humanitário, que constitui o leit motiv desta missiva, pode nos ajudar, como país, a maximizar os esforços tendentes à mitigação dos impactos negativos do mesmo (desastre humanitário). Nisso, a centralidade do Governo de que o Senhor Presidente da República é chefe constitucional é mais do que óbvia.

 

Como bem sabe, o Senhor Presidente da República disse, quando proferia o seu ´Discurso Oficial de Investidura´, ali na Praça da Independência, em Maputo, a 15 de Janeiro de 2015, a dado passo do mesmo, que “...promoverei uma governação participativa fundada numa cada vez mais confiança e num efectivo espírito de inclusão”, pouco depois de ter referido, na mesma ocasião, que “O meu compromisso é o de respeitar e fazer respeitar a Constituição e as leis de Moçambique”.

 

Por falar em leis, no quadro da promoção de uma gestão transparente, inclusiva e profissional da resposta ao desastre humanitário essencialmente pelo centro do país, temos, há já sete anos, um diploma legal que nos ajudaria a promover uma situação tal, nomeadamente a Lei número 7/2012, de 8 de Fevereiro, que estabelece as bases gerais da Organização e Funcionamento da Administração Pública, também conhecida por LEBOFA.

 

A referida lei, que se aplica aos órgãos e instituições da Administração Pública, bem assim às autarquias locais e demais pessoas colectivas públicas, como o INGC, possui um artigo interessante sobre a participação do cidadão na gestão da coisa pública (artigo 14), que a seguir o transcrevemos na íntegra:

 

“Artigo 14

 

(Participação do cidadão na gestão da Administração Pública)

 

1.            Os órgãos colegiais da Administração Pública promovem a integração da sociedade civil interessada na sua composição.

2.            Para os efeitos do disposto no número anterior, são considerados membros da sociedade civil os representantes de associações, sindicatos, organizações não-governamentais ou quaisquer outras formas de organização colectiva legítima, cujo objecto esteja relacionado com as atribuições de determinado órgão ou instituição da Administração Pública.

3.            O disposto nos números anteriores não é extensivo aos partidos políticos.”

 

A democratização de órgãos colectivos da Administração Pública e de outras pessoas colectivas públicas, a partir dos seus órgãos colegiais, seria, Senhor Presidente, uma boa notícia para a nossa jovem democracia. E, atentos ao causado pelo ciclone IDAI e cheias, bem assim às lições de um passado (relativamente) recente, aplicar a fórmula de inclusão sugerida pela LEBOFA ao INGC afigura-se mais do que urgente. E, a partir dali, expandir a outras entidades públicas, como os Conselhos de Administração da Rádio Moçambique (RM) e da Televisão de Moçambique (TVM), que, em mais um ano eleitoral, precisam de ser factor de estabilidade e não o contrário.

 

Obrigado por qualquer atenção dispensada, Senhor Presidente da República.

Ericino de Salema, aos 21 de Março de 2019

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