Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI
Dércio Tsandzana

Dércio Tsandzana

Tsandzane min

Numa época em que os três (3) principais partidos políticos já se decidiram sobre as escolhas dos seus respectivos cabeças-de-lista para as Eleições Municipais que se avizinham, é oportuna a realização de uma breve análise sobre o perfil do(a)s candidato(a)s, não necessariamente do ponto de vista do percurso que cada um(a), mas relativamente à sua dimensão etária, pois vivemos num País onde a média de idade é colocada no intervalo de 16-17 anos, o que reflecte, em grande medida, sobre a população eleitoral presente e futura.

 

Contudo, antes de abordar o caso específico de Moçambique, importa destacar que a questão da idade na política sempre foi um tema controverso. Por exemplo, para Percheron (1989)[1], falar de idade, no domínio da Sociologia Eleitoral, é, antes de mais, pensar na oposição entre os eleitores mais jovens e os mais velhos, entre os que entram e os que saem da arena política. Ou seja, significa projectar a demografia eleitoral e avaliar o peso numérico dos fluxos de entrada e saída do eleitorado, visando comparar a composição dos grupos etários mais jovens e mais velhos em termos de características essenciais para uma análise do comportamento eleitoral (sexo, nível de instrução, grupo socioprofissional, local de residência ou, ainda, património).

 

Aliás, como explica Muxel (2011)[2], não há nada mais natural do que a idade. Ser jovem ou velho, ter uma data de nascimento ou envelhecer com o passar do tempo – tratam-se, pois, de elementos objectivos da condição humana que ninguém contesta.

 

Uma breve pesquisa relativamente ao significado da palavra idade, consultados diferentes dicionários, sugere tratar-se de duração normal da vida, medida desde o nascimento até à morte. Ou seja, a idade é uma unidade de tempo, a medida da vida humana. Mas é, também, uma fracção dessa duração.

 

Além disso, a idade abrange não só todo o processo de envelhecimento, mas também os graus específicos de uma escala contabilística de uma duração de existência. Refere-se a uma dupla perspectiva: diacrónica e sincrónica. Podemos ter consciência da nossa idade avançada e, ao mesmo tempo, reconhecermo-nos como crianças ou adultos, jovens ou velhos, ou mesmo entre duas idades. Nisto reside a riqueza e a ambiguidade de um conceito ao qual estão associados muitos pressupostos e ideias preconcebidos.

 

Ainda para Muxel (2011), se analisarmos os efeitos da idade na política, utilizando diferentes métodos e domínios de observação, a primeira conclusão é óbvia: A idade é claramente uma variável fundamental para a compreensão dos fenómenos políticos. Mais do que isso, através dela se introduz o parâmetro fundamental do tempo e, com este, a duração da vida, bem como porque permite explicar a transformação inevitável de toda a experiência humana. Porém, o seu envolvimento na estruturação e evolução das atitudes e dos comportamentos políticos dificilmente dá origem a regularidades infalíveis ou a lógicas facilmente identificáveis. Por sua vez, os seus efeitos directos, embora presentes, permanecem ténues e relativamente resistentes à análise.

 

Ademais, os demógrafos estão habituados a considerar a idade como uma variável intermédia, isto é, a que se situa sempre entre duas águas, nem exclusivamente dependente nem exclusivamente independente, que, sobretudo, reforça, fortalece ou atenua os efeitos de outras variáveis consideradas mais decisivas e discriminantes. Todavia, a idade, por si só, não diria nada, mas combinada com outros elementos da situação, desempenharia todo o seu papel.

 

Alguns autores[3] explicam que a idade é um conceito maleável, pelo que não há um limiar objectivo que separe os jovens dos indivíduos de meia-idade ou idosos. Há, pelo menos, quatro (4) pontos de discórdia que tornam os jovens difíceis de definir. Primeiro, os indivíduos podem ter uma percepção diferente de si próprios com a mesma idade numérica. Por exemplo, alguém com 50 anos pode identificar-se como jovem, de meia-idade ou velho. Segundo, o significado de idade é específico do contexto. Por exemplo, ter 30 anos pode ter uma conotação diferente num contexto urbano de um país com rendimentos elevados em comparação com o contexto rural de um país com rendimentos baixos. No primeiro caso, a esperança média de vida pode muito bem rondar nos 80 anos, ao passo que no segundo pode ser substancialmente inferior.

 

Terceiro, a idade é um estado temporário da vida de um indivíduo. Isto contrasta com as características de muitos outros grupos – por exemplo, ter uma linhagem étnica – que raramente muda à medida que as pessoas crescem. E, por último, e de forma relacionada, não está claramente delimitado o limite superior ou inferior do intervalo de idade que define o grupo “juventude’’ ou outros grupos etários como a meia-idade ou os idosos.

 

Actualmente, tornou-se evidente associar a idade como sinónimo de falta de interesse pela política ou, ainda, ausência de capacidade dos mais jovens em assumir tal poder. Dalton (2017)[4] já havia mostrado que os cientistas políticos tem estado a debater por que razão a geração do milénio (nascida entre 1981/1996) está a desinteressar-se da política nas democracias contemporâneas. Baseando-se no caso dos Estados Unidos da América (EUA), já se demonstrou que se regista, nas gerações mais recentes, um claro declínio da participação eleitoral no período 1967-2014. Em contrapartida, os aumentos da participação ao longo do ciclo de vida são mais comuns nas actividades não eleitorais (manifestações, petições ou boicotes). Ambos factores influenciam a participação, mas de formas contrastantes para diferentes modos de acção colectiva.

 

Adicionalmente, Stockemer e Sundström (2023)[5] explicam que as pessoas que tomam decisões políticas em todo o mundo tendem a ser muito mais velhas do que o eleitor de idade média, pelo que, os parlamentos e gabinetes não são representativos da população em geral. Este facto tem consequências: arrisca-se a favorecer políticas orientadas para os interesses dos grupos mais velhos, podendo afastar os jovens do voto e levar os partidos a apelar (ainda mais) aos eleitores mais velhos. Relativamente a isso, alguma literatura chama a tendência de afastamento dos jovens como sinónimo de apatia política ou desencantamento partidário[6].

 

Outros autores[7], por sua vez, argumentam que os jovens não só se abstêm nas eleições, como também optam por não participar em muitas vias tradicionais de aprendizagem e desenvolvimento político, tais como ler jornais ou assistir aos noticiários televisivos.

 

Uma interpretação comum dos baixos níveis de participação eleitoral entre os jovens eleitores sugere que eles são apáticos e integram uma geração que não se preocupa com as questões políticas – de facto, uma geração egoísta e materialista.[8] Todavia, alguns trabalhos[9] contrastam essa realidade, pois ilustram que os jovens estão dispostos a empenhar-se politicamente, mas estão desmotivados pelo enfoque e pela natureza do discurso e da prática política dominantes, que, na visão de muitos analistas, exclui e ignora os seus interesses e necessidades.

 

Retomando ao caso específico de Moçambique, destaca-se que, recentemente, a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo) e o Movimento Democrático de Moçambique (MDM) apresentaram as suas candidaturas para as Eleições Autárquicas de 2023. Metodologicamente, ao invés de analisarmos todos os 65 Municípios onde os três (3) partidos políticos concorrerão, por limitação de dados e complexidade do próprio exercício, quisemos apenas considerar os localizados nas capitais provinciais, e obtivemos os seguintes dados em termos de idade dos cabeças-de-lista, conforme a tabela abaixo[10]:

 

Partido

Cabeça-de-lista

Idade

Município

Frelimo

Rasaque Silvano Manhique

40

Maputo

Renamo

Venâncio Mondlane

49

MDM

Augusto Mbazo

45

 

Frelimo

Júlio José Parruque

45

Matola

Renamo

António Muchanga

57

MDM

Augusto dos Santos Pelembe

45

 

Frelimo

Adamo Ossumane Adamo

55

Xai-Xai

Renamo

Félix Tivane

36

MDM

Manasse Alexandre Mulhovo

33

 

Frelimo

Benedito Eduardo Guimino

53

Inhambane

Renamo

Vitalino Macauze

39

MDM

Constantino Manuel Sevene

43

 

Frelimo

Stela Pinto Novo Zeca

46

Beira

Renamo

Geraldo de Carvalho

51

MDM

Albano Carige

52

 

Frelimo

João Carlos Gomes Ferreira

50

Chimoio

Renamo

Manuel Macocove

55

MDM

Celestino Tapero

35

 

Frelimo

César de Carvalho

70

Tete

Renamo

Ricardo Tomás

49

MDM

Celestino Bento

59

 

Frelimo

Lourenço Acide Abdul Gani

44

Quelimane

Renamo

Manuel de Araújo

53

MDM

Bruno Hubre Dramusse

47

 

Frelimo

Manuel Rodrigues

58

Nampula

Renamo

Paulo Vahanle

63

MDM

Carlos Saíde Chaúre

52

   

Frelimo

Satar Abdul Gani

36

Pemba

Renamo

Amido António

44

MDM

Machude Chale Momade

41

   

Frelimo

Luís António Saíde Jumo

43

Lichinga

Renamo

Orlando Augusto

57

MDM

Pedro Baptista Salimo

55

 

Ora, não há consenso partilhado relativamente à idade juvenil no País, pelo que tal se coloca entre a faixa etária dos 15/18 até aos 35 anos. Para uma primeira leitura da tabela acima, como hipótese, consideramos ser importante recuperar o discurso segundo o qual “os jovens podem vender o País’’ (General Hama Thai, 2008). Como lógica explicativa, a ideia subjacente girava em torno de uma aparente desconfiança sobre a capacidade dos jovens em operar mudanças de âmbito político. Contudo, tal se deve questionar, sobretudo quando se usa a lógica do “adultismo político’’ como razão da não inclusão dos jovens.[11]

 

Ainda no que tange à tabela, é evidentemente notório que a média de idades está acima dos 35 anos. Porém, excepção seja feita para o caso do partido MDM, em que Manasse Mulhovo (Xai-Xai) e Celestino Tapero (Chimoio) surgem com 33 e 35 anos, respectivamente. Em relação ao partido Frelimo, a maioria dos candidatos alistados está acima dos 40 anos, exceptuando-se Satar Gani (Quelimane) e Rasaque Manhique (Cidade de Maputo), que têm 36 e 40 anos, respectivamente. No caso do partido Renamo, pelo menos dois dos seus candidatos estão abaixo dos 40 anos. Trata-se, pois, de Félix Tivane (Xai-Xai) e Vitalino Macauze (Inhambane), com 36 e 39 anos, respectivamente.

 

Além do quesito idade, é igualmente notório o “deserto’’ absoluto de mulheres candidatas em quase todos os partidos políticos, excepto a Frelimo, na Beira. Para nós, a leitura dos dados acima revela um cenário sombrio, no que respeita à representação política vs. idade. Neste contexto, uma breve explicação ajudaria a reflectir melhor sobre a necessidade de se operacionalizar a representação política dos jovens como a percentagem de políticos num determinado escalão etário, ou a necessidade de se comparar a percentagem de jovens adultos numa assembleia com a de jovens adultos na população.

 

Ora, as análises que apoiam uma maior representação política dos jovens tendem a discutir a representação de grupos sociais. Este argumento se baseia na teoria de uma “política de presença’’[12], segundo a qual grupos sociais específicos têm direito a uma representação descritiva porque têm sido sistematicamente desfavorecidos. Todavia, um contra-argumento indica que não devemos prestar atenção a um grupo com o qual os indivíduos têm apenas uma identificação temporária. Este raciocínio sugere que a exclusão da política que os jovens podem enfrentar durante os primeiros anos de vida pode ser compensada pelas vantagens de que se beneficiarão mais tarde.

 

Outrossim, ao nível dos partidos, três (3) factores parecem ser moderadamente importantes para os jovens[13]: (1) a idade do partido, (2) a idade do líder do partido e (3) a ideologia do partido. Relativamente aos dois primeiros, alguns indícios sugerem que os partidos mais jovens tendem a nomear representantes mais jovens, e o mesmo se aplica aos líderes partidários mais jovens. Relativamente à ideologia partidária, parece haver uma correlação moderada entre uma ideologia de esquerda e uma maior representação dos jovens, com a ressalva de que esta associação pode não se aplicar aos partidos comunistas. Individualmente, os jovens candidatos que já acumularam experiência política tendem a ser mais bem-sucedidos nas eleições, em média, quando comparados aos jovens sem essa experiência. No caso de Moçambique, tal fica por confirmar ou desmentir perante o actual cenário político em debate.

 

Por fim, a teoria segundo a qual os mais jovens são incapazes perante a política, não passa de uma retórica dos actores que querem para si mesmos o domínio totalitário sem partilha. A hipótese que explica a nossa colocação prende-se com o facto de que quanto mais nova for uma geração, ela tende a ter uma melhor educação – maior nível de formação e compreensão dos fenómenos[14], razão pela qual, outorgá-la de incapaz ou apática sobre questões políticas é um argumento meramente redutor e falacioso.

 

Em nota conclusiva, podemos apoiar a nossa análise nos argumentos já avançados pela literatura[15] em torno da representação política dos jovens na era contemporânea, através dos quais se pode sublinhar três (3) componentes: (1) os jovens têm interesses específicos, que não são representados no domínio político actual; (2) há um preconceito dos idosos em relação aos jovens na arena política; e (3) os baixos níveis de representação política dos jovens alimentam um círculo de alienação da(s) juventude(s).

 

[1] Percheron, A. (1989). Chapitre 9. Age, cycle de vie, génération, période et comportement électoral. In Daniel Gaxie (Ed.), Explication du vote: Un bilan des études électorales en France (pp. 228-262). Paris: Presses de Sciences Po.

[2] Muxel, A. (2011). Introduction / Qu'est-ce que l'âge en politique ? In Anne Muxel (Ed.), La politique au fil de l’âge (pp. 15-30). Paris: Presses de Sciences Po.

[3] Harris A., Wyn J. & Younes S. (2010). Beyond apathetic or activist youth: “Ordinary” young people and contemporary forms of participation. Young, 18, 9-32.

[4] Dalton, R. (2017). Age, Generations, and Participation – The Participation Gap: Social Status and Political Inequality. Oxford Academic.

[5] Stockemer, D. & Sundström, A. (2023), Age Inequalities in Political Representation: A Review Article, Government and Opposition, 1–18

[6] Lardeux, L. & Tiberj, V. (2021). Générations désenchantées? Jeunes et démocratie. Paris. Institut national de la jeunesse et de l’éducation populaire. Documentation Française.

[7] Cammaerts, B., et al. (2016). Participation of Youth in Elections: Beyond Youth Apathy. In: Youth Participation in Democratic Life. Palgrave Macmillan, London.

[8] Op cit.  Cammaerts, B. et al. (2016).

[9] Juris, J. S. & Pleyers, G. H. (2009). Alter-activism: emerging cultures of participation among young global justice activists. Journal of Youth Studies. 12, 57–75.

[10] Idade actual ou anos a completar até ao dia 31 de Dezembro de 2023.

[11] Tsandzana, D. (2022). The political participation of youth in Mozambique’s 2019 general elections. Journal of African Elections, 21(1), 95-119.

[12] Stockemer, D. & Sundström, A. (2023). Age Inequalities in Political Representation: A Review Article. Government and Opposition, 1-18.

[13] Stockemer, D. & Sundström, A. (2022) Youth without Representation: The Absence of Young Adults in Parliaments, Cabinets, and Candidacies. Ann Arbor: University of Michigan Press.

[14] Ver Vincent Tiberj/The Conversation, Les jeunes et le politique: au-delà du vote, des formes d’engagement multiples, March 2022.

[15] Op cit. Stockemer, D. & Sundström, A. (2023).

Tsandzane min

Não nos parece ser contraditório afirmar que o espaço digital veio ‘revolucionar’ a maneira como comunicamos. No campo das mobilizações sociais, Manuel Castells (2012) já havia designado tal realidade com o que chamou de ‘’redes de indignação e esperança’’ [Networks of Outrage and Hope], onde examinava o papel das redes sociais da Internet na formação do activismo social e político. Concentrando-se na Primavera Árabe e no Movimento Ocupar, Castells argumenta que tais movimentos foram organizados através de tecnologias de comunicação em rede, que permitiram aos activistas partilhar informação e coordenar as suas acções de forma rápida e eficiente.

 

Castells também explora os contextos culturais e políticos que deram origem a estes movimentos, argumentando que foram alimentados por um sentimento de frustração com os sistemas políticos existentes e por um desejo de maior justiça social. O autor enfatiza, por fim, a importância do horizontalismo e da organização sem líderes nestes movimentos, bem como o papel dos jovens na condução da mudança social.

 

Numa outra dimensão, encontramos o anglicismo « cancel culture » ou então ‘’cancela a cultura’’, um acto que designa um conjunto de factos relacionados com a ‘’nova censura’’ no espaço digital, cujo campo privilegiado de manifestação diz respeito à universidade e à cultura. Este fenómeno surgiu acoplado ao movimento Me Too, em 2017, e nessa altura a intenção primordial era não mais do que ostracizar os agressores, ora denunciados pelas vítimas, exigindo que exibissem comportamentos de reparação e de arrependimento para com as mesmas. Teoricamente, diga-se, a ‘’cultura do cancelamento’’ pode ser descrita como a tentativa activa de silenciar uma pessoa que expressou uma opinião que ofendeu alguém quer tenha sido intencional ou não.

 

No campo político, o historial remonta para Junho de 2020, quando a revista americana Harper’s publicou uma carta aberta intitulada ‘’A Letter on Justice and Open Debate”. Na mesma carta, era referido que a resistência ao então Presidente Donald Trump não devia conduzir os cidadãos ao dogmatismo ou à coerção. Tal carta foi co-assinada por 150 escritores, artistas e jornalistas, sendo que entre eles estavam várias figuras históricas da esquerda americana, como Noam Chomsky, Gloria Steinem e Michael Walzer. A carta apontava, assim, um clima intelectual de ameaças, denúncias e até o medo que os americanos chamam ‘’cancelar a cultura’’ ou a cultura da censura. Nascido nas universidades mais prestigiadas, centrado em questões de raça e género, este clima é semelhante ao McCarthyismo de esquerda, que infestou os meios de comunicação social, o mundo da cultura e até mesmo a vida empresarial.

 

Voltando para Castells, para o caso de Moçambique propomos o que entendemos por ‘escapatória juvenil’, um mecanismo de contornar a impossibilidade da presença física através da mobilização de rua no país. Assim, os cidadãos no geral, os jovens de forma particular, encontram nas redes sociais da Internet, uma forma de escapar aos actos de sevícia de suas liberdades que não são garantidas no espaço físico (offline). Adicionalmente, as redes sociais da Internet fornecem uma aparente segurança que não pode ser garantida em sede de uma demonstração popular por meio da manifestação ou da associação colectiva directa. Dessa forma, o espaço digital é transformado num verdadeiro ‘tubo de escape’, para, por via dele, expor diferentes opiniões.

 

Por conseguinte, como ilustra o título do presente texto, o termo ‘cidadania de fúria’ é nossa invenção para designar o exercício de actos cívicos, tidos como resposta à ocorrência de um evento ou realidade que viola os direitos cívicos e participativos de uma certa franja populacional, no caso em apreço os jovens, bem ‘’o mutismo dos bons’’ perante tais violações. Para nós, a ‘cidadania de fúria’ é manifestada por meio de escritos, imagens (memes, sobretudo) e palavras codificadas, que induzem para o posicionamento que deve ser entendido como repúdio social e político diante de uma ‘irritação colectiva’. Ou seja, os já conhecidos actos de ‘cancelamento’ e ‘banimento’ de artistas, fazedores de cultura, academia e alguns órgãos de comunicação são disso um exemplo.

 

Porém, para nós, tais ocorrências não são necessariamente uma mensagem contra os cancelados ou banidos. São, na verdade, contra um modo de vida em sociedade que ao longo do tempo foi tido como aceitável por uns, enquanto outros viviam em situação de deploração social, económica e governativa, tendo como maiores afectados os jovens. Assim, em sociedades menos tolerantes e abertas ao pensar contrário como Moçambique, é nosso entendimento que as tecnologias digitais têm se mostrado como uma poderosa ferramenta para a mobilização social e política, permitindo que os jovens possam se organizar e expressar suas demandas e reivindicações. E, mais do que diminuir, tal realidade se espera que aumente nos tempos próximos.

 

Embora aparentemente funcionais, alguma atenção deve ser recordada sobre as actuais demonstrações de ‘’cancelamento’’, dado que em teoria os activistas são cidadãos que possuem uma opinião formada sobre algo e as suas acções tendem a ir no sentido do benefício último da sociedade. Tendo como base a análise feita em outros contextos [Observador, 2022], a ‘’cultura do cancelamento’’, bem como tudo que lhe está associado, assemelha-se mais a um linchamento social, uma forma pejorativa de justiça privada, de fazer cumprir a função jurisdicional sem a necessidade de esta estar adstrita a determinados órgãos de um dado Estado, através de um sistema organizado de justiça e, sendo assim, perante esta evidência, a ‘cultura do cancelamento’ pode facilmente ser sinónimo de abuso e excessos.

 

Considerados os elementos acima, uma pergunta permanece sem esclarecimento: se não fosse a escapatória juvenil no espaço digital e a ‘cidadania de fúria’, que opção resta aos cidadãos num contexto de fechamento das suas liberdades em Moçambique?

 

FIM!

Tsandzane min

Num cenário de protestos, a reacção das autoridades políticas, os seus determinantes e efeitos na actividade dos manifestantes a curto, médio ou longo prazo, estão no centro das preocupações no sub-campo da Sociologia das Mobilizações. Por exemplo, nos anos 70, Ted Gurr tinha chamado à atenção para a importância da variável repressão e a dificuldade de se pensar sobre ela em termos de análise política. Por sua vez, Charles Tilly, em From Mobilization to Revolution, salientou, também, que a repressão ou tolerância a que o grupo mobilizado está sujeito e as oportunidades ou ameaças a que está condicionado, actuam sobre a ‘estrutura dos custos e benefícios da mobilização’.

 

Desse ponto de vista, Tilly sublinha que, às vezes, a repressão, além de instigar a mobilização, pode impossibilitar a acção; porém, em qualquer caso, esta desempenha um papel determinante na estruturação dinâmica e relacional dos repertórios da acção colectiva. No caso de Moçambique, por exemplo, ainda se está por estudar, diante dos recentes actos, que efeitos sucederão: mobilização ou falta dela?

 

Aqui e agora, podemos avançar uma hipótese: não se está ainda em face de um verdadeiro movimento social clássico, cuja carteira de reivindicação é clara ou os efeitos de sua capacidade de colher adesão é, igualmente, expressa. Contudo, a construção de um repertório de acção colectiva não segue, necessariamente, os ditames do que se pode encontrar na vasta literatura relativa a este assunto.

 

A introdução acima surge em decorrência de, no passado dia 18 de Março [2023], termos estado no aglomerado que rodeava a Estátua Eduardo Mondlane, para participar na marcha alusiva à celebração da vida e dos ideais de Edson da Luz, Azagaia. Em poucos instantes, sem a nossa antecipada intenção para nos desviar daquele acto infortúnio, o gás lacrimogéneo havia tomado conta do local, não apenas daquele perímetro, mas de todos os cantos, inclusive por onde qualquer transeunte, manifestante ou não, ousasse percorrer.

 

Ora, a frase que dá título ao nosso comentário foi proferida por um agente de ordem pública, que vestia a sua farda da Polícia da República de Moçambique (PRM). Ele disse que ‘estava connosco’ – o povo –, mas, ao mesmo tempo, pediu que um dos manifestantes ao meu lado tirasse a camisete que ostentava a imagem e os dizeres sobre Azagaia. Irónico ou não, não temos dúvidas que isto pode revelar o nível de gravidade e sentido de repúdio que se vive na sociedade, não importando, necessariamente, a qualidade laboral ou social dos seus sujeitos.

 

Aliás, engane-se quem pense que os actos de barbaridade da acção das autoridades de defesa e segurança seja um mero acaso; é, pois, parte do ‘silêncio barulhento’ que, de uns anos à esta parte, tem assolado o quotidiano dos moçambicanos. Para nós, há, na fala daquele membro da PRM, um significado que deve preocupar quem governa o país, sobretudo porque quem reprime é parte da mesma sociedade que se encontra sob o jugo de um colectivo de políticos censurados pela sociedade.

 

Na verdade, não são apenas as palavras do membro da PRM que nos interessam, mas, sim, a voz não levantada de milhares de moçambicanos que sentem o mesmo que aquele agente da Lei e Ordem, mesmo diante do estado de repreensão em que vivemos. É extremamente perigoso, quando o medo se torna silêncio e as vozes ecoam em pequenos grupos. Para uma governação acertada, o benéfico é que se conheçam as possíveis razões da insatisfação, do que a produção do medo que se pode tornar pólvora contra quem teima em bloquear a acção popular não violenta.

Tsandzane min

De forma simplista, podemos considerar que a Síndrome de Estocolmo é um mecanismo de reacção a uma situação cativa ou abusiva a que determinadas pessoas são submetidas. E estas, por consequência, desenvolvem sentimentos positivos em relação aos violadores, ao longo do tempo. Esta condição se aplica às situações que incluem o abuso de crianças, abuso de relações conjugais ou, ainda, o tráfico sexual.

 

Tecnicamente, no mundo da Medicina e Psicologia, a Síndrome de Estocolmo é entendida enquanto uma resposta psicológica, que ocorre quando sequestrados, reféns ou vítimas de abuso se ligam psicologicamente aos seus raptores. Em outras palavras, tal situação ganha força quando, após contínuas sequências de sofrimento, a vítima incarna, na sua mente, aquela sensação como normal e passa a conviver, de forma natural, com o opressor; ou é atingida por um esquecimento temporário que lhe faz ver o seu ‘canalha’ como um indivíduo que apenas pratica o bem.

 

A designação da Síndrome deriva de um assalto a um Banco em Estocolmo, capital da Suécia. Em Agosto de 1973, quatro funcionários do Sveriges Kreditbank foram mantidos como reféns no cofre do Banco durante seis dias. No decorrer deste período, desenvolveu-se uma ligação aparentemente incongruente entre os sequestrados e sequestradores. Um refém, durante uma chamada telefónica com o então Primeiro-Ministro Sueco, Olof Palme, declarou que confiava plenamente nos seus raptores, mas temia morrer num ataque da polícia ao edifício. Ou seja, conforme o procedimento deste refém, entende-se que o instinto de sobrevivência está no cerne da Síndrome de Estocolmo, visto que as vítimas vivem em dependência forçada e interpretam actos raros ou pequenos actos de bondade em meio às condições horríveis como um bom tratamento.

 

Se quisermos aplicar o introito acima para o caso de Moçambique, precisamos retomar ao debate efervescente que tem sido caracterizado por um distribuir gratuito de simpatias que o então Presidente da República, Armando Guebuza, tem estado a conquistar em cada aparição pública. Aliás, engana-se quem tenha concluído que tal teve o início apenas na celebração dos seus 80 anos de idade. Com alguma atenção, se o número de apoiantes representa um critério de medição de popularidade, basta uma visita rápida à sua página no Facebook para constatar a forma como se tem criado uma narrativa positiva relativa ao antigo governante.

 

Ora, trouxemos a proposta de Síndrome de Estocolmo Política para espelhar o que, no nosso ponto de vista, é a máxima dominante de toda esta situação. Sucede que, de um provável mal-amado no fim do seu mandato (*2015), o Presidente Guebuza parece ter espantado, com mestria, os seus ‘fantasmas’, visando ser o actual ‘bem-amado’ de vários moçambicanos. Para nós, isto revela que estamos diante da presença de uma Síndrome de Estocolmo Política, se considerarmos que o mesmo Presidente é co-responsável directo pelo que o País conhece, desde que este saiu da Presidência.

 

Mesmo que o País não tenha a cultura ou capacidade de realização de pesquisas de opinião de fim-de-mandato, assumimos a ousadia afirmando que o Presidente Guebuza não é, certamente, quem tenha tido bons níveis de aprovação popular quando deixara o poder. O nosso entendimento baseia-se no facto segundo o qual o contínuo martírio social na actual governação, caracterizado por uma aguda mendicidade colectiva na qual os moçambicanos estão expostos, faz com que estes prefiram o que em linguagem popular se considera “menos pior”. Ou seja, o pior a ser equiparado ao péssimo. Dito de outra forma, ambos, antigo e actual Presidente, são os ‘arquitectos’ máximos do desencanto que Moçambique tem vivido nos últimos 18 anos (desde o primeiro mandato de Guebuza até aos dias actuais).

 

Ademais, sem querer menosprezar as suas obras e valiosas acções no passado, para nós, o actual (des)caminho de Moçambique tem uma dose directa proveniente da governação deste Presidente, que tem sido colocado, ultimamente, como o ‘El-Salvador’ da Pátria. Por isso, tentar esquecer, mesmo que de forma incauta, os ‘pecados’ (passados, mas bem presentes na vida dos moçambicanos) do Presidente Guebuza faz parte de um teatro de massas abocanhadas pelas aparentes desavenças dos membros de elite do partido Frelimo. No nosso entender, estamos diante de um cenário que parte de uma elaboração dos media, algo explicado no que, em tempos, Adorno & Horkheim (1984) chamaram de “Indústria Cultural”, ou o que autores como McCombs & Shaw (1972) anteriormente designaram de “Definição de Agenda”.

 

Por conseguinte, não podemos refutar a desgovernação que temos perante o actual Executivo, espelhada pela falta de um horizonte para onde Moçambique segue ou deveria seguir. Contudo, tal não nos pode criar um estado amnésico igual ao que tem imperado neste País desde 1994, ano das eleições fundadoras, todas elas dominadas pelo mesmo partido político. Em outras palavras, o nosso problema não é tentar ‘salvar’ um Presidente que tanto mal causou aos moçambicanos ou insistir que o actual Presidente enverede por um fictício terceiro mandato. É, pelo contrário, uma Refundação dos alicerces que estruturam a nossa forma de governação. Ou seja, precisamos de um tratamento para cuidar da nossa Síndrome. Enquanto tal não suceder, o entretenimento político do que temos visto com a aparente ‘crise das comadres’ continuará a desviar-nos a atenção face ao real (des)caminho governativo que vivemos como País.

 

Num outro cenário, algumas vozes tendem a considerar a actual situação que se vive em Moçambique no que podemos designar “crise intra-partidária”. Podendo-se aceitar tal hipótese, teríamos dificuldades em enquadrar uma realidade que coloca actores do mesmo partido a falarem de forma dessincronizada. Mesmo que se admita a influência do ambiente eleitoral já iniciado, pensamos que não estamos perante uma crise do tipo partidário clássico, mas, provavelmente, um entretenimento discursivo e mediático, tal como se assiste entre os confrades partidários Cyril Ramaphosa e Jacob Zuma, na vizinha África do Sul.

O uso crescente das plataformas digitais resulta de um conjunto de transformações que o mundo conhece desde a criação da Internet. Por hipótese, podemos argumentar que essa lógica é uma característica própria do que pode ser chamado de ‘sociedades modernas’. Para tal, duas razões seriam cruciais para explicar a emergência desta realidade. Por um lado, os partidos políticos e as organizações tradicionais (associações, sindicatos e igrejas) perderam o seu controlo sobre a sociedade, deixando espaço para outras instituições (menos formais e burocráticas) organizarem a acção política dos cidadãos (Gaxie & Pelletier, 2018). Por outro, as ligações sociais têm-se tornado cada vez mais fluidas – os políticos deixaram de ser uma inspiração social e nutrem menos confiança dos seus governados.

 

Assim, a utilização das redes sociais da Internet acaba por estar intimamente ligada à participação política, especialmente às formas de engajamento cívico ‘não convencionais’, tais como os protestos, petições, boicotes e ocupações. Por exemplo, evidências de fora de Moçambique já mostraram que a utilização do Facebook e Twitter é um forte preditor do envolvimento político (Scherman & Rivera, 2021). Embora estas conclusões sejam determinantes, parte significativa dos trabalhos nesta área revelam que tais estudos foram realizados quando a penetração dos meios de comunicação social era consideravelmente menor do que é actualmente, sobretudo se tivermos em conta a ‘Primavera Árabe’ como exemplo de destaque. Isto leva à questão de saber se os media sociais ainda estão correlacionados com a participação política, num contexto em que tais meios mudaram, nos últimos anos, e novas plataformas foram introduzidas. Contudo, destaque-se que a utilização dos meios de comunicação social está relacionada com o envolvimento dos cidadãos na política, pois essas plataformas não só expandiram as oportunidades para as pessoas se envolverem em actividades virtuais, como também se tornaram um veículo que facilita a participação numa vasta dimensão de acções offline.

 

No caso de Moçambique, precisamos recordar-se de Setembro de 2010, quando foram colocadas a circular mensagens de texto e algumas publicações em plataformas virtuais sobre uma mobilização social de vulto, onde o País, no geral, e a Cidade de Maputo, em particular, viveu um cenário de mobilização social que marcou uma época (Chaimite, 2014). Exceptuando-se a violência com que tal acto teve lugar, foi notário o papel desempenhado pelas redes sociais da Internet para a difusão ou propagação daquele evento, seja para distorcer o que sucedia ou relatar o respectivo evento em tempo ‘real’. Todavia, se 2010 é um exemplo típico do que podemos designar como mobilização cívico-virtual, o que dizer dos anos seguintes? Nesta opinião, que julgamos inacabada, colocamos algumas hipóteses sobre o evoluir do espaço cívico no espaço virtual em Moçambique nos últimos anos.

 

Em geral, podemos afirmar, com alguma convicção, que após 2010, o que resta da memória colectiva de uma acção plena de mobilização data de 2015, quando organizações da sociedade civil se juntaram para manifestar contra a insegurança e busca de paz no País. Naquele ano, a mobilização feita por meios digitais pode, no nosso entender, ter sido fundamental. Mas e depois, que exemplos podem ser mobilizados para ilustrar a tendência protestatória por via dos meios digitais? A resposta é ou seria pouca ou quase nenhuma. Na verdade, são esporádicas ou quase inexistentes as acções de mobilização social em Moçambique ou, pelo menos, nas capitais provinciais, seja por meios virtuais ou similares.


De facto, não se tem memória de um acto que, nos últimos 7 anos, tenha marcado o espaço dos repertórios de acção colectiva no País. E a pergunta que se pode colocar é: será por falta de razões? Talvez sim, mas talvez não. Por hipótese, diríamos que o cenário de mobilização social tende a fechar-se em contramão com a própria expansão das redes sociais da Internet, que se tornaram aquilo que designamos de ‘tubos de escape’, dado que o espaço físico (rua) se tornou perigoso para realizar acções públicas de mobilização (Tsandzana, 2020). Embora poucos ou quase inexistentes, os últimos exemplos de que temos memória datam de 2021, quando houve uma tentativa, embora falhada, de se realizar uma mobilização contra a introdução de portagens ao longo das vias rodoviárias da capital e província de Maputo. O caso mais recente incide precisamente ao presente mês de Julho, primeiro no dia 4 e, depois, no dia 14, sendo em relação a este último que incide o nosso comentário.

 

Para além dos áudios que supostamente davam indicação da provável manifestação, o facto de circularem imagens que sugeriam um pré-posicionamento de viaturas da polícia, que deviam agir em caso de erupção social, representa uma dupla função que as redes sociais da Internet desempenham. Sucede que ao mesmo tempo que esses espaços podem ser vistos como ferramentas mobilizadoras, a sua capacidade de dissuasão – promoção do medo e da incerteza – também é presente de forma consequente. Ou seja, enquanto se fala de mobilização no espaço digital, também devemos mencionar a desmobilização programada, o que foi visto através de uma imagem colocada a circular, no dia 13 de Julho, por via de uma foto cujo teor indicava “Os Cidadãos Agastados e Desempregados com a Crise no País (ADCP) tem a informar a todos os cidadãos de todas as cidades do País que, por motivos organizacionais, não terá lugar a manifestação prevista para amanhã, dia 14 de Julho...”. Aliás, actos de desinformação intencionada, por via de fotos, textos ou vídeos antigos/manipulados ou fora do contexto, são uma prática constante neste tipo de situações.

 

Por conseguinte, face ao contexto acima, a nossa contribuição passa por compreender o que terá causado o instalar da ‘eutanásia de protestos’ em Moçambique, os quais, em tempos, foram promovidos por via das plataformas digitais. Para uma provável resposta, avançamos três hipóteses as quais devem ser lidas de forma complementar.

 

  • Reforço da repreensão digital: é memória que, após os protestos de 2010, uma das medidas centrais foi a introdução da obrigatoriedade de registo de cartões SIM, vista, na época, como um mecanismo de monitoria das comunicações. De igual forma, cresce a aprovação de dispositivos que visam coartar algumas liberdades, como é o caso da Lei das Transacções Electrónicas (2017) e Estratégia Nacional de Cibersegurança (2021). Isto mostra que embora positiva, a ascensão dos media digitais e sociais trouxe um aumento substancial da atenção para a repressão dos activistas e movimentos digitais e/ou para a utilização de ferramentas digitais na repressão. Com efeito, embora um número crescente de pessoas dependa, primária ou exclusivamente, de plataformas digitais, regimes autoritários desenvolveram concomitantemente um conjunto formidável de capacidades tecnológicas para constranger e reprimir os seus cidadãos (Feldstein, 2021).
  • Socialização política do digital: o facto de o espaço virtual estar a ser disputado por todos, cria oportunidades para que quem governa siga de perto o que sucede em tais plataformas digitais. Ou seja, entendemos que, desde 2010, cresceu a consciência política sobre a importância e o papel dos media digitais, o que, muitas vezes, faz com que sejam criadas bolhas de intervenção política, justamente para deturpar o sentido real do debate nesses espaços ou apenas para recolher informação que alimenta a terceira dimensão que abaixo apresentamos.
  • Incremento da violência simbólica (e material): enquanto se refere que Moçambique pouco podia fazer para conter o terrorismo dada à incapacidade material de acção, ao mesmo tempo, parece evidente que, quando se trata de actos de mobilização social e política, as autoridades demostram plena e exagerada musculatura para agir. Tal realidade remonta desde a presidência de Armando Guebuza, tendo apenas se amplificado ao longo dos anos. Tal realidade nos faz concluir que se os espaços digitais podem democratizar as vozes, simultaneamente, não parecem ser capazes de transgredir o virtual para o físico (rua) por receio da acção de força e violência estatais.

 

Por fim, diante de todo este cenário, surge uma questão que não podemos deixar de mencionar. Sucede que falar de mobilizações sociais, seja em Moçambique ou em outras realidades, remete-nos a invocar a presença ou a capacidade do sector associativo e sindical. Ora, no caso nacional, são essas entidades que, mesmo sem certeza do que realmente poderá suceder, adiantam-se em propalar comunicados desmentidos, como se as manifestações fossem actos anti-democráticos.

 

Mais ainda, facto similar aconteceu com a Associação dos Estudantes Universitários da Universidade Eduardo Mondlane (AEU-UEM) em 2021, bem como, recentemente, através de um desmentido posto a circular no dia 13 de Julho de 2022, assinado conjuntamente pela Organização dos Trabalhadores de Moçambique, Confederação Nacional dos Sindicatos Independentes, pelo Sindicato Nacional de Jornalistas, Sindicato Nacional de Professores e pela Associação Médica de Moçambique. Porém, estranho é que estas últimas organizações tenham emitido, no dia 11 de Julho, através do Jornal Notícias, um comunicado que ia de encontro com a convocação de uma possível ‘greve geral’, em virtude das reivindicações por elas feitas junto do Governo. Contraditório ou não, este pode ser um exemplo que ilustra a orfandade a que estão expostos os associados em Moçambique, a qual, certamente, é um tema para um futuro comentário.

 

Referências

 

Chaimite, E. (2014). Das revoltas às marchas: a emergência de um repertório de acção colectiva em Moçambique. Maputo. IESE.

 

Feldstein, S. (2021). The Rise of Digital Repression: How Technology is Reshaping Power, Politics, and Resistance. Oxford. Oxford University Press.

 

Gaxie, D., & Pelletier, W. (2018). Que faire des partis politiques ? Paris. Éditions du croquant.

 

Scherman, A., & Rivera, S. (2021). Social Media Use and Pathways to Protest Participation: Evidence From the 2019 Chilean Social Outburst. Social Media + Society, 7(4), 1-13.

 

Tsandzana, D. (2020). Redes Sociais da Internet como “Tubo de Escape” Juvenil no Espaço Político-Urbano em Moçambique. Cadernos de Estudos Africanos, 40(2), 167-189.

 

FIM.

Tsandzane min

Teve lugar, entre 20-22 de Maio corrente, o II Congresso da Organização da Juventude Moçambicana (OJM), instituição que aglutina jovens do partido Frelimo[1]. Pelo sim ou pelo não, parece-nos evidente que seja incontornável não falar daquela organização, visto que pertence ao partido que governa Moçambique. Porém, mais do que a dimensão umbílico-histórica, pelo seu acrónimo, a OJM coloca-se enquanto entidade que, hipoteticamente, deve ser entendida como a primeira força associativa e juvenil no País.

 

Em relação ao respectivo Congresso, vários episódios podem ser destacados como centrais, entre discursos relativos ao limite de idade que deve prevalecer no seio daquela organização juvenil, principalmente no que à eleição do seu Secretário-Geral (SG) diz respeito, ou, ainda, em volta de um fictício chamamento para que o actual Presidente da Frelimo, Filipe Nyusi, se apresentasse para um terceiro mandato. Ora, se só estes dois episódios poderiam, por demais, completar inúmeras páginas da nossa opinião, no entanto, desta vez, propomo-nos a analisar aquele que foi o manifesto que ditou a eleição do actual Secretário-Geral da OJM, Silva Livone, recordando que, num passado recente, apresentamos um exercício analítico que antecedia o Congresso (Tsandzana, 2022).

 

Ademais, a nossa análise é meramente textual, não sendo, por isso, nenhuma forma de guia que deva ser considerada pelo candidato eleito. Aliás, em Setembro de 2019, durante as Eleições Gerais daquele ano, realizámos uma tarefa igual, que buscou ter em conta os partidos Frelimo, Renamo[2] e MDM[3], com vista a entender o que estes (partidos) pensavam nos seus manifestos em relação aos jovens. Neste âmbito, o exercício que propomos hoje é revestido de alguma importância, na medida em que entendemos que a única forma de proceder ao escrutínio das ideias políticas é com base no que é escrito, elemento central para que se avalie num tempo curto, médio e longo, as acções dos políticos no País.

 

Antes da análise propriamente dita, importa destacar que temos consciência de que o manifesto não é o único e primeiro instrumento que prevalece na escolha política, concorrendo demais factores que se afiguram centrais no ‘campo político’ (Bourdieu, 2000), sejam eles directos ou não. Além disso, não fazendo parte desta organização, assumimos que a nossa análise pode estar enviesada devido à exiguidade de informação do que realmente sucedeu nos debates que corporizaram o II Congresso da OJM. Dito de outro modo, estamos conscientes das limitações que materializam esta opinião. Aliado a isso, está o facto de existir um programa específico que fora aprovado em sede do Congresso, bem como o programa do mandato, documentos que, no entanto, não tivemos acesso para cruzar com a presente análise.

 

Teoricamente, a questão da ligação entre as promessas colocadas à votação e as medidas que um líder consegue implementar, quando chega ao poder, está no cerne do princípio normativo do “mandato representativo” nos sistemas democráticos: a legitimidade das democracias basear-se-ia na competição entre várias alternativas políticas, agregadas e levadas a cabo pelos partidos políticos e seus candidatos, que se espera que as implementem, se obtiverem o apoio da maioria dos eleitores e formarem, por via disso, um governo (Dahl, 1971).

 

“Por uma juventude engajada rumo ao desenvolvimento” – É com este slogan que foi arquitectado o manifesto de Silva Livone (actual Secretário-Geral da OJM), perfazendo um total de nove (9) páginas. Destas, a palavra ‘juventude’ aparece escrita dezoito (18) vezes (incluído no slogan, que se repete em cada página). Tal é feito para intercalar as diferentes secções que constituem o respectivo manifesto, o que comporta seis (6) prioridades: (i) defesa da pátria; (ii) trabalho e emprego; (iii) desenvolvimento institucional; (iv) mobilização; (v) empreendedorismo juvenil; e (vi) habitação. Para implementar as prioridades supracitadas, Livone irá concentrar-se nas seguintes áreas: (i) educação e formação profissional; (ii) saúde; (iii) desporto, cultura e turismo; (iv) financiamento de projectos e iniciativa da juventude; e (v) cooperação.

 

Numa primeira análise, se entendemos prioridades como acções-chave para a realização de uma acção política, do destacado acima, prevalece alguma ambiguidade entre o que é uma ‘prioridade’ e ‘actividade’. Por exemplo, tomemos em consideração a prioridade sobre a “defesa da pátria”. Nesta, Livone refere que irá “engajar jovens na prevenção (da pandemia) do coronavírus”. Ora, se podemos presumir que estamos diante de uma pandemia que, um dia, se espera passageira, não teria sido justo colocar esta acção na componente das actividades inerentes ao tópico da saúde, em vez de a situar como prioridade de defesa da pátria? Aliás, em que medida o coronavírus é, per si, uma ameaça para a pátria e/ou soberania nacional?

 

Ainda em relação à defesa da pátria, Livone refere que irá (i) “dissuadir comportamentos que geram insegurança no povo Moçambicano”; e (ii) “engajar jovens na luta contra a insurgência e o terrorismo”. Analisadas sob esta perspectiva, não nos parece que exista tamanha diferença entre as duas medidas, pelo que entendemos tratar-se de uma retórica de linguagem que pouco diz, de facto, sobre o que o candidato pretendia transmitir. Ou melhor, não fica claro, pelo menos no texto, como se pode “dissuadir um comportamento”, se tivermos em conta que estamos a lidar com o íntimo do indivíduo, o qual, pela sua essência, difere de demais indivíduos – portanto, não há comportamentos colectivos que devam ser tratados da mesma forma.

 

Por conseguinte, interessante foi notar que na prioridade atinente ao “trabalho e emprego”, Livone recupera o discurso recorrente de todos os partidos políticos, que procuram, sem cessar, incutir a ideia segundo a qual o problema dos jovens, em Moçambique, é o desemprego. No entanto, se assumimos que esta pode ser uma colocação pertinente, não nos parece estratégico insistir nesta equação, dado que os jovens não podem ser vistos como homogéneos nas suas necessidades. Ou seja, há necessidade de realizar promessas que sejam direccionadas para um extracto juvenil localizado (geográfica e socialmente), pois só assim será possível resolver os problemas de acordo com as necessidades previamente identificadas.

 

A título exemplificativo, na página 3, o candidato (eleito) refere que “(...) o meu compromisso, neste novo ciclo de gestão, é com a unidade, (o) progresso, desenvolvimento económico, financeiro e social sustentável da organização...”. Ora, se tivermos em conta o discurso de abertura do Presidente do partido Frelimo, Filipe Nyusi, em torno de a necessidade desta organização buscar o seu próprio sustento, parece-nos que Livone tenta aqui responder, com alguma mestria, ao desafio levantado pelo seu Presidente do partido. Contudo, o que falta, na vontade de Livone, é a explicação detalhada mediante a qual como tal desiderato será alcançado.

 

De igual modo, em relação às outras prioridades, como são os casos de “criar uma política de empreendedorismo juvenil”, não fica claro o que se pretende, de facto, na medida em que a criação de tais políticas são da alçada de uma entidade própria, não se sabendo, neste contexto, qual seja o âmbito da política sobre a qual Livone se refere.

 

Ademais, no que diz respeito à componente da “cooperação”, há dois (2) elementos que merecem o nosso destaque: (i) “fortificar os laços de amizade com as ligas juvenis de outros partidos libertadores”; e (ii) “apoiar a reabilitação, promoção das praças da Juventude em todo País”. Primeiro, ao pretender fortificar a amizade com as ligas juvenis de outros partidos libertadores (africanos), a OJM coloca-se o desafio de cooperar, pelo menos em alguns países da Região Austral, com ligas juvenis e partidárias de formações políticas que já não estão no poder, como são os casos da Zâmbia. De igual forma, ao pretender-se apoiar a reabilitação das praças juvenis, entendemos tratar-se de um ‘desafio milenar’, se recordarmos que nem mesmo a edilidade da capital moçambicana (Conselho Municipal de Maputo) consegue responder, de forma concreta e prática, face ao que a Praça da Juventude se tornou.

 

Outro elemento que nos chama à atenção, neste manifesto, é a ausência de elementos que permitam um real acompanhamento numérico das acções que serão desenvolvidas pelo SG eleito. Se entendemos que qualquer manifesto deve passar pelo crivo dos números (por exemplo, quantas promessas foram realizadas), entende-se que estamos diante de promessas que podem socorrer-se do vazio numérico para realizar acções que em nada foram colocadas ao dispor dos eleitores. Além disso, sublinhe-se que, como parte de tácticas partidárias, os números são um recurso, entre outros, no repertório de acção do profissional político.

 

Para o efeito, o cálculo é realizado nas equipas de campanha que decidem utilizar esta arma de números contra o seu oponente. Assim, os números são utilizados como parte de uma estratégia para se qualificar e desqualificar o outro: o político utiliza os números para mostrar a superioridade da sua candidatura (mais ‘credível’, mais ‘realista’) em comparação com a dos outros candidatos, cujo inevitável desperdício de fundos públicos a que a implementação do seu programa levaria é também denunciado (Lemoine, 2008). Em outras palavras, uma promessa sem quantificação não pode ser tomada como válida.

 

Ainda em relação às ausências, chamou-nos à atenção a não menção de qualquer que seja a linha do manifesto em torno das novas tecnologias de comunicação digital. Ora, se entendemos que, nos dias que correm, é quase impensável se fazer política juvenil sem as referidas redes sociais da Internet, usadas na sua maioria por uma franja da população considerada jovem, que é o grupo que compõe ou deveria compor esta organização, bem como o seu público-alvo, parece-nos que este manifesto perdeu uma oportunidade ímpar de se posicionar perante este fenómeno de “participação política 2.0” (Tsandzana, 2021).

 

Mais ainda, entendemos que este Congresso abriu espaço para o alargar de um debate que se espera longo, com o aproximar do Congresso-mãe do partido Frelimo, que terá lugar em Setembro próximo. Por fim, importa destacar que o exercício analítico que fizemos não se afigura cabal, muito menos consensual, pois, para que assim fosse, seria necessário ter em nossa posse o programa do mandato do candidato (eleito), mediante o qual, ao que entendemos, guiará as acções futuras.

 

 

[1] Frente de Libertação de Moçambique.

 

[2] Resistência Nacional Moçambicana.

 

[3] Movimento Democrático de Moçambique.

 

Referências

 

Bourdieu, P. (2000). Propos sur le champ politique. Lyon. Presses Universitaires de Lyon - PUL.

 

Dahl, R. A. (1971). Polyarchy: Participation and Opposition, New Haven (Conn.), Yale University Press.

 

Lemoine, B. (2008). Chiffrer les programmes politiques lors de la campagne présidentielle 2007: Heurs et malheurs d’un instrument. Revue française de science politique, 58, pp. 403-431.

 

Tsandzana, D. (2021). Jovens e ‘participação política 2.0’ em Moçambique: propostas para discussão. Diálogos de Governação. 4, pp. 1-10.

 

Tsandzana, D. (2022). Sobre juventude(s) e política em Moçambique: propostas para um debate inacabado. Diálogos de Governação. 7, pp. 1-12.

A ciência, assim como o desenvolvimento, são dois campos cuja definição não se mostra tarefa fácil, sendo que ambos estão revestidos de contradição ou falta de consenso teórico. Historicamente, ao abordar sobre o desenvolvimento faz-se referência primária para o campo económico, sobretudo em oposição ao crescimento quantitativo de um determinado país.

 

Relativamente ao termo “ciência”, Fontaine (2008)[1] sublinha que é emprestado do latim scientia, significando “conhecimento” em sentido amplo, ou ainda “conhecimento científico”, e tendo em conta os tempos clássicos o significado da episteme grega – “conhecimento teórico”. Assim, ciência designaria primeiro um know-how obtido pelo conhecimento agregado à habilidade, para então denotar, posteriormente, o conhecimento adquirido em um objecto de estudo detalhadamente definido. A ciência, tanto do ponto de vista teórico como teológico, designará cada vez mais um conhecimento perfeito, preciso, rigoroso e mais preocupado com o formalismo (este formalismo que lhe será conferido, nos tempos modernos, pelo uso generalizado da ferramenta matemática que permite equacionar métodos de pesquisa e resultados).

 

Embora sem consenso, podemos afirmar que no sentido mais amplo, a discussão sobre ciência é agregada numa tipologia onde temos (1) ciências naturais (física, química, ciências da vida, do universo e da saúde); (2) ciências tecnológicas (comunicação e electrónica, sobretudo); (3) ciências humanas e sociais (economia, sociologia, ciência política, antropologia, história, geografia, psicologia, entre outras) ou ainda (4) ciências exactas (matemática, por exemplo).

 

Segundo Chatelin (1986)[2], ciência e desenvolvimento definem uma questão que parece bastante clara. Para o autor, existe uma ideia amplamente aceite de que o próprio desenvolvimento deve ser acompanhado e apoiado pelo progresso científico, embora alguns posicionamentos discordantes às vezes sejam ouvidos. De facto, Chatelin (idem) avança que existe quem afirme que a pesquisa baseada nas humanidades é completamente inútil em países sem desenvolvimento avançado, dado que as necessidades são outras. Embora recorrente, consideramos que tal proposição constitui um exercício teórico equivocado, pois está desprovida de uma convicção real. Para nós, não se pode equiparar a(s) ciência(s) em função do seu peso ou falta dele.

 

Nos últimos anos, o debate entre ciência e desenvolvimento foi substituído pela necessidade de ‘’saber fazer’’[3] e realização de uma ocupação profissional, sobretudo por parte de uma franja populacional considerada jovem em países como Moçambique[4]. As idades entre 14 e 20 anos podem ser consideradas de auto-descoberta, exploração de habilidades e busca de um lugar na sociedade, sendo que é justamente ao longo dessa idade que se cristaliza uma maior capacidade crítica em relação às regras sociais e familiares estabelecidas e a outras coisas que, mais ou menos, simplesmente eram aceites sem questionamento. Em suma, é uma idade biológica desafiadora para muitos pais e professores, sobretudo quando seus filhos e alunos questionam sua “sabedoria” e começam a encontrar respostas para os problemas que eles acham que seus pais não podem resolver adequadamente[5]. Da mesma forma, a ciência explora o mundo além das limitações actuais do conhecimento, desafia a “sabedoria” e se propõe a encontrar respostas.

 

Atrair os jovens para a pesquisa científica também se tornou um tópico de crescente importância do ponto de vista da ciência. Por exemplo, nota-se que cientistas, economistas e políticos em países como Estados Unidos da América vêm lamentando o número decrescente de estudantes que escolhem uma carreira nas ciências naturais e exactas. A preocupação é com a diminuição de potenciais cientistas e engenheiros, o que poderia dificultar o crescimento de indústrias de alta tecnologia, particularmente biotecnologia e tecnologia da informação. A questão de tornar a ciência e a pesquisa atraentes para os jovens gerou muitos debates sobre o futuro da pesquisa em si, bem como das tecnologias relacionadas (Mervis, 2003[6]; Moore, 2002[7]).

 

Se tomarmos a nossa introdução sobre a definição de desenvolvimento e aplicar ao contexto moçambicano, provavelmente não seja possível captar a real sensibilidade sobre o contributo que existe para a ciência. Com a noção de liberdade acoplada ao desenvolvimento, fica-nos como questão compreender de que forma o desenvolvimento pode ser relacionado com a(s) ciência(s). Porém, as advertências actuais para a ciência são numerosas. Sabemos, em primeiro lugar, que a ciência não leva necessariamente ao desenvolvimento, que o tempo de resposta pode ser longo, que apenas parte da ciência pode se tornar útil. Sabemos ainda que as aplicações da ciência nem sempre são boas, a manipulação genética, por exemplo, é assustadora.

 

No caso de Moçambique, verifica-se a tendência de uma aposta baseada na ciência enquanto técnica e prática, dentro de um prisma que pretende, de forma urgente, capacitar uma franja populacional ávida em busca de sustento para alívio de pobreza que, tal como vista por Amartya Sen (2001)[8], é um empecilho para o desenvolvimento como liberdade. O tripé sobre jovens, ciência(s) e desenvolvimento em Moçambique é limitado pelo facto de existir uma preocupação que toma a ciência enquanto um escopo técnico e prático, sem promover áreas que possibilitem abordar a própria ciência por via de outras lentes, ou seja, ciência no plural.

 

Por um lado, a criação do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, e consequentemente do Fundo Nacional de Investigação (FNI), são disso um exemplo eminentemente de aposta técnica, sobretudo quando o FNI se define como tendo a missão de ‘’(...) promover a divulgação do conhecimento científico, a investigação científica, a inovação tecnológica e a formação de investigadores, contribuindo para o desenvolvimento sócio-económico de Moçambique’’[9].

 

Por outro lado, podemos tomar como exemplo a criação da Secretária de Estado da Juventude e Emprego, que toma a ciência como possibilitadora do desenvolvimento de capacidades de uma franja da população, cuja necessidade laboral é premente – o que é feito através do ‘’empreendedorismo’’, formação e capacitação técnico-profissional. Dessa forma, pensamos que a abordagem sobre jovens, ciência e desenvolvimento deve ser feita tendo em conta a existência de outras janelas em que a própria ciência pode ser aplicada, embora se reconheça a necessidade de prover empregabilidade para esses mesmos jovens que enfrentam problemas de variada ordem.

 

Entendemos, por fim, que Moçambique padece de um dilema que pode ser resumido na incapacidade em promover a ciência para além do suprimento das necessidades dos jovens, razão pela qual questiona-se sobre como estabelecer o equilíbrio entre a necessidade de sobrevivência (sobretudo dos jovens), sem excluir a aposta na(s) ciência(s)?

 

*Este texto foi revisto/adaptado de uma comunicação proferida em 12 de Agosto de 2020, por ocasião do Dia Internacional da Juventude, em resposta ao convite da APDS – Academia de Pesquisa & Desenvolvimento Sustentável.

 

[1] Fontaine, P. (2008), Qu’est-ce que la science ? De la philosophie à la science : les origines de la rationalité moderne, Recherche en soins infirmiers, 92(1).

 

[2] Chatelin, Y. (1986), La science et le développement. L’Histoire peut-elle recommencer ?, In: Tiers-Monde, tome 27(105).

 

[3] Do francês savoir-faire ou do inglês know-how, designa um conjunto de conhecimentos, aptidões e técnicas adquiridos por alguém ou por um grupo, geralmente através da experiência, competência na execução de certas tarefas práticas e em determinadas actividades artísticas ou intelectuais.

 

[4] Não existe uma única definição sobre quem pode ser considerado jovem. Porém, a média de idade em Moçambique está fixada nos 16 anos, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE, 2019).

 

[5] Ver mais em Csermely, P. (2003), Recruiting the younger generation to science, EMBO reports, 4.

 

[6] Mervis, J. (2003), Down for the count?, Science, 300.

 

[7] Moore, A. (2002), What you don't learn at the bench, EMBO reports, 3.

 

[8] Sen, A. (2001), Development as Freedom, OUP Oxford, new edition.

 

[9] Fundo Nacional de Investigação (FNI) – https://fni.gov.mz/sobre-fni/ – é uma instituição que se define como promotora da pesquisa científica, tendo como base a inovação tecnológica em Moçambique.

A organização do poder na e da sociedade política (constituição dos órgãos de poder), a determinação dos mecanismos de decisão e fiscalização, é temporal e está num presente indefinido. As pessoas singulares mudam, as decisões são diversas, mas as instituições são supostamente imutáveis. Além disso, só se tornam instituições se se afastarem do evento para se constituírem como mecanismos e regras do jogo. Funcionam então num tempo móvel, mas que assegura o regresso ao mesmo. O tempo neutro e cíclico é, por excelência, o da vida política institucional.

 

A unidade de tempo que analisa e mede a vida política da sociedade é a duração de vida do principal corpo político. Na realidade, as ciências sociais não podem construir uma conceptualização do tempo. A história e todas as abordagens genéticas adoptam a concepção do tempo como linear, orientada e activa. É um tempo absoluto estruturado pelo calendário e pela periodização que o pesquisador constrói sobre o calendário. Este tempo social histórico permite organizar eventos e fenómenos duradouros de acordo com uma cronologia (Borella, 1990). A sociologia e todas as abordagens sincrónicas querem afastar-se deste tempo fluente a fim de basear a sua cientificidade no tempo relativo e neutro da mecânica. É o tempo dos sistemas e estruturas, específicos de cada sistema, uma dimensão simples do mecanismo que pode ser dispensada se o sistema for estável e fechado.

 

Esta dualidade é particularmente marcante em demografia, economia e política. Tanto assim que se duvida se estamos a falar das mesmas coisas. No primeiro caso, estamos a falar de objectos naturais, como teria dito Auguste Comte; no segundo, de objectos artificiais, sistemas abstractos e modelos. Na maior parte das vezes, ambos não têm mais nada a dizer um ao outro. Os historiadores só falam do passado e proíbem-se de qualquer explicação e especialmente de qualquer previsão. Outros, sociólogos, economistas, cientistas políticos, de facto falam do presente, mas como se fosse intemporal, isto é, eterno, e aspiram à previsibilidade dos seus modelos.

 

Mas em política não podemos cingir-nos a esta observação. A política como acção e a política como conhecimento são de facto inseparáveis. Como acção, a política é o controlo de um grupo social, do espaço que ocupa, do tempo que vive, por uns poucos ou pelo próprio grupo. Assim, é em primeiro lugar uma tentativa de controlar o tempo, mas inseparavelmente, é controlado por ele.

 

Tal como a política não pode fazer o tempo, também a política não pode fazer o tempo, mas tenta controlá-lo a fim de neutralizá-lo. Este esforço visa organizar o tempo político como uma realidade autónoma em relação ao tempo do mundo orientado e irreversível, e em relação ao tempo da história, em suma, em relação ao tempo que flui. A política procura estabelecer um tempo mecânico, neutro e reversível em que não há passado nem futuro. O fenómeno político só existe se observarmos esta situação de uma sociedade que se organiza para controlar a temporalidade do mundo e da história, para se instalar num presente permanente.

 

Por política, entendemos toda e qualquer acção que se efectiva pela capacidade de provocar ou retardar mudança e que é exercida pelos actores com poder de decisão sobre destinos colectivos. Com efeito, o tempo tem interessado à política, designadamente, enquanto um meio e um instrumento de calendarização de actividades ou como um plano de orçamentos e de avaliação da concretização de metas. Trata-se do tempo-calendário, o tempo como sistema métrico e cronológico (Araújo, 2018). Neste comentário, propomos argumentar que a política (que tanto se refere à acção dos representantes políticos, como a acção do indivíduo humano, no contexto da sua vida) se “esquece” frequentemente do tempo.

 

Explicadas as metamorfoses sobre o tempo, importa destacar que ao analisar a implementação de uma reforma (do sector público) ou de uma iniciativa governamental, existem dois tempos centrais para a boa realização ou não de tal pretensão política.

 

O primeiro momento podemos designá-lo de tempo técnico, que seria a possibilidade material e efectiva de colocar em prática um serviço – uma acção. Dito de outra forma, é a criação de condições objectivas para que a vontade do político seja materializada. Aqui não basta a promessa ou a mera intenção, é preciso que existam condições para o efeito, sejam elas de ordem material, financeira ou mesmo humana.

 

O segundo tempo é político, que é a vontade do implementador (entenda-se actor político de governação) para colocar em marcha uma determinada acção governativa, tendo como objectivo principal o cumprimento de uma promessa política. Seria a ‘entrega’, em forma de bens e serviços, aos cidadãos de um pacto político feito antes da eleição do governante.

 

Trazemos esses dois tempos para perceber de que forma os mesmos podem ter aplicação, face ao momento de crise que, mais do que sanitária, deve ser entendida como tendo pendor político, sobretudo porque demanda dos governantes a tomada de acções para minimização dos impactos que podem afectar a sua reeleição ou mesmo manutenção em determinados cargos de exercício de poder.

 

O tempo técnico em face desta pandemia seria a criação de vacinas ou soluções médicas que possibilitem a erradicação da doença, mas enquanto essa acção não se concretiza de todo, o actor político precisa acelerar a sua marcha para que possa cumprir as juras que fez ao seu eleitorado, sobretudo antes da pandemia – referimo-nos aqui ao tempo político.

 

Pensamos que vivemos hoje a contradição invisível de dois tempos que procuram coexistir num mesmo espaço que podemos designar de arena social, onde enquanto que os cidadãos (aqui entendidos como eleitores) demandam por protecção em prol da sua saúde, o político (governante) preocupa-se em garantir que, ao mesmo tempo que disponibiliza serviços de saúde, deve colocar em marcha as suas promessas políticas (que vão para além de gerir uma pandemia) tendo em vista os próximos pleitos eleitorais – uma campanha política permanente. Se bem feita tal protecção sanitária, pode valer claramente a reeleição de um político ou do seu partido. Esta equação não deve ser surpreendente, se tivermos em conta a racionalidade incompleta que guia qualquer actor político, cuja preocupação maior passa pela perpetuação do poder (Marrel, 2018).

 

Em outros termos, diríamos que os actores políticos têm consciência da importância do inesperado e do desconhecido no desenvolvimento da tomada de decisão e de políticas. Todavia, a sua visão de tempo na política é fundamentalmente de carácter sequencial, linear e delimitada pela prevalência de datas e de prazos. Uns, à escala anual, como planos de actividade, programas ou orçamentos, e outros a uma escala mais longa. Na base, pode afirmar-se que predomina o conceito de tempo-recurso. As técnicas da acção política utilizam o tempo como recurso e meio de acção, e não apenas como objecto de acção, o que demonstra a transformação do papel da política. Já não se trata de uma questão de poder político que estabelece normas para a actividade humana e social, que de outra forma é deixada livre. É claro que o Estado continua a ser responsável por esta tarefa, estabelece e controla as regras do jogo, mas também se torna um dos jogadores.

 

Esta situação é bem conhecida. O estado neutro, liberal, mínimo ou modesto é a política no presente permanente, enquanto que o estado intervencionista, assistencialista e providencial é a política em acção no tempo histórico. Estratega e táctico, o actor estatal actua num tempo prospectivo e finalizado, que se torna um recurso raro como os outros recursos necessários para qualquer acção (meios humanos e financeiros, espaço e técnicas, materiais e intelectuais).

 

Desde as acções mais simples, como as obras públicas, até às mais complexas, como o planeamento completo de toda a vida económica e social, o tempo histórico-social torna-se um recurso raro. Nas democracias liberais, cuja acção política é canalizada através de eleições populares, o intervalo entre as eleições fornece a matéria-prima temporal para a acção dos órgãos políticos eleitos. Os regimes autoritários ou totalitários, ao recusarem as eleições e/ou mandatos limitados, pretendem fornecer-se com uma oferta inesgotável de tempo.

 

Chegados aqui, sobressaem duas questões que nos parecem fundamentais: como garantir a articulação entre o tempo e a política durante a gestão de uma pandemia? Seria esta uma oportunidade ou perigo político?

 

*Sugestões de leitura

 

  • Emília Rodrigues Araújo. Para uma perspetiva aplicada do tempo na política. Revista de Estudios Sociales. 65. 2018. pp. 63-72.
  • France Culture. Le politique réduit-il le temps de la politique?. Podcast. 2017
  • François Borella. Le temps et la politique. Critique du savoir politique. Presses Universitaires de France. 1990. pp. 163-182.
  • Guillaume Marrel et al. Temporalité(s) politique(s): Le temps dans laction politique collective. De Boeck. Paris. 2018.

Situados entre os decisores e os cidadãos, os organismos intermediários (sindicatos e associações) continuam a ser actores fundamentais na vida social e democrática de vários países. Asseguram simultaneamente uma solidariedade de proximidade que o Estado ou as autoridades locais não sabem organizar ou não querem organizar e, para alguns, um papel de contra-poder capaz de criticar o poder a nível local, regional e nacional e de propor soluções alternativas (Fardeau, 2016).

 

Tradicionalmente – de Maquiavel para Gramsci, passando por Rousseau, Hegel ou ainda Marx – a filosofia política define como sociedade civil tudo o que não é sociedade política formal. Para além das grandes diferenças entre estes pensadores (a sociedade civil como base do Estado ou contra o Estado), ela engloba, portanto, toda a cidadania, que não é nem o nosso objectivo nem o problema a enfrentar.  A dispersão de vocabulário e o que as palavras cobrem é sintomático da imprecisão em que nos encontramos. Os franceses falam ‘société civile’ – onde fazem referência para uma sociedade cívica –, da sociedade civil organizada, do movimento associativo. Os ingleses vão referir-se em ‘civil society’ – mas com um enfoque no que chamamos um movimento associativo, aplicando assim o nosso vocabulário mais amplo à mais estreita das realidades. Noutras esferas, mantemo-nos num terceiro sector, um intermediário entre a política e o mercado. Contudo, não cabe aqui tentar definir o que seria a sociedade civil. Aliás, desprovido de consensos e clareza, seria um exercício interminável procurar fazê-lo.

 

No caso moçambicano, naquilo que preferimos designar como ‘sociedade civil fresca’ (início do século XXI), provavelmente o Professor António Francisco seja dos poucos que, com alguma regularidade, tenha tido interesse em reflectir sobre os caminhos da sociedade civil no país (*em 2003, Mazula e Mbilana escreveram sobre o papel das organizações da sociedade civil na prevenção, gestão e transformação de conflitos; *em 2004, Negrão falou da relação entre o ‘Norte’ e a sociedade civil em Moçambique), mesmo considerando que vários sejam os relatórios sobre organizações da sociedade civil/balanços de projectos que são hoje produzidos. Recuemos, porém, para o ano de 2007 quando, através de um ‘’Índice da Sociedade Civil Moçambicana’’, António Francisco coordenou uma equipa de pesquisa, em que com base na conjugação dos múltiplos resultados, concluiu que a sociedade civil moçambicana é globalmente fraca, nas suas quatro dimensões: estrutura, ambiente, valores e impacto. A pontuação rondava em 1, o representava um valor abaixo do médio, na escala de classificação de 0 a 3 pontos. Depois seguiu-se o ano 2010, através dos habituais livros do IESE ‘Desafios para Moçambique’, onde voltou a discutir expectativas e desafios da sociedade civil em Moçambique (*em 2015, a Altair Asesores e da Agriconsulting SL fez um amplo estudo de mapeamento de organizações da sociedade civil de Moçambique).

 

Recentemente, em Setembro de 2019, Francisco traçou um provável perfil do que seria então a sociedade civil moçambicana, tendo postulado três dimensões: (1) violenta – aquela que seria revoltada, frustrada e acima de tudo intolerante ou mesmo criminosa; (2) servil – estaria subjugada, bajuladora, ou por outra, corrupta e fingida; e por fim (3) inovadora – que pauta pela coragem, honestidade, e acima de tudo responsável. Para o autor parece ser difícil pensar a sociedade civil em Moçambique nas modalidades actuais, dado que numa sociedade com fraco desenvolvimento humano, económico e institucional, dificilmente pode ser gerada uma sociedade civil forte, mais progressiva do que regressiva, mais construtiva do que destrutiva. No campo da confiança, avança que a descredibilização da sociedade civil deriva de culpa própria, mas não só, pois tal confiança não se pede, nem se compra. Conquista-se – pela credibilidade, autoridade e respeito, sendo que há duas vias como solução: maior carácter, integridade e dignidade; e aumento de competências, técnicas e educacionais, dos seus membros, líderes e gestores.

 

Sobre isto, recordamos as recentes palavras de Joseph Hanlon (23.11.2020) que, em seu habitual ‘boletim político’ (número 258), chega mesmo a dizer que ‘’a sociedade civil de Maputo, financiada por doadores, normalmente limita-se a emitir declarações, as quais são ignoradas. Não há grandes protestos de rua por causa de eleições fraudulentas, como na Bielorrússia’’. Para Hanlon (idem), as eleições já foram importantes, mas já não são tratadas com seriedade. Nunca houve uma oposição política séria. As agências doadoras estão agora mais interessadas no gás e no investimento, do que na governação e não protestaram seriamente contra as eleições de 2019. Finalmente, a Frelimo tem tido o cuidado de manter a classe média de Maputo confortável para não protestar como na Bielorrússia. A desigualdade, a pobreza e a raiva contra a Frelimo ferveram em Cabo Delgado, levando à actual guerra civil. Mas isso fica a 1800 km de Maputo e a Frelimo pode ignorar as raízes locais e culpar o Estado islâmico (ibidem). Por outro, existe quem pense que o problema da sociedade civil moçambicana seja transformar os nossos problemas que são de carácter eminentemente político em técnicos. Macamo (2019) diz mesmo que quando é assim a participação política não conta, a articulação de interesses não conta, o que conta é fazer a coisa tecnicamente certa. E é isso que as nossas organizações da sociedade civil fazem, e infelizmente não têm consciência que estão a despolitizar completamente o país.

 

Chegados aqui, provavelmente tenha ficado claro que a nossa opinião surge como um inacabado e obsoleto contributo para pensarmos uma possível sociedade civil em Moçambique, diante dos últimos posicionamentos que sugerem um ‘’ambiente turvo’’ face ao processo de escolha de membros que deverão perfilar na próxima Comissão Nacional de Eleições. Ora, se notarmos as propostas avançadas por Francisco no capítulo da confiança, perguntamo-nos até que ponto estamos diante de organizações que, ao exigir integridade e transparência nos órgãos eleitorais, são, per si, modelos para ser seguidos? Até que ponto outorgar-se como a ‘’voz dos outros’’ não é uma forma de justamente apoderar-se da fala dos demais? Que perfil de facto exigimos das nossas organizações da sociedade civil para ‘’cimentar’’ a confiança diante dos representados? Que relações podemos estabelecer entre o representante e o representado num clima de constante crispação social, o que ultrapassa tais organizações? Estaremos diante de um problema de ordem técnica (transparência deste ou aquele órgão), ou em presença de um problema político? Mas entre o tempo técnico e o tempo político, o que pesa de facto –, o que deve ser tido como prioridade? Ou por outra, que sociedade civil pode ser pensada fora da órbita do ente que governa Moçambique – uma ruptura em continuidade?

 

Por fim, talvez fosse necessário trazer alguns dados que temos estado a tentar compreendê-los no campo da cidadania e participação, realizados pelo Afrobarómetro, entre 2002-2018 (amostra – 8590 inquiridos – 50% mulheres, 50% homens – todas as províncias):

  • Quando foi questionado quantos cidadãos faziam parte de uma associação de índole não partidário, 73% disse que não fazia parte de nenhuma;
  • Quando perguntado quantos já teriam contactado um deputado, 91% disse que nunca o havia feito;
  • Quando demandado quantos já teriam contactado um partido político, 80% disse que nunca o tinha feito;
  • Quando inquiridos quantos já teriam contactado um líder tradicional, 63% disse que nunca o fizera antes;

 

Em progressão...

« Embora os jovens sejam demograficamente dominantes, a maioria vê-se a si própria como membros de uma minoria proscrita...» [Sommers, 2015, 3].

 

É comum dizer-se que maior parte da violência mundial – em espaços públicos ou espaços privados, bem como em conflitos ou guerras – é levada a cabo por homens, muitas vezes jovens. De facto, não parece ser difícil perceber por que razão de forma reiterada vemos surgir debates que procuram avaliar os desafios enfrentados pelos jovens em várias esferas. Provavelmente uma das razões esteja num fenómeno demográfico conhecido como o ‘’inchaço da juventude’’, que significa a existência de uma proporção invulgarmente elevada de jovens numa população adulta, uma realidade que implica a presença de uma situação anormal que pode piorar: uma população jovem ‘’protuberante’’ apta para ‘’explodir’’, sendo que a violência extrema é tida como uma dessas consequências (Honwana, 2012; Sommers, 2015; 2019).

 

O fenómeno do ‘’inchaço juvenil’’ inspirou cativantes correlações estatísticas. Em geral, elas detalham como a presença de grandes números de jovens em vários países pode levar a resultados inquietantes e talvez devastadores. As correlações entre elevadas proporções de jovens e os obstáculos ao desenvolvimento alimentam um círculo vicioso de más oportunidades de vida para os esses mesmos jovens, alertou, por exemplo, o Fundo das Nações Unidas para a População, em 2014. Uma publicação da mesma agência destaca ‘’a correlação global entre as elevadas proporções de jovens na população e o baixo estatuto económico e de desenvolvimento nacional’’ (idem: 9). Outras correlações centram-se na percepção de uma tendência para a violência por parte dos jovens, sendo que tais ideias foram amplamente difundidas por Samuel Huntington (1993) e Robert D. Kaplan (1996, 2000), e continuam a ter ressonância. ‘’As chamadas ‘bolhas juvenis’’’ (Uri Friedman, 2014) ‘’podem alimentar a instabilidade (especialmente quando tantos dos jovens de hoje estão desempregados e economicamente marginalizados)’’.

 

Contudo, Sommers (2019) observa que a correlação entre a demografia da(s) juventude(S) e a instabilidade política – e a tendência relacionada de ver a(s) juventude(S) masculina(s) como inerentemente perigosa – tem sido posta em causa. (1) A maioria dos países com população jovem em expansão não tiveram grandes conflitos. (1) Muitos desses países que viveram uma guerra não voltaram ao conflito (Sommers, 2011); (2) Há estudos que indicam que grande população jovem nas cidades reduz o risco de distúrbios sociais. Como Urdal e Hoelscher demostraram em alguns países de África, ‘’o crescimento da população jovem dos 15-24 anos está associado a um risco significativamente menor de perturbação social’’ (2009, 17); (3) A presunção comum de que os jovens desempregados provocam tumultos violentos tem sido questionada, uma vez que a ligação é difícil de provar (Cramer, 2010; Izzi, 2013; Walton, 2010). Um estudo do Mercy Corps, por exemplo, ilustrou que os factores de violência juvenil estão directamente ligados a questões de má governação e exclusão, do que ao desemprego (Hummer, 2015).

 

Associar juventude(S) e o conflito violento extremo pressupõe uma tarefa que parece fácil a partida, mas estamos diante de uma realidade ampla e vaga sem saber de facto o que significa.  O que chamamos de juventude(S) pode ser uma faixa etária ou uma fase da vida entre a infância e a vida adulta.  A idade relatada dos jovens que entraram em organizações extremistas violentas é variável, mas razoavelmente consistente, parecendo a maioria estar no final da adolescência ou na casa dos 20 anos. No entanto, o desafio de atingir a idade adulta permanece para muitos jovens: até ganharem reconhecimento social como homens e mulheres, podem ser vistos como jovens na casa dos 30 e mais anos. Do mesmo modo, há debates sobre o que constitui um grupo extremista violento.

 

Em vários países e culturas, ser jovem representa o período de transição da infância para a idade adulta (Sommers, 2015).   No entanto, quando as definições culturais de juventude(S) e idade adulta são aplicadas à era actual, surgem problemas graves e significativos.  A razão é simultaneamente simples e alarmante: em grande parte do mundo, é cada vez mais difícil obter o reconhecimento social como adulto. Tradicionalmente, há tarefas que devem ser realizadas antes das sociedades atribuírem o título de ‘’homem’’ ou ‘’mulher’’ a um jovem.  Eguavoen (2010) enumera as principais tarefas ou expectativas como o casamento, a fundação de uma família, e o apoio à família (pais e filhos) ao longo do tempo.

 

Como pré-requisito para o casamento, os jovens do sexo masculino nas zonas agrícolas em alguns países do continente Africano podem necessitar de terra para construir uma casa, enquanto os seus homólogos nas zonas urbanas podem necessitar de um rendimento estável e de habitações adequadas para ter uma família (Sommers, 2015). Os ‘jovens machos pastoris’ devem frequentemente fornecer um número negociado de animais como ‘preço’ para ter a noiva. Por exemplo, no Sul do Sudão, o gado é muitas vezes o elemento que figura nas negociações de ‘preço de noiva’. Como explicou um jovem pastoril no Sul do Sudão: ‘’Não se pode casar sem vacas... e não se pode ser chamado homem sem vacas’’ (Sommers & Schwartz, 2011: 4). No mundo exigente de hoje, tais realizações elementares podem ser excepcionalmente difíceis de conseguir.  Como observa Eguavoen (2010), ‘’O grupo de pessoas que não se tornam adultos sociais [ou seja, pessoas reconhecidas na sociedade como adultos] devido à pobreza está constantemente a crescer em número, bem como em idade’’.

 

Podemos partir da aceitação que a maioria dos jovens é propensa para aderir ao conflito, sobretudo se notarmos que a esmagadora maioria das pessoas que se tornam extremistas violentos são jovens – parte significativa dos quais são homens. Assim, o desafio no centro do conflito violento extremo é, portanto, invulgar: identificar a fracção da população jovem com maior probabilidade de entrar num conflito violento extremo e frustrar essa opção.  Por exemplo, quando se faz um trabalho com ex-combatentes, mulheres, homens e jovens afectados por conflitos em várias partes do mundo, temos visto noções preconcebidas sobre quem são os jovens que os empurram frequentemente para a violência.

 

Historicamente, os decisores políticos, os adultos e as agências internacionais vêem frequentemente os jovens como vítimas indefesas ou como problemas à espera de acontecer.  Em qualquer destas representações simplistas, despojamos os jovens da sua humanidade e complexidade, e depois implementamos com demasiada frequência políticas e programas mal orientados.  Na verdade, nas nossas representações simplistas sobre os jovens, por vezes inadvertidamente alimentamos a ocorrência da própria violência que esperamos prevenir. Sommers (2019) vai notar que as respostas dos governos aos seus próprios jovens são geralmente pouco impressionantes: (1) a dissensão pacífica é frequente e severamente constrangida ou proibida; (2) as oportunidades de emprego fora dos sectores económicos informais tendem a ser escassas; (3) a oferta de educação é frequentemente insuficiente (particularmente depois da escola primária); (4) os serviços e alojamento para a população em expansão de jovens migrantes urbanos são rotineiramente inadequados; (5) as oportunidades políticas para os jovens podem não passar de uma filiação em partidos subordinados; e (5) estatuto social da(s) juventude(S) (já referido anteriormente) é ténue e frequentemente embaraçoso.

 

Se quisermos olhar para o tecido demográfico, podemos verificar que a maioria dos jovens, mesmo em sociedades profundamente conflituosas, não se juntam a grupos extremistas.  No entanto, a maioria dos que se juntam a grupos extremistas são jovens, e geralmente jovens do sexo masculino. A violência extremista prospera na nossa ignorância sobre a vida dos jovens e sobre as suas vozes e aspirações, bem como na nossa falta de compreensão sobre como normas rígidas de género moldam as suas identidades. Assim, hipoteticamente, as soluções para a violência extrema ou violência juvenil de qualquer tipo, só serão encontradas quando ouvirmos e compreendemos de que juventude(S) estamos a falar, o que não se mostra tarefa fácil. Provavelmente quando deixarmos a(s) juventude(S) conduzir(em) suas próprias soluções, e quando simultaneamente apoiarmos as jovens mulheres e os jovens homens a encontrar a empatia, a ligação, e as identidades pacíficas pelas quais anseiam.

 

Depois do referido acima, algumas questões nos parecem centrais para o debate: (1) o que, precisamente, exclui ou marginaliza um jovem nos locais onde ocorre a violência extrema? ; (2) quem se preocupa com a(s) juventude(S), e quem é que a(s) juventude(S) venera? ; (3) o que significa ‘’comunidade’’ para os jovens, e a que comunidades pertencem? ; (4) qual é a sua opinião e o seu envolvimento com os líderes locais, agentes da polícia e funcionários do governo? ; (5) o Estado ou outras forças estão a dirigir a violência e a ameaçar o seu caminho? ; (6) como é que o Islão (ou outras crenças religiosas) figura na sua vida e nas suas ideias? ; (7) quais são as suas perspectivas de vida? ; (8) como é que as questões de classe e género esculpem os seus

 

pontos de vista e planos futuros? ; (9) que razões empregam os jovens para resistir ao envolvimento na violência e no extremismo? ; (10) finalmente, talvez a questão mais importante de todas: como é que os jovens ganham aceitação social como adultos – e o que acontece se falharem?

 

Um debate por continuar...

 

Referências centrais:

 

Honwana, A. (2012). The time of youth: Work, social change, and politics in Africa. Sterling, VA: Kumarian Press.

 

Sommers, M. (2015). The outcast majority: War, development, and youth in Africa. Athens, GA: University of Georgia Press.

Pág. 1 de 2