P(r)ezado Vidinho,
Antes demais as minhas sinceras desculpas pela intimidade e ousadia em aproximá-lo. Embora não me conheças, eu, infelizmente, conheço-te. Tenho acompanhado as tuas peripécias mortíferas pelo mundo fora. Aqui fala Moçambique. Um dos países que ainda não localizaste. Acredito que não seja nenhuma avaria do seu aparelho de localização ou que eu não conste no seu mapa. Ou ainda, porque ando em quarentena – nos anexos da humanidade - desde o meu nascimento. Estou consciente que andas pelo pátio do quintal. E sei de que tarde ou cedo estarei na tua tela. Aliás, quem sabe, enquanto escrevo estas linhas, a porta bata e me abatas. Mas antes, oiça o que tenho para dizer-te, seu patife! (não me leva a mal)
Olha Vidinho,
Espero que aterres em missão de paz. Uma missão não igual à anteriores que já desfrutei no passado. Desta vez, que seja mesmo de paz, efectiva e definitiva. Tenho esperança que assim seja, pois das tuas andanças pelo mundo deu para notar que não lhe falta seriedade – embora fulminosa – em trabalho. Ainda espero que não confundas um país hospitaleiro com um país hospedeiro. Sobretudo, que não uses e abuses da minha hospitalidade – como tantos o fizeram e o fazem - para hostilizar-me e, no final, deixar-me mais hospitalizado do que me encontro desde a tenra idade.
Vidinho,
A tosse, as febres, as dores musculares e de cabeça que anunciam a tua chegada não me são estranhas. Elas são minhas companheiras há mais de 40 anos. Destes sintomas, temo que a tosse, curiosamente a mesma tosse do SOS da minha sobrevivência, que de tão audível e com stereo, denuncie o meu endereço, um local que o mundo relegara-me e com alguma responsabilidade minha pelo meio e desde o início.
Vidinho,
De tanto hospitalizado, desenvolvi alguma resiliência ao conselho alheio e ao que se passa fora dos meus aposentos. Tenho uma forte e repelente tendência em não perceber os perigos que me rodeiam e assim agir com antecedência. Talvez padeça do Síndroma de Estocolmo: amo os que me sugam e detonam.
Vidinho,
A minha vidinha, nestes quarenta e poucos anos de quarentena, depende do pessoal do pátio e da casa grande. Boa parte dos últimos, não gostaram de certas coisitas que fiz quando deixaram-me sair para uns raios de sol no pátio. Desde então, de joelho, passei a viver deitado. Agora, e a partir dos quadradinhos do leito hospitalar, apenas vejo uma linha longínqua da esperança dos números do norte. Até lá, e nestas condições – e por minha grande culpa - não tenho peito para enfrentá-lo, logo que bateres a minha porta. Pior agora, em que o pátio e a casa grande não vão bem por conta da sua visita. Imagina a mesma visita a quem depende deles? Não venhas, “Please”!
P(r)ezado Vidinho
A terminar - adoentado e deitado nesta vasta cama do índico - encarecidamente, aqui e em todo o lado: “Peço Distras!”. Caso contrário, espero que da tua visita não tenham que inscrever na minha lápide: “Moçambique (1975-2020). Deletado por COVID-19”
Pioras para ti, seu patife!
com sinceridade
Pérola do Índico
Senhor Presidente, quando você tomou posse pela primeira vez, em 2015, a sensação que pairou era de que estávamos no raiar de um novo amanhecer. Depois das dúvidas que se levantaram sobre a sua pessoa durante a pré-campanha dentro do Partido Frelimo, e após a cruzada eleitoral em si, as circunstâncias subsequentes levaram-nos a acreditar que podiamos ter outro caminho. Quanto mais não fosse, “aquele” discurso caudaloso proferido na Praça da Independência, vibrou-nos de tal maneira que não nos deixou outra escolha, que não fosse a de voltarmos a esperar com renovadas utopias no regaço.
É muita pena, senhor Presidente, que até hoje não estejamos a desfrutar desse sol radiante, prometido na enxurrada na sua intervenção discursiva, e isso leva-nos ao cepticismo quanto ao nosso futuro nos próximos cinco anos. Outros cinco anos que você tem para ainda fazer alguma coisa, e sair da Ponta Vermelha com orgulho. Aliás, eu pessoalmente e muitos que lhe desejam o bem, gostariamos que isso acontecesse. Mas todos os prognósticos indicam que o seu caminho é íngreme.
O problema, senhor Presidente, é que você não conseguiu demarcar-se. Não tenho a menor dúvida de que havia da sua parte uma enorme vontade de mudar as coisas, porém eles foram astutos, estenderam uma rede de emalhar que cortou ainda cedo a sua caminhada. Você foi capturado, e quando se apercebeu disso, já era tarde. Agora o espaço que resta para si é muito pouco. E o mais provável é que volte para casa com os braços caídos.
Não é isto que eu lhe desejo, senhor Presidente, mas é o que provavelmente vai acontecer. Você era a esperança da juventude. Eles puseram-lhe a correr nas duas campanhas eleitorais, porém quem chegou são eles, e você sabe disso, senhor Presidente, que pena! O pior é acontecer que ninguém tenha saudades de si, depois do mandato que vai terminar daqui a pouco. E a culpa poderá ser sua, não conseguiu dizer-lhes que nesta jogada eu não entro.
Agora já pode ser tarde, senhor Presidente, o que seria muito triste para nós, que acreditamos “naquele” discurso retumbante em 2015. Mas vai ser muito mais triste para si, que vai sair sem concretizar um sonho que era, segundo muitos acreditam, de prover o bem estar para o seu povo. Esse era o sonho de Filipe Jacinto Nyusi, entretanto fracassado por motivos adversos que o chefe de Estado não foi capaz de superar.
Eu não acredito, senhor Presidente, que você durma o sono dos justos, porque não é isto que estava na sua agenda preliminar. Não é isto que você queria. Com certeza nunca lhe passou pela cabeça atirar o seu próprio povo à sarjeta. Todavia, infelizmente, não vai ficar ilibado desta desgraça. Você nunca terá a paz de consciência nos próximos tempos, sabido que Sua Excia não é uma pessoa de mal.
Então o que é que deve fazer para se redimir? Faça qualquer coisa, senhor Presidente, nem que tenha de ir às províncias montado num tigre. Nem que tenha de ir novamente à serra da Gorongosa. E se isso vai trazer paz e fartura para o seu povo, why not! Lula da Silva disse uma vez, que se você decide candidatar-se ao segundo mandato, tem que ter a certeza de que vai fazer igual ou melhor do que fez no primeiro. E você, senhor Presidente, ainda vai a tempo de fazer “algum algo”.
Dei-me a pensar, a propósito da briga da última sexta-feira 13, entre o Município de Maputo e os vendedores informais, no que se tenha falhado para que a causa da briga – a pobreza – já não fosse parte da agenda do país. Desse penoso exercício, e sem grande recuo temporal, conclui que a falha foi ou começa, em 2003, com a criação e funcionamento do Observatório da Pobreza (OP), mais tarde Observatório de Desenvolvimento (OD), um espaço tripartido de escrutínio sobre a pobreza em que convergiam (ou ainda convergem) os três mosquiteiros: o Governo, os Parceiros de Cooperação e a Sociedade Civil. Do escrutínio, reza a história, era suposto que fossem desferidos duros golpes contra a pobreza.
Entendo, a partida, que houve falhas na escolha da ferramenta de combate, tanto a original (Observatório da Pobreza) como a rectificada (Observatório de Desenvolvimento). Na original, a pobreza se confundia com a nobreza, tal era o respeito, a ponto de se temer em tocá-la e tão-somente, a satisfação em observá-la. De tanta observação, acaba desabrochando numa paixão dos mosquiteiros pela pureza da pobreza. Desse momento, a observação passa para o (des) envolvimento (entre as partes). E daí, os infindáveis afectos: beijos, abraços e outras coisitas mais.
Hoje, depois de mais de uma década e meia de intenso namoro e pelos resultados, a pobreza foi quem – aparentemente - desferiu os tais duros golpes, a ponto de não existir espaço algum na cidade em que ela não esteja presente. Porque isto incomoda, creio, urge um “Pai, afaste de mim este cálice”. Como o fazer e sem magoar a relação, eis a questão.
E aqui, a terminar, volta a briga municipal da passada sexta-feira 13: pelos vistos, a briga ainda promete e cheira à uma terceira via de observatórios. Desta vez, e com a experiência dos dois anteriores, e ao que parece, não se está diante de um observatório igual, mas sim, de um crematório. Apenas fica por esclarecer, se será o da pobreza ou o de desenvolvimento. Às tantas, em 2003, por aqui devia ter sido o caminho.
O comércio desorganizado da rua pode acabar com medidas sustentáveis, mas Comiche não tem tomates para isso. Bem bem bem, o problema não está na medida, mas, em grande parte, no sujeito. Aristóteles dizia que a primeira verdade de um discurso é o próprio orador. Ninguém acredita no Comiche, ninguém o leva a sério. Comiche não tem moral para tomar quaisquer medidas contra os vendedores de rua.
Quando se dizia que Maputo precisava de um edil jovem com novos paradigmas, o ponto era esse. Maputo (o país todo) precisa de um edil criativo, ousado, atrevido e pragmático, mas que seja um indivíduo desamarrado e sem rabo de palha. Tem de ser alguém que traga novas propostas, novas abordagens, novas estratégias, novos discursos. Alguém que traga novas expectativas as pessoas.
As pessoas estão cansadas de ser burladas pelos mesmos ninjas. Eu acredito que o negócio de rua pode ser organizado, mas será com novos paradigmas. É preciso entender que o negócio e o negociante mudaram. Por exemplo, ontem não havia Eme-Pesa na rua, mas hoje, há. Vamos mandar o Eme-Pesa também para o mercado de Xipamanine? É preciso fazer novos estudos e trazer novas soluções. Alargue-se o debate.
Hoje, Comiche quer combater o negócio da rua da mesma forma que queria combater há dez anos. O circo precisa de um novo palhaço que conte uma nova piada. Comiche não é novidade. Comiche lembra Simango. Não é a primeira vez que Comiche e Simango organizam este festival de atletismo entre caninos polícias e humanos civis na baixa da capital. Acontecem sempre depois que as águas das primeiras cheias que inundam a baixa de Maputo secam. Até já podemos apelidar de "Jogos Pós-cheias da Baixa": um campeonato de atletismo amador entre cães de raça e transeuntes indefesos. É o que Comiche e Simango fazem para justificarem os fracassos dos seus mandatos. O que vimos na semana passada é simplesmente um "vale a pena ver de novo" de Comiche dez anos depois. É um circulo vicioso.
O problema de Comiche nem é problema, é dilema. Filosoficamente, Comiche está mergulhado num dilema clássico (ético e moral) em que quaisquer decisões que tomar contra os males que apadrinhou os resultados NÃO lhe serão desejáveis e muito menos favoráveis. E esse não é um dilema apenas do Comiche, é um dilema dos nossos políticos no geral. Um dilema dos políticos de rua.
Por isso, eu penso que não foi o Presidente Eneas Comiche que recuou na intentona de desalojar os vendedores de rua das avenidas da grande Maputo... Não! Foi o sistema que se acobardou. Foi o governo que reconheceu que não tem moral para implementar medidas correctivas sobre algo que apadrinhou. Foi o Estado que mais uma vez subiu ao palco para exibir a sua falência. Foi o país que fugiu com o rabo à seringa como sempre. Assim Comiche já encontrou o motivo que queria para justificar o fracasso do seu mandato. Já mostrou ao mundo a sua vontade de organizar a cidade. Sempre foi assim.
Enquanto houver políticos de rua, haverá vendedores de rua, haverá meninos de rua, haverá cães de rua, etecetera, etecetera. Com Comiches no poder, evidentemente que haverá Venâncios na oposição. Populismo e vagabundice. Enquanto houver políticos vagabundos, haverá também cidadãos à sua altura e medida.
De resto, temos de reconhecer que somos um país da rua, informal e ambulante. Temos de ter a coragem de assumir isso e a partir daí começarmos a mudar o que realmente deve ser mudado. Temos de estudar muito bem a raiz do mal. O problema primário são esses políticos de rua que elegemos na rua sob efeito de erva e cevada. A urgência deve ser "desvagabundear" a nossa política!
- Co'licença!
Seria hilariante, se não fosse alarmante. E mais do que alarmante é também embaraçoso.
Não sei se vocês já se deram conta da quantidade de gatunos, vamu-lá-dizer-assim, que disseram, em tribunal, que alguma parte do dinheiro que roubaram contribuíram para a campanha da FRELIMO! Não sei se vocês já pararam para pensar. Há contribuintes de todo peso e feitio, desde ministros, Pê-Cê-As até profetas. Entre arguidos e ex-arguidos. Estranho, não?!
Mais do que contar os gatunos vocês já tentaram somar os montantes que o partido alegadamente recebeu? Já fizeram a adição dos valores? Cambaza, Cetina, Helena, Boustani, Zimba. Todos os gatunos até aqui ouvidos dizem que ajudaram na campanha da FRELIMO. Sem contar que ainda tem a Tabela de Nhangumele que conta com gatunos de raça - uns dentro e outros fora - que ainda não abriram a boca. É só imaginarem o que um gajo como o "Chopstick" vai falar. Eu acho que isso é azar. É inveja. É má fé dos gatunos (como se houvesse algum gatuno de boa fé)!
Essa FRELIMO, do jeito que se fala, até parece bolsa de valores. Parece uma empresa que está a vender as suas acções. Parece igreja. Ou são acções ou são dízimos, mas quotas de membros do partido não podem ser. A FRELIMO que se fala parece um banco num paraíso fiscal. Agora, basta ouvir que houve rombo financeiro em algum lugar, deve saber que houve alguma contribuição para o partido. Há que ver isso! Assim não dá! O pior é que o partido nunca vem se distanciar em tempo útil. É assim que os outros fazem.
É muito estranho! Mas, como dizia, às vezes é azar mesmo. Na minha zona dizem que são pessoas que nasceram com "cabeça grande". Não é "grande" de grande, de volume. É "grande" de espírito. Pessoas azarentas. Pessoas infortunadas. Dizem que são pessoas que no dia que nasceram o diabo olhou ou soprou para elas. São pessoas com destino assombrado. Quando é assim leva-se a pessoa ao "akulukana", "namugu", "na'ana" para tirar o diabo.
Dizia, então, às vezes a pessoa nem tem culpa... às vezes é azar mesmo. De tanto apanhar sem culpa, a pessoa já habitua. Já nem chora, nem responde, nem pede justiça. Só vai seguindo a vida como se nada estivesse acontecendo. Assim tipo Eme-Ci-Rodja: falem bem ou mal de mim, mas falem de mim.
É isso, minhas irmãs e meus irmãos. Lá na zona diz-se que "quem tem cabeça grande nenhuma pedra lhe falha". Não sei se é o caso. Mas que é constrangedor, lá isso é!
- Co'licença!
Há cinquenta anos – tinha vinte – que saíu daqui para nunca mais voltar. Os seus irmãos também, e tantos outros dessa geração, entraram num êxodo para terras longínquas, e lá constituíram famílias cujos filhos chegam a este lugar como estranhos. Não conhecem as raízes dos pais. Pior do que isso, desembarcam, em viagens de férias, e correm imediatamente para as casas de hopesdagem previamente reservadas. Nos “lodges”. Aliás o que lhes apela não é a história genealógica dos seus progenitores. São as praias. E a necessidade urgente do gozo da liberdade.
Todos lhe chamavam carinhosamente por Nhalégwè, nome bitonga dado às gaivotas, mas hoje poucos se vão lembrar deste homem, tirando os que com ele partiram de vez, e os poucos de nós que ficamos. De resto o tempo vai esbatendo as memórias.
O Café Lobito está abarrotado, e a única mesa que ainda pode acolher mais um, é a minha, onde estou sentado tomando chá de camomila, mesmo assim sentindo-me asfixiado numa cidade (Maputo) que já não tem poros. É por isso que escolhi estar perto da montra, de costas para a maioria, o que me permite vizualizar a intensa “Eduardo Mondlane”. Contemplo os carros que descem e outros que sobem, e as pessoas apressadas que se roçagam umas às outras. Pelo menos essa azáfama recorda-me que estou vivo.
Atrás de mim há um burburinho de gente que vem tomar o pequeno almoço rápido, ou um simples café, e ainda o tilintar das chávenas poisando constantemente nos piris. É o início de um dia de trabalho, e as tertúlias irão esperar para o final da tarde, onde, para além do café, pode vir uma caneca de cerveja. Mas eu estou livre, amanhã volto para Inhambane, minha eterna cidade, onde nunca vai faltar oxigénio para as minhas botijas espirituais. Onde não há este ram-ram todo que me enlouquece.
Olho para o relógio, são oito horas e trinta e cinco minutos, e logo a seguir, no meu horizonte, vejo um homem alto, magro, cheio de barba da cor de prata, cambando no passeio, numa passada desinteressada. Pelo andar deduzo que usa prótese na perna esquerda, e pode estar, por assim dizer, incapacitado para encetar uma corrida, a menos que a prótese que o sustenta seja de carbono, como as duas postiças de Oscar Pistorius.
Paguei a conta. Saí e segui na direcção do personagem que me fascina pela barba da cor de prata, e pelo estilo que parece de um bailarino. Ele dança na minha imaginação, uma dança desconhecida. Usa boina preta que cobre completamente a cabeça, camisa de ganga negligenciada, calças Gins, e nos pés calça botas a Beatles, sem conseguir, contudo, disfarçar o defeito de um pé que não dobra, o que reforça a minha suposição de que este indivíduo tem na verdade uma prótese na perna esquerda.
De repente o tempo mudou e começou a chover, o que nos obrigou a interromper a marcha para nos abrigarmos na varanda de um daqueles prédios perfilados na “Eduardo Mondlane”, entre a “Salvador Allende” e “Amilcar Cabral”. Estamos muito perto um do outro. Olhei bem para ele, agora com “lupa”, e senti um gelo na espinha dorsal. Saudei-lhe timidamente e perguntei, o senhor não é o Nhalégwè!?
Não podia estar equivocado. É ele! Porém, o que eu não esperava, e esperava também, é que o dito cujo me vergastasse, Nhalégwè é teu avô!
Deu-me costas e passou para outro extremo do nosso “esconderijo”, à espera, sem voltar a olhar para mim uma única vez, que a chuva, que cai em catadupa, cessace. Mas esta atitude é de muitos bitongas, que detestam ser reconhecidos como tal, sobretudo quando estão em Maputo.