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terça-feira, 05 novembro 2024 12:04

Reflexão sobre a situação dos direitos humanos em Moçambique no contexto do conflito pós-eleitoral

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Contextualização 

 

A situação dos direitos humanos mostra-se bastante preocupante, com sinais de frágil protecção pelas instituições relevantes para o efeito, neste período caracterizado por conflito pós-eleitoral praticamente em todo o País, sobretudo, depois do assassinato bárbaro do advogado Elvino Dias e de Paulo Guambe, mandatário do Partido PODEMOS, na cidade de Maputo, na madrugada do dia 19 de Outubro de 2024, o que desembocou na realização de manifestações populares a nível nacional, com destaque para a capital do País, Maputo.

 

A intervenção da Polícia da República de Moçambique (PRM) e das Forças de Defesa e Segurança (FDS) para impedir o exercício do direito à manifestação pacífica tem sido caracterizada por execuções sumárias, deteções arbitrárias, agressão física, baleamentos, tortura e outros maus tratos que consubstanciam violação dos direitos humanos, para além de argumentos falaciosos de que a manifestação não foi autorizada e é violenta.

 

O silêncio das relevantes instituições de justiça, incluindo os órgãos de soberania e demais órgãos centrais do Estado responsáveis pela garantia da paz, segurança pública e prevalência do interesse nacional contribui bastante para a violação dos direitos humanos que está a ter lugar no período em análise, que vai desde o dia 21 de Outubro até ao presente momento. 

 

Curiosamente, a Constituição da República de Moçambique (CRM) protege os direitos humanos em toda a sua extensão, no quadro do Estado de Direito Democrático e de Justiça Social que instituiu. Neste sentido, o Estado moçambicano, mais do que assinar, ractificar e reconhecer instrumentos e instituições regionais e internacionais de protecção dos direitos humanos de diversa ordem, aprovou uma série de leis ordinárias sobre os direitos humanos, bem como criou várias instituições e organismos de promoção, defesa e protecção de direitos humanos quais sejam: A Comissão Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), o Provedor de Justiça, a Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM), os tribunais, o Ministério Público, a Comissão dos Assuntos Constitucionais, Direitos Humanos e de Legalidade da Assembleia da República de Moçambique, Ministério da Justiça e sua Direcção Nacional dos Direitos Humanos, o Instituto de Patrocínio e Assistência Jurídica (IPAJ) e organizações da sociedade civil que trabalham em matéria de justiça e direitos humanos.

 

Ademais, não se deve esquecer que Moçambique é um dos membros não permanentes do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), tendo inclusive assumido a presidência rotativa deste órgão.

 

Isto significa que, do ponto de vista formal, existe um quadro legal e institucional para a protecção dos direitos humanos e realização da justiça, o que nem sempre tem correspondência com a realidade prática, tanto é que há situações como nas actuais manifestações em que parece se ter decretado a suspensão das garantias dos direitos e liberdades fundamentais, fora dos preceitos constitucionais, senão vejamos:

 

Violação do direito à vida e integridade física

 

Vários cidadãos foram assassinados e feridos, alguns em situação de gravidade, em conexão com o exercício do direito à liberdade de manifestação pacífica, pela PRM e FDS, que têm vindo a praticar actos de violência e brutalidade policial contra cidadãos indefesos, independentemente de estarem ou não envolvidos nestas manifestações populares de nível nacional contra os resultados eleitorais e prática de má governação pelo Partido no poder há 49 anos, desde a independência de Moçambique, em 1975.

 

Na semana finda, os médicos, através da Ordem dos Médicos de Moçambique e a Associação Médica de Moçambique, vieram a público, através da imprensa, confirmar que foram mortas 10 pessoas e 73 ficaram feridas como resultado de balas verdadeiras e gás lacrimogéneo atirados pela Polícia contra os cidadãos. Com o início da terceira fase das manifestações pacíficas, convocadas pelo candidato presidencial suportado pelo Partido Podemos, Venâncio Mondlane, o número de cidadãos assassinados e feridos pela PRM e FDS aumentou significativamente, em vários locais do País, em especial na Capital do País.

 

“Todo o cidadão tem direito à vida e integridade física e moral e não pode ser sujeito à tortura ou tratamentos cruéis ou desumanos”. É o que dispõe o artigo 40 da CRM. A Polícia tem estado a ignorar sistematicamente a dignidade humana protegida pela CRM e pelas normas do Direito Internacional de que Moçambique é parte, abusando assim dos direitos humanos sem qualquer tipo de responsabilização, como se se tratasse de um órgão com autorização legal para executar e torturar os cidadãos de todo o tipo (crianças, mulheres, homens, jovens, idosos, deficientes, etc), com base na sua vontade ou desejo.

 

Discriminação no tratamento dos cidadãos

 

Há uma notável prática de discriminação, fundamentalmente baseada na posição social e na posição  política praticada especialmente pela PRM e FDS e outras instituições de justiça como é o caso do Ministério Público. As condutas destas instituições tendem a violar os direitos e liberdades fundamentais dos manifestantes e privilegiar interesses obscuros do Partido no Poder, que tem sido bastante protegido e que, de certa forma, controla os órgãos do Estado e influencia bastante para a precariedade da justiça em Moçambique.

 

Como corolário do referido no parágrafo anterior há que notar as várias evidências que consubstanciam violação do direito à liberdade de manifestação pacífica, em especial a manifestação do tipo marcha na via pública, principalmente na zona cimento ou nos Bairros de elite da Cidade de Maputo em que a PRM e FDS, com recurso à violência e brutalidade policial, impedem que os cidadãos entrem para a zona cimento.

 

Ainda sobre a prática da discriminação, vale lembrar o caso de violação dos direitos humanos dos manifestantes, no distrito de Mecanhelas, na província do Niassa, em que agentes da Polícia dispararam balas reais e gás lacrimogéneo de forma desproporcional contra os manifestantes e apoiantes de Venâncio Mondlane e do PODEMOS.

 

A PRM agiu em protecção e tratamento privilegiado dos apoiantes e simpatizantes do Partido FRELIMO que estavam a marchar em celebração da alegada vitória eleitoral. Trata-se, pois, de um claro exemplo da violação do princípio da não discriminação e da igualdade previsto no artigo 36 da CRM. Este é um caso flagrante em que a PRM demonstrou que só respeita e protege os manifestantes da FRELIMO, até porque estes marcharam à vontade e com protecção policial um pouco por todo o País, no sábado, dia 26 de Outubro de 2024 e também voltaram a marchar à vontade no distrito de Gurué, na Província da Zambézia, no sábado findo, dia 2 de Novembro.

 

Estranhamente, nessa mesma data, a PRM repeliu, com violência e brutalidade policial, várias manifestações, incluindo a manifestação pacífica da chamada classe média e grupos islâmicos que marchavam, de forma ordeira e civilizada, na zona da Baixa da Cidade de Maputo, em direcção à praça da independência.

 

Mais do que isso, é que a PRM, com a anuência do Ministério Público, instaurou um processo-crime contra Venâncio Mondlane por, alegadamente, estar a incitar a violência no País pela convocação de manifestações e paralisação do funcionamento do Estado. No mesmo sentido, vários jovens manifestantes contra os resultados eleitorais, má governação e assassinato bárbaro de Elvino Dias e Paulo Guambe foram processados e julgados, alegadamente, por praticarem manifestação violenta.

 

No entanto, pelas mesmas circunstâncias, nunca a PRM e FDS foram processadas e julgadas pelas violência e brutalidade policial contra cidadãos indefesos. A mesma situação se verifica relativamente há alguns cidadãos, os chamados grupos de choque ligados ao partido no poder, que, recorrendo às redes sociais e imprensa, promovem discurso de ódio contra os activistas de direitos humanos, organizações da sociedade civil e quaisquer cidadãos que ousam criticar a fraude eleitoral, a governação do dia e o sistema de justiça em vigor. Os manifestantes que são membros e simpatizantes do Partido no Poder também não são alvos de quaisquer processos judiciais e perseguições pela Polícia.

 

Perante esta situação, é curiosa a complacência das instituições da justiça relevantes nesta matéria, o que é problemático e preocupante, na medida em que perpetua tanto a prática de tratamento desigual para situações iguais ou similares, como alimenta a situação de impunidade das autoridades policiais e outras que violam o direito à liberdade de reunião e manifestação e outros direitos humanos neste contexto.

 

Violação dos direitos digitais, direito à informação, liberdade de expressão e de imprensa

 

A recorrente prática de uma conduta sistemática de violação dos direitos digitais pela restrição no acesso e uso de internet releva a efectiva violação do direito à informação, liberdade de expressão e de imprensa, bem como a violação da participação pública dos cidadãos na vida do Estado, limitando o exercício da cidadania e da democracia, conexos aos direitos digitais.

 

Os cidadãos, na sua maioria, exercem e gozam do direito à informação através do uso dos serviços de internet, basicamente por via dos dados móveis, cujo acesso tem sido arbitrariamente limitado e/ou cortado, como forma de parar e repelir as manifestações em questão.

 

O exercício do direito fundamental à informação, da liberdade de expressão e de imprensa são pressupostos do princípio constitucional da permanente participação democrática dos cidadãos na vida pública. Na verdade, a liberdade de informação, de expressão e de imprensa são exercidos, fundamentalmente, através da Media social, as chamadas redes sociais, bem como pela televisão e jornal digital que dependem do fácil e rápido acesso à internet.

 

Pelo que, a restrição arbitrária no acesso à internet constitui uma forma de denegação infundada e violação das liberdades de informação, expressão e de imprensa constitucionalmente consagrados, conforme estabelecido no artigo 48 da Constituição da República. Vale notar que também constitui uma forma de violação do direito à educação, do direito ao desenvolvimento, entre outros direitos humanos conexos aos direitos digitais.

 

A Polícia violentou, arbitrariamente, vários jornalistas e outros profissionais de comunicação social, com destaque para o dia 21 de Outubro de 2024, quando estavam a exercer a liberdade de imprensa, reportando os factos que estavam a acontecer na Cidade de Maputo, nas proximidades da Praça da OMM, no contexto das manifestações pacíficas em questão.

 

Alguns jornalistas foram alvejados pela Polícia e socorridos para a unidade sanitária mais próxima, mormente o Hospital Central de Maputo. A Polícia teve uma actuação excessivamente desproporcional, abusiva e de violência intencional contra jornalistas e órgãos de comunicação social nacional e internacional.

 

Os profissionais de imprensa estavam a reportar as incidências dos acontecimentos, em pleno exercício das liberdades de expressão, de imprensa e de informação consagrado no n.º 1, do artigo 48 da CRM que determina: “todos os cidadãos têm direito à liberdade de expressão, à liberdade de imprensa, bem como direito à informação.” Em bom rigor, estes direitos e liberdades só podem ser limitados nos termos consagrados na CRM. Mas a Polícia não respeita a ordem constitucional para o efeito, desencadeando um ataque directo contra a imprensa.

 

O mais caricato e vergonhoso foi o governo, depois de se reunir em Conselho de Ministros, aparecer publicamente a negar a violência e brutalidade policial contra os jornalistas perante evidências de vídeos e imagens vistas em directo a nível nacional e internacional e que constituem factos notórios de tal maneira que não carecem de prova.

 

Com essa atitude, o Governo revelou um total desinteresse relativamente ao respeito e protecção dos direitos humanos, senão exclusivo interesse em defender a Polícia a qualquer custo.  

 

Violação do direito ao voto

 

A Comissão Nacional de Eleições (CNE), num contexto de violação dos princípios da justeza e transparência eleitoral, aprovou os resultados das presentes eleições gerais e submeteu ao Conselho Constitucional para a validação e proclamação das mesmas. A violação dos princípios da justiça e transparência eleitoral que fazem parte do lema do processo eleitoral “Eleições livres, justas e transparentes” denota a violação do direito constitucional ao voto do cidadão. Os votos apurados não se mostram credíveis devido à prática da fraude eleitoral, seja pelas evidências de enchimento de urnas, seja por roubo de urnas, seja por falsificação dos editais e das actas relativas ao processo da votação, etc.

 

Aliás, uma análise mais aprofundada da actuação da CNE permite facilmente perceber que este órgão reconhece ter havido violação do direito constitucional ao voto, ou seja, do sufrágio universal e a consequente violação da participação democrática dos cidadãos na vida da Nação, conforme resulta do artigo 73 da CRM.

 

São evidências desse reconhecimento, tanto a Deliberação n.º 105/CNE/2024, de 24 de Outubro Atinente à Aprovação da Centralização Nacional e Apuramento Geral dos Resultados das Eleições Presidenciais, Legislativas e das Assembleias Provinciais, de 9 de Outubro de 2024, como a respectiva Acta do Apuramento Geral, para além do conteúdo do discurso do próprio Presidente da CNE que, de viva voz, reconheceu ter havido várias irregularidades graves, que a mesma CNE ignorou, alegadamente por falta de tempo. Ou seja, não houve tempo para garantir o respeito pelo direito fundamental ao voto, à democracia e à participação política dos cidadãos.

 

Violação do direito do consumidor

 

A limitação no acesso aos serviços de fornecimento de internet de forma obscura e arbitrária, revela, também, violação dos direitos dos consumidores, consagrado no artigo no artigo 92 da CRM. Ora, os cidadãos estão a ser, assim, consumidores de um serviço público precário de acesso à internet para a materialização dos seus direitos digitais, sem qualquer responsabilização das entidades prevaricadoras, como o Instituto Nacional de Comunicação de Moçambique (INCM) a autoridade reguladora das comunicações; o Ministério de Transportes e Comunicações, a Tmcel, a VODACOM, a MOVITEL, etc.

 

Violação da liberdade de circulação

 

Os cidadãos, independentemente de serem manifestantes, estão a ser vítimas de violação do direito fundamental de livre circulação, dignidade humana e integridade física pela Polícia sobretudo no período desta terceira fase da manifestação pacífica. Não podendo circular livremente no território nacional, sobretudo para a capital do País, e para a zona cimento da Cidade de Maputo, sem a devida justificação das razões da circulação, numa espécie de retorno da regra das “Guias de Marcha.”

 

As autoridades policias, ao agir da forma como agiram, puseram em causa não só o direito de livre circulação e dignidade dos cidadãos vítimas da violência e brutalidade policial para não circularem livremente, como também desprezaram e ignoraram a CRM.

 

Nos termos do disposto no artigo 55 da CRM e da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, de que Moçambique é parte, todos os cidadãos gozam do direito de livre circulação no interior e exterior do território nacional, desde que não estejam judicialmente privados desse direito.

 

Violação do direito à segurança pública

 

A PRM e as FDS instalaram um estado de terror e de insegurança pública no País, de tal modo que está a agredir e, vezes sem conta, a assassinar os cidadãos indefesos, alegadamente, para conter ou limitar a todo o custo o exercício do direito à liberdade de manifestação e de livre circulação.

 

Estar na via pública, em Moçambique, tornou-se um grande risco devido ao terrorismo Policial que a todos baleia com balas verdadeiras, de borracha e dispara gás lacrimogéneo, indiscriminadamente e de forma completamente desproporcional.

 

A Polícia que devia proteger o cidadão e garantir a ordem e segurança pública é a mesma que aterroriza, agride e executa sumariamente os cidadãos indefesos, no pleno exercício dos direitos e liberdades fundamentais, sem qualquer tipo de responsabilização, nem chamada de atenção pelas autoridades competentes para o efeito.

 

Concluindo

 

Os direitos humanos quase que não gozam de qualquer forma de respeito e protecção nestas manifestações populares, com a excepção de se tratar de cidadãos da FRELIMO e elites deste Partido no Poder.

 

O silêncio das instituições de justiça perante as atrocidades da Polícia contra os direitos humanos, mais do que representar uma garantia de impunidade à Polícia, constitui uma forma de perpetuar a violação dos direitos humanos contra os manifestantes e opositores ao Partido no Poder.

 

A CRM e os vários instrumentos de protecção dos direitos humanos que vinculam Moçambique estão a ser completamente ignorados e violados pelos próprios dirigentes do Estado e instituições de justiça.

 

Até ao presente, não há qualquer responsabilização da Polícia pelos seus actos de violação contra os direitos humanos no contexto destas manifestações e sequer houve qualquer reparação dos danos causados às vítimas e pedidos de desculpas, senão continuação da violação como forma de repressão.

 

A participação efectiva de Moçambique nos organismos internacionais sobre os direitos humanos, paz e segurança, não está a surtir efeitos desejáveis e é estranho que ainda não haja evidência de ajuda internacional para que não haja sistemática prática de atrocidade contra a dignidade humana ou contra a humanidade pela violência e brutalidade policial no País, conforme está a acontecer. Qual é o ganho para estas manifestações de Moçambique se um dos membros não permanentes do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) assumir a presidência rotativa deste órgão?

 

Pela inércia das várias instituições de justiça e que têm a obrigação legal de garantir a paz e segurança pública no País, não resta outra saída aos cidadãos, senão recorrer à justiça privada, o que é indesejável pelas consequências nefastas quase irreparáveis que daí advém.

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

Jurisconsulto em Litigância de Interesse Público

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