A 1500 metros de altitude, nos planaltos orientais do Zimbabwe, abaixo do monte Nyangani, nasce o rio Púnguè que, em escadaria, vai descendo das montanhas e depois de 400 km de serpentear, recolhendo águas de mais de cinco correntes afluentes, sedimentos e minérios das terras montanhosas a montante e resquícios valiosos de todas as populações (humana, animal e vegetal) que habitam a sua extensa bacia, vem desaguar calmo na cidade da Beira ao nível das águas do mar.
Este rio protagoniza, periodicamente, enchentes gigantescas que causam perdas enormes às populações, mas também sacia a sede de milhões de pessoas em Mutare (no Zimbabwe), Manica, Dondo e Beira, estando o seu nome, por isso, associado a contraditórios sentimentos de alegria e tristeza, seca e cheia, fartura e fome.
O seu nome representa um desafio constante ao génio humano moçambicano, na necessidade e esforço para dominar os rios de planície como o Zambeze, o Limpopo, o Púnguè, o Save, o Incomáti, o Licungo e, em pequena medida, o Lúrio; usar a força das suas correntes para energizar o desenvolvimento; acondicionar as suas águas para saciar a sede de pessoas, animais e plantas; fruir da geo-diversidade prazerosa nas suas bacias que são o esteio para milhares de espécies vivas e são o acolhimento propício para turistas e estudiosos da Natureza. Este desafio constante, sempre presente no subconsciente dos moçambicanos talvez tenha sido a motivação para que, das oito universidades públicas existentes em Moçambique, seis tenham nomes de rios moçambicanos (UniRovuma, UniLúrio, UniLicungo, UniZambeze, UniPúnguè e UniSave).
Escrevi as palavras introdutórias deste texto, as que se leem acima, numa comunicação que saiu ao público junto do livro “Desafios e Possibilidades para o Alcance de uma Universidade de Excelência”, a convite da Universidade Púnguè.
Organizado pela Professora Doutora Emília Nhalevilo e seus colegas Edson Raso e Obete Madacussengua, trata-se de uma colectânea de catorze artigos ou capítulos de dezoito autores. Ele pretende ser o marco de partida na previsivelmente longa caminhada desta instituição de ensino universitário no país.
A mim, coube a parte de leão: a de falar, em jeito de apresentação, do livro escrito por docentes e amigos da UniPúnguè; do nosso livro. Entendi, das palavras do prefaciador, o ilustre Prof. Doutor Lourenço Lindonde, Vice-Reitor da UniPúnguè, que o título do livro provém de um desafio lançado pela Dra. Luísa Diogo, que escolheu este tema para desenvolver a primeira aula inaugural proferida para a comunidade universitária desta universidade, em 2020.
Ela desafiava a comunidade universitária da UniPúnguè a reflectir em conjunto, sobre o assunto, como que a sugerir uma bandhla constitutiva da universidade, para pensar sobre o caminho que a mesma deveria seguir, de modo a se tornar diferente de entre as cinco universidades iguais, irmãs, surgidas da reestruturação organizativa da Universidade Pedagógica de Moçambique. O resultado desta reflexão foi uma conferência subordinada a este tema que trouxe a visão colectiva de docentes e investigadores da UniPúnguè, feita a partir de diferentes perspectivas de análise e domínios científicos.
Escrever um meta-texto, que é um texto sobre outro texto, é por si só bastante difícil. Agrava-se isto se o autor do tal meta-texto for também participante da elaboração do texto inicial e vem se exacerbar quando o temário é vastíssimo e desafiador, integrando áreas de gestão, inovação, sociologia, teoria da pedagogia, psicologia, apenas para citar algumas áreas científicas que consegui descortinar.
Vou me esquivar do embaraço, usando três artimanhas metodológicas:
Primeira artimanha: Não irei apresentar de facto o livro. Até porque acho que seria um exercício fastidioso tendo em conta o excelente prefácio elaborado pelo Prof. Lindonde, veterano do ensino superior e da sua gestão em diversos contextos e que, de forma clara, resume a essência dos 14 capítulos que compõem a obra. A alternativa seria conduzir o auditório por uma leitura longa e enfadonha do mesmo prefácio, numa aula sem brilho e num exercício de plágio académico. Por isso e por muitos mais motivos, recomendo desde já, a leitura completa e crítica do livro, a toda a comunidade universitária.
Segunda artimanha: irei fugir de qualquer cronologia editorial e de qualquer lógica ordinal que seja, na discussão de temas sobre o livro, puxando para o caos qualquer leitor organizado e que esteja à priori à espera de um sequenciamento cadenciado de matérias, teorias, utopias...
Terceira artimanha: decorrendo da veleidade a que me permiti e que foi acima referida, irei apenas seleccionar três aspectos interessantes, retirados de diferentes partes do livro e divagar num comentário ténue acompanhado de algumas visões por eu considerar que constituem, no essencial, o leitmotif que atravessa esta obra longitudinalmente.
Assim, seleccionei as seguintes expressões: “Qualidade, Excelência e Inclusão para Transformação”; “Transição Demográfica” e “Universidade e Interversidade”. Desafio os leitores a encontrarem estas combinações de palavras no livro. Pretendo demonstrar que as três são a mesma expressão.
“Qualidade, Excelência e Inclusão para Transformação”. Estas palavras que juntas ou à parte aparecem mais de cem vezes no livro são sem dúvida a principal visão, a utopia que a direcção da UniPúnguè e a comunidade universitária pretendem que ilumine os seus caminhos. Nota-se uma certa identidade nos pontos de vista dos autores quanto à necessidade de qualquer universidade no século XXI ter que se moldar dentro destes parâmetros ideológico-programático-administrativos.
A existência do CNAQ como autoridade reguladora da qualidade, aqui definida de forma bastante objectiva como sendo o cumprimento de certos critérios e indicadores de desempenho, pode ser vista no mesmo âmbito de colocação de balizas bem tangíveis e mensuráveis a que Emília Nhalevilo chama de “universidades movidas por factores que evoluíram para universidades movidas por eficiência” e que, de alguma maneira resumem, do ponto de vista administrativo, o desiderato de qualidade, àquilo que os ingleses descrevem melhor por compliance.
A excelência, do mesmo modo, pode ser vista como um estágio de “qualidade máxima”, passando obrigatoriamente pelas fases mais baixas da busca da qualidade através do cumprimento dos indicadores e sempre almejando um nível mais alto de reconhecimento por algum sistema nacional ou internacional de ranking de universidades. O cliché completo que se usa é o de “centro de excelência” que caracteriza uma universidade ou unidade dentro da universidade exibindo uma organização administrativa excepcional, um desempenho dos recursos humanos formidável, um apetrechamento infraestrutural invejável, um acesso e uso de recursos extraordinário, para além de um reconhecimento transnacional.
Conhecem estes superlativos?
A inclusão, o termo mais recente neste trinómio, decorre das tendências sociais globais de democratização, reconhecimento das diferenças entre pessoas, participação, liberdade de opinião e etc., que constituem uma conquista do movimento da sociedade civil de todo o mundo e são muito aceites na praxis discursiva política da actualidade, mesmo que ainda representem um desafio para toda a humanidade assumi-las.
O segundo grupo de palavras, “Transição Demográfica” representa um conceito ultramoderno pois pode ser extrapolado para uma série de mudanças nos meios e factores de produção que devem ser feitas no âmbito desta mesma transição demográfica.
Encerrando em si, strictu sensu, a necessidade de mudança das pessoas que no dia-a-dia entram no campus universitário, na verdade podemos entendê-la como a abertura da universidade para alunos de todas as raças, tribos, géneros, crenças religiosas, posses económicas, portadores de qualquer diferença, acompanhado por uma diversidade e rejuvenescimento da comunidade universitária.
O termo da “transição demográfica”, porém, rima com outras “transições” sendo a mais importante delas, a “transição energética”, de que muito se falou muito recentemente em Glasgow na COP, uma reunião mundial sobre o ambiente. Os desafios para atingir a transição energética para a neutralidade em relação ao carbono, irão implicar não apenas a mudança da matriz energética do ponto de vista de planificação para combustíveis mais limpos, mas também a mudança na filosofia da vida de toda a Humanidade, do padrão de consumo, dos conceitos básicos de riqueza e necessidades básicas, de desenvolvimento, etc.
A inércia deste sistema é grande. Esperem encontrar também. Igualmente, grande resistência para a transição demográfica.
O terceiro grupo de palavras, é o trocadilho “Universidade e Interversidade”. Ele chama atenção pelo antagonismo do “uni” e “inter”. Se o “uni” quer expressar o facto de as universidades terem que ser instituições monolíticas, com regras de existência bastante rígidas (acreditação, graduação, reconhecimento e validação, peer-review, currículos clássicos, laboratórios típicos, metodologia estanque de ensino), já o “inter” quer significar uma mescla entre instituições que são diferenciáveis (veja o “inter-nacional” é algo entre nações).
Esta necessidade de ser universidade e interversidade ao mesmo tempo, igual às outras, mas diferente de todas, local mas global (ou glocal) é abordada com rigor por Diogo, Nhalevilo e Uthui.
Diogo chama a atenção para a necessidade de o nome UniPúnguè ter que ultrapassar o nível de um nome (um nome atribui-se) para passar a ser uma marca, pois a marca conquista-se. Nhalevilo chama a atenção à necessidade de as universidades conquistarem a sua relevância junto da sociedade através da inovação e do reconhecimento de que small is beautiful, ou seja, pode-se inovar sem se estar dentro de laboratórios caros e com equipamento de ponta, desde que se preste atenção apenas às necessidades das populações (ao exemplo do inventor africano Mahomed Abba).
Numa outra parte, exploram-se os conceitos de diversidade, glocalidade e marca universitária da seguinte maneira (e passo a citar):
“A milha extra (extra mile)
Na nova imagem corporativa, o logotipo da UniPúnguè destaca a imponência do embondeiro, a firmeza da terra e o profundo azul das águas do rio. A grande árvore simboliza a solidez do conhecimento tradicional e da cultura dos povos destas terras e o dourado da terra – as riquezas do solo e subsolo. Já o leito do rio, desaguando em splash na árvore, desenhando os contornos de um grande livro, é o símbolo inequívoco do conhecimento positivo a ser gerado também pelas culturas, tradições e saberes dos povos que povoam a extensa bacia do Púnguè e têm a sua sobrevivência associada aos caprichos do grande rio.
A junção semiótica dos três sinais da natureza simboliza, para mim, a visão partilhada na nova universidade, de trazer o conhecimento tradicional para ajudar na geração de conhecimento universal, sempre de forma aberta (o livro aberto induz a esse sentimento), receptiva e dialógica entre os dois conhecimentos, uma teoria filosófica moderna para o caminho de desenvolvimento a seguir na época da globalização: a glocalidade (Castiano…).
A presença de uma estratégia muito clara e destacada neste plano de desenvolvimento institucional, realçando a forma como as ricas culturas dos povos da bacia do rio Púnguè podem ser trazidas para o diálogo privilegiado universitário, com outras muitas culturas mundiais, partilhando um espaço próprio que possibilite seu desenvolvimento, sua afirmação e divulgação, nas diversas áreas de saber como medicina, música, religiosidade e sistema de crenças, língua, história e estórias, pode constituir o extra mile para este plano e desde já expressar o compromisso da liderança com a glocalidade.”
Comprem e leiam o livro!
Rogério Uthui
3 de Dezembro de 2021
Sábado passado, 4 de Dezembro, foi um dia muito especial para a nossa família. No Instituto Superior Politécnico de Gaza (ISPG), dois membros, no caso, sobrinhos, foram graduados após conquistarem o grau académico de licenciatura. Um, em engenharia hidráulica, agrícola e água rural; e a outra, menina, em contabilidade e auditoria. Alegria total, não é comum dois membros da mesma família serem graduados no mesmo dia! Aleluia!
A cerimónia teve lugar na localidade de Lionde, a cerca de 10 quilómetros da Vila Autárquica de Chókwè, e foi orientada pelo Secretário de Estado (SE) da Província de Gaza. Eu que sempre pensei que o ISPG ficasse dentro ou arredores de Chókwè… onde estudei e me formei como homem e comecei a minha carreira jornalística!
Decorreu das 9 horas até cerca das 12:30 horas. Foi bonita, muito bem organizada; discursos bem escritos, assertivos, comoventes. Distanciamento social… nem tanto! A intervenção do SE foi uma autêntica aula de sapiência não para os graduados ali presentes, mas para todos nós convidados. Fundamentalmente, desafiou os quadros que terminaram a formação para serem criativos, não ficarem à espera de emprego. Com as formações que tendes, engenharia agrícola, hidráulica, florestal, zootécnica, aquacultura, processamento de alimentos, economia agrária, agroecologia, contabilidade e auditoria e recursos humanos, vocês são uma potencial empresa. Associando-se, vocês constituem uma empresa e põem em prática todos os saberes que adquiriram aqui - apontou o Secretário de Estado. Recordou que Gaza é uma província com muito forte potencial agropecuário e que oportunidades de aplicação dos conhecimentos obtidos são muitas. Mas este não é o objecto desta crónica.
Para acompanhar os miúdos, sexta-feira, 3, cerca das 13 horas, lá nos fizemos (eu, minha esposa e filhos) a Xai-Xai, capital gazense onde habitam. O plano era pernoitar na capital provincial e, logo pela manhã de sábado, rumarmos ao antigo “celeiro da nação” para estarmos na cerimônia até uma hora antes. Assim pensado, assim executado. Às 5:20, lá nos pusemos na estrada. O local de onde partimos situa-se entre a cidade de Xai-Xai e a localidade de Chongoene, no meio entre os dois pontos.
Quando já na estrada e vendo que eu, que ia a conduzir, estava a tomar o sentido Xai-Xai-Macia, a menina interpela: “Tio, é melhor irmos via Chibuto!” Fiquei confuso, mas ela logo cuidou de clarificar. O troço Macia-Chókwè está péssimo… vamos levar muito tempo; ou vamos vias Xai-Xai-3 de Fevereiro-Chilembene-Lionde… ou Chibuto-Guijá-Chókwè… - explicou ela, enquanto eu paralisara o carro e afastara-o para a berma, à espera da direcção a tomar.
E a decisão foi ali rapidamente tomada: seguiríamos via Chibuto. Fariamos Xai-Xai/Chongoene-Chibuto-Guijá, depois para Chókwè. Em termos de distâncias concretas em quilômetros, iríamos fazer cerca de 140 quilômetros, contra os cerca de 112 que faríamos se saíssemos directamente de Xai-Xai para Lionde… Afinal nem é Chókwè, como o disse, o Instituto Superior Politecnico de Gaza não se localiza na vila de Chókwè, mas em Lionde, a cerca de dez quilômetros. Ou seja, mais uns 30 quilômetros a ida e outros tantos ao regresso… tudo para contornar um troço de cerca de 60 quilómetros, que custam justamente 60 milhões de dólares para reabilitar!...
Então, lá nos fizemos nós à estrada. De facto, o percurso está em boas condições. Xai-Xai até Chibuto, boa estrada, anda-se muito bem; de Chibuto a Guijá e depois Chókwè, também boa estrada! Agora, de Chókwè a Lionde, cerca de 10 quilômetros, como ficou dito, a estrada não está em condições e vai piorando até Macia… justamente o troço que pretendíamos evitar.
Lá fomos nós à nossa cerimónia de graduação, que, como referido, correu muito bem apesar do muito calor de 37 graus centígrados que se fazia sentir! Às 12:20, já estava a terminar e, depois de algumas fotografias, pegamos a estrada de regresso a Xai-Xai. Ainda deu para passar ver o novíssimo aeroporto!
Chegado ali, não houve o mais pequeno obstáculo; foi-nos permitido ver e fotografar! É uma obra. Perguntámos à funcionária aeroportuária que saiu da cancela para nos atender sobre o plano de voos… só sorriu!
O falecimento de Felismão Filimão, em todo bairro, só se soube uma semana depois. Foram as bolhas de cheiro que injectavam o bairro que despertaram a atenção de todos. As moscas drogadas pelo cheiro forte, que saía de um lugar que ainda não se sabia, desmaiavam de pernas ao ar em todo bairro como milicianos abatidos num combate.
O cheiro crescia, enrolado, nos becos do bairro tal qual sai enrolado o fumo de uma chaminé. Uma semana depois, um monte de moscas disputando a fechadura da porta de Felismão Filimão, moscas enormes, com antenas das bocas em riste, denunciaram a nascente do cheiro: saía do quarto minúsculo de Felismão Filimão. Fazia uma semana que não era visto secando a sua pele arranhada de tatuagens e seu corpo preso numa moldura de silêncio no seu quintal.
Felismão Filimão o mesmo que viveu em Portugal durante 16 anos. E quando regressou ao bairro tinha apenas duas bagagens escondidas em recordações: um sotaque português na fala e os olhos cheios de paisagens que nos mostrava por meio de relatos, gestos e estórias. De quando enchia-nos no seu quintal e ensinava-nos a cantar o fado; apertava-nos as bochechas contra os dentes para que as palavras vestissem o seu sotaque e metia-nos num jejum de respirar, por segundos, para podermos ganhar a força nos pulmões e acima recital o fado com beleza.
Arrombou-se a porta, as moscas entulharam-se no interior de casa; o corpo boquiaberto de Felismão Filimão encontra-se escoltado por um silêncio profundo e moscas raspavam-lhe o silêncio que se equilibrava nas teias da saliva consumida pela morte. Meu Deus, Felismão não era o mesmo; não fazia o bico com a boca para filtrar as vogais, não nos explicava as montanhas de Portugal pelas curvas das suas mãos e a bagagem do seu sotaque português tinha sido dissolvido em pó de silêncio.
Ninguém conhecia nenhum familiar de Felismão Filimão no bairro. A única família que tinha e conhecíamos pelas fotografias das suas palavras eram duas raparigas, mulatas, altas, que cursavam direito em Lisboa. Era a família que conhecíamos. Ninguém no bairro não conhecia a paisagem tipográfica de Lisboa; através de Felismão já conhecíamos a Rua Augusta, a Avenida da Liberdade, o Café A Brasileira colada na Rua Garret e já tínhamos passeado de calções curtindo o sol na beira do Rio Tejo na Ribeira das Naus.
Felismão Filimão falou-nos de racismo de Lisboa, dos africanos que corriam, dia e noite, pela cidade tentando tirar o “i” da sua condição de ilegais. Felismão foi enterrado e esquecido num cemitério como um cão sem dono e as suas filhas continuam estudando, em Lisboa, para tornar o mundo menos injusto com o seu Direito. Ao bairro, quando regressou, tinha apenas duas bagagens escondidas em recordações: um sotaque português na fala e os olhos cheios de paisagens; não avanço mais com o texto, tenho medo de perder-me na Rua cor-de-rosa e não ver Felismão explicando, pelos seus gestos enormes, o caminho de voltar.
Por conta da subida do preço dos combustíveis foi avançada uma proposta de ajuste em alta da tarifa de transporte urbano, ora em “banho-maria” por orientação superior do Ministério de tutela. No entanto, mais do que o ajuste ou não da tarifa, é preciso que se ajuste a implementação das soluções em curso com vista a melhoria do transporte urbano na área metropolitana de Maputo.
Das soluções em curso, a observação recai apenas sobre as soluções que foram a aposta recente governamental, nomeadamente o aumento da disponibilização de mais autocarros e a introdução da bilhética eletrónica.
Decorrente do debate público e da simples constatação ressalta que os efeitos desejados destas soluções estão aquém do desejado. A meu ver, elas pecam por terem sido implementadas dentro da actual estrutura operacional de provisão de serviços de transporte urbano, mormente os operadores públicos/municipais e os privados, estes por via das suas cooperativas/associações.
Uma alternativa para a sua implementação seria a de introduzir um novo conceito ou serviço no sistema de transporte urbano que viesse a constituir uma mais-valia na qualidade do serviço prestado. Este raciocínio parte da experiência positiva de um projecto privado de transporte ferro-rodoviário, denominado “MetroBus”, em implementação na área metropolitana de Maputo desde o ano de 2018.
A entrada em funcionamento deste projecto – o tal novo conceito - consistiu nas mesmas soluções dos esforços governamentais: a introdução de novos meios (comboios e autocarros) e da bilhética eletrónica. De outro modo, caso os meios alocados e o serviço da bilhética fossem para serem implementados dentro da estrutura operacional existente, quer ferroviária quer rodoviária, tenho pouca fé que elas teriam logrado sucesso. Aliás, os factos falam por si.
Em suma, a estratégia para a implementação dessas e de outras soluções passa por “não mexer o cancro” ao mesmo tempo que se criam condições alternativas para uma transição ou substituição paulatina do que é actualmente oferecido aos utentes de transporte público de passageiros em Maputo.
Quiçá, e para terminar, por que o Ministério de tutela não aproveita o defeso do ajuste da tarifa de transporte urbano e convoque uma reflexão da sociedade tendo em pauta, entre outras matérias, a necessidade de ajustar a forma de implementação das soluções (governamentais), quer as citadas quer de outras, em defesa da melhoria do transporte urbano na área metropolitana de Maputo e não só.
A escola estava agitada. Todos estavam ansiosos com a chegada do orador da palestra. Um General "nacionalista" e bastante referenciado em vários manuais da história oficial do país. Estávamos no ano de 2008, na altura, era estudante da Escola Secundária e Pré-universitária 25 de Setembro, na cidade de Quelimane, província da Zambézia. Uma acrópole grega, sediada a meia distância do núcleo das margens do rio dos Bons Sinais.
Todos queriam conhecer o General sobre o qual só líamos nos livros, revistas e jornais. Ouvíamos suas intervenções nas rádios e assistimos certas vezes suas aparições pela televisão. O cartaz estava fixado e tinha como tema da palestra: Serviço Militar Obrigatório e patriotismo. Naquele dia, o pavilhão desportivo da escola estava lotado e a juventude queria ouvir e ver por perto sobre os valores do patriotismo vindos de quem um dia abandonou os vícios da mocidade para se dedicar à longa luta pela independência de Moçambique.
A palestra começou. Embora o espaço estivesse lotado, todos ficaram calmos e atentos. Afinal, estávamos diante do General Alberto Chipande. Uma lenda viva nos amuletos oficiais sobre a nossa história. A intervenção do General decorria e calmamente explicava as vantagens de fazer parte do Serviço Militar Obrigatório (SMO) e o que o acto representava. Na palestra, o General deixou patente que todos nós tínhamos a obrigatoriedade de fazer parte do processo e que não existiam diferenças por lá (…) foi neste momento que uma pulga pousou na minha orelha e começou a incomodar-me.
Terminada a explanação do General Chipande, abriu-se o pavilhão para a sessão de perguntas e respostas. Eis que, depois de alguns colegas proferirem os seus "discursos sofistas" e de muitos conceitos elogiando o General, o que não era o centro do encontro, levantei o braço e pedi a palavra.
Num tom inocente e contextualizando os factos, sobre o que acompanhava noutros circuitos de informação e de opinião, sobre a matéria da palestra, questiono o General: Porque é que os filhos de pessoas com um status social e influência política como do General não cumpriam o SMO? E o que diferenciava estes moçambicanos acima mencionados de nós, os filhos dos pobres e sem qualquer influência política, económica e social?
Terminada a minha intervenção, seguiu-se um momento de palmas e gritos (é isso – diziam os jovens presentes no pavilhão e eufóricos!). Devolvida a palavra ao palestrante, eis que começou um discurso de que casos de género não existiam e que na República de Moçambique todos éramos iguais e não existiam protegidos perante a Lei, fôssemos filhos de qualquer individualidade, tínhamos de nos inscrever para fazer parte daquele dever patriótico. Com as questões e as respostas, esperava-se que viessem exemplos concretos dos filhos de grandes individualidades que haviam passado por lá, mas nada disso aconteceu!
No final da palestra, fui solicitado por alguns coronéis e directores que acompanhavam o General e procuraram saber quem eu era e quais eram as minhas origens. No dia pediram para que não colocasse questões de género em eventos como aqueles e que estava a agitar a juventude com as minhas perguntas – fiquei calmo e reparando nos olhos de quem falava – em seguida, calei-me e segui os meus colegas!
Sucede que, minutos depois da comitiva sair, fui solicitado no Gabinete do Director da Escola. Pensando que era para ser elogiado, eis que começa um processo inquisitório por parte da então pedagógica da escola, procurando saber, porque eu havia feito aquilo e quem teria encomendado aquelas perguntas. Fiquei perplexo e intrinsecamente ia indagando – eu sou estudante da 11ª classe de letras e, para além disso, leio e acompanho os debates públicos e opiniões diversas, e mesmo estando em Quelimane, isto não deveria constituir motivo de limitação para pensar Moçambique.
A Directora-pedagógica e o colectivo de docentes delegados para o inquisitório ficaram falando cerca de 30 minutos, ameaçando e aconselhando para que não voltasse a fazer o que havia feito. Após aquele exercício, passaram-me a palavra e eis que questionei: qual era a finalidade da educação ou do processo de ensino-aprendizagem que os professores levam a cabo na escola? Ninguém respondeu e, diante deles, eu disse: pensei que a escola fosse um espaço de desenvolvimento humano, de transformação intelectual e da nossa forma de pensar – entre eles, o pensamento crítico da nossa realidade social e política.
Sem respostas do colectivo inquisitório, deixaram-me sair do gabinete e do lado exterior, alguns colegas aguardavam e abraçaram-me, elogiaram-me e revelaram que toda a escola estava comigo, porque era assim como muitos estudantes deveriam ser.
Entretanto, a pedagógica e alguns docentes haviam me marcado e sempre que pudessem faziam questão de lembrar-me que estavam de olho e, caso não estudasse, as coisas seriam muito difíceis. Aquele facto fez-me estudar a dobrar e, mesmo com o roubo de notas, acabei dispensando várias disciplinas e aprovado nos exames de algumas que havia feito. No entanto, não foi fácil enfrentar os efeitos colaterais por "encarar" o temível General!!!
O gajo levanta-se as 4 e tal e vê se está tudo em ordem. Txuno-me, encosto a porta para não acordar a baby e ligo para o motorista para saber onde lhe pegar. Encontro-me com o motorista e a primeira coisa que faço é varrer as cascas de amendoim no bus. Eu não entendo esses passageiros todos dias gritamos “não queremos amendoim”.
E começamos com a primeira volta a mais sensível e maningue nice. Esquivamos a polícia e os buracos da cidade. Os passageiros não devem atrasar, porque isso pode nos prejudicar na receita. O atraso do passageiro é nosso atraso. Na primeira volta as magras é são mais nices, não ocupam muito espaço e afinam-se com facilidade. Há aqueles passageiros que não aguentam descer sem ter me chamo de zero. Sempre criando stresses. Se não é o passageiro que tira nota grande na paragem, um 1000, é o motorista que me insulta porque não fechei bem a porta, ora porque fiz um toque no meio da estrada.
Todos me insultam. E na terceira volta a baby começa a mandar bipes, porque quer saber qual é a ideia na house. Envio para ela o pouco que afinei e ela fica relaxada. Não temos time de almoçar, time de sentar e comer algo, comemos em movimento; um ovo no Benfica, uma coca no Jardim, uma maça no Fajardo e uma dose no museu. E as cenas correm. O importante é ganhar o dia.
Os passageiros insultam-me sempre, esquecem-se que eu também sei insultar; brow, eu tenho insultos pesados. Quando batem um cell no chapa todos olham para mim. Se não é minha mãe que me educou mal, é o meu pai que criou um marginal, mas eu não entendo onde entram os meus pais aqui no chapa. Faço esforço para levar esses tipos ao job e eles fazem de tudo para me tirar o job. São chefes, mas não sobem táxi.
Sabe, o cobrador é um cão de rua; sempre deve acertar ser atirado pedras; costumo dizer uma coisa: aos passageiros dou troco e razão; é a melhor maneira de não criar stress. Eu desde que cresci aprendi que pessoa viva não cheira mal, mas eu já fui dito que cheiro mal. É um beat que já me acostumei.
Ao meio-dia a cena acalma-se, jobamos sem pressa e preparamo-nos para ouvir os insultos dos chefes que saem às 17h. Saem stressados e descarregam tudo em mim. A partir das 17h é hora de ponta, pois todos enfiam-me as suas pontas.
Edjow, deixa de puxar papo comigo para depois não pagar. Peço mola, Doutor.