Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI
Alex Dau

Alex Dau

segunda-feira, 28 outubro 2019 06:41

Empecilhos de uma jornada

Toscanejou para esquerda levado pelo embalo do machimbombo de passageiros interprovincial, depois para direita, continuou por algum tempo ao ritmo do embalo até encontrar algo macio e deixou-se estar.

 

O seu hospedeiro movimentou-se ligeiramente, mas o seu inquilino continuava encostado no seu ombro, sacudiu-o abruptamente e este despertou ensonado e babado.

 

O autocarro já havia percorrido 110 km depois da partida às 04h00 da manhã da sua estação na cidade da Beira.

 

Usurpado pelo cansaço imposto pela humidade, a maioria dos passageiros dormiam para minimizar o calvário da viajem. Outros nem por isso cavaqueavam sobre este ou aquele assunto relativo à situação político-económica do país.

 

“Os estrangeiros estão a tomar conta dos negócios em Moçambique” relatou um dos conversadores. “Mas também moçambicano é preguiçoso, não quer fazer nada” - dizia outro.

 

“Vejam como está esburacada a estrada nacional número um, devia ser a melhor estrada de moçambique, sinceramente nossos governantes são incompetentes” – discursava outro.

 

De repente as vozes calaram-se como que uma ordem suprema os comandasse para tal, ouvia-se somente o roncar do motor e o ressonar conjugado deste e aquele passageiro.

 

O destino da viajem era a cidade de Maputo, no sul de Moçambique, num percurso de mais de 1200 Km. O autocarro albergava perto de 47 passageiros que era a sua lotação. Havia passageiros de diversas origens, Manica, Tete e Beira, estavam todos absortos nos seus pensamentos.

 

Moitas verdejantes margeavam a estreita estrada, e quando de longe o motorista descobria um camião que vinha no sentido oposto encostava mais a esquerda para permitir que se cruzassem sem dificuldade e sempre que tal sucedia, um abanão sacudia o autocarro.

 

Depois, o machimbombo alcançou o topo de um pequeno decline, onde podia-se deslumbrar a ponte sobre o rio Save com as suas águas cristalinas movendo-se mansamente por um lado, enquanto grande parte do rio estava completamente enxuto. A travessia procedeu-se com o machimbombo circulando a velocidade permitida.

 

Notava-se no semblante da maioria dos que transitava para o sul do país pela primeira vez um temor, creio que convocaram os espíritos dos seus antepassados para que redobrassem a vigilância.

 

“Vamos para terra de dono” – pareciam cogitar em uníssono.

 

O machimbombo alcançou o posto de controlo e imobilizou-se, uma série de agentes das autoridades com muito rigor exigiam a documentação, deixaram-nos com a sensação que estávamos num posto fronteiriço de um país estrangeiro.

 

Autorizados partimos, perdemos mais de vinte minutos na conferência, o motorista foi acelerando gradualmente o veículo para recuperar o tempo perdido.

 

A competência do piloto foi testada quando no povoado de Maluvane teve que efectuar contornos acrobáticos para escapar os muitos buracos no asfalto com apetência de engolir o machimbombo. Esse movimento acrobático reduziu a velocidade, perdemos muito, mas muito tempo; instantes depois uma bátega sacudiu o tejadilho do autocarro, a temperatura desceu, os passageiros agasalharam-se. O duplo empecilho atrasa-nos sobremaneira, perdemos quase duas horas e meia nessas gincanas acrobáticas que só terminaram no povoado de Pambara.

 

Depois uma mescla de murmúrios e um cheiro nauseabundo despertou a atenção dos passageiros, a vozearia ia-se incrementando à medida que o cheiro se exacerbava. As lamúrias que moravam no autocarro chamaram a atenção do motorista que também fora fulminado pelo disparo do peido, este viu-se na incumbência de imobilizar o veículo com um abrupto frear.

 

“Quem fez isso?” – questionou o motorista fora de si.

 

A zona de desconforto que albergava o titular da flatulência foi investigada, acusações infundadas iam surgindo até que um passageiro de faro apurado detectou o responsável, uma anciã, ela admitiu a infração cabisbaixa.

 

“A senhora podia pedir” – resmungou mais uma vez o motorista.

 

Desodorizantes multi-marcas disparam suas fragrâncias para derrubar o cheiro do peido, esses aditivos químicos em formulas desconhecidas pelos seus donos catalisavam ainda mais o desagradável cheiro. 

 

Desembarcamos em debandada com as narinas tapadas, uma pausa involuntária que permitiu esticar as pernas, urinar até fumar um cigarro, este apeadeiro desgostou o motorista que tinha que chegar a ponte sobre o rio Limpopo em Xai-Xai antes das 21 horas porque senão ser-nos-á interdito a passagem.

 

Reembarcamos com o ar purificado, notava-se nos vizinhos da anciã expedidora de gases uma indisposição.

 

A vigilância nasal foi redobrada por todos os passageiros, a velocidade do machimbombo progredia, no asfalto agora atapetado.

 

“arro, arro” – responde uma passageira ao telefone, falando em cinyungwe¹

 

Logo depois um passageiro solicita que o motorista pare, chegou ao seu destino, são perto das 15h00, a chuva cai de mansinho.

 

“Chegamos à Maputo?” -  questiona-me um velhote.

 

“Não” - digo com um sorriso, descobrindo que ele ignora a distância real que ainda falta.

 

“Só chegaremos ao anoitecer” -  remato para eliminar a ansiedade do senhor.

 

Um regozijo colectivo sucede em Massinga aquando do desembarque da anciã libertadora de gases, suspiramos todos aliviados, e como bónus o motorista permite que recorremos a um quiosque para adquirirmos manjares. 

 

“Só têm dez minutos” – dita o motorista.

 

Partimos com os comensais abocanhando seus nacos de frango, outros bebericando seus refrigerantes.

 

Nota-se agora um certo entusiasmo entre os passageiros, para tal concorre muitos factores, um dos quais é saber da proximidade dos nossos destinos, outro com certeza é ter deixado para trás a senhora com problemas intestinais.

 

O machimbombo alcança a cidade da Maxixe com o crepúsculo roubando a luz do dia, descreve uma curva num pequeno arriamento com ligeira inclinação para direita, a altura do autocarro permiti-nos deslumbrar a baia e a cidade de Inhambane.

 

Com os farolins espreitando o asfalto auxiliando o experimentado motorista, o machimbombo ia ganhando terreno.

 

“Xai-Xai” – diz um passageiro.

 

Olho para o relógio, são 19h30, congratulo secretamente o motorista.

 

A proximidade do destino conferia uma certa animação aos passageiros, uma mudez voltou a habitar o autocarro, depois roncos assaltam a audição dos viajantes que ainda não dormiam.

 

As 22h22 chegamos finalmente a cidade de Maputo, a azáfama que caracteriza a urbe já havia sido engolida pela noite.

 

¹cinyungwe é um idioma bantu falado por mais que 400 mil pessoas em Moçambique, principalmente na margem sul do rio Zambeze, na província de Tete, desde a fronteira com a Zâmbia até Doa no distrito de Mutarara. (extraído https://pt.wikipedia.org/wiki/Nhúngue)

segunda-feira, 21 outubro 2019 07:29

A corajosa Mariana Namulile

A deslocação braçal direita pode ter atingindo os 2300 watts de potência e o som produzido, com certeza, alcançou os 80 decibéis; o suficiente para que os mais próximos e nos arredores terem escutado o impacto ocasionado pela chegada da costa da mão da atacante a bochecha esquerda da senhora administradora do distrito de Muaga na região centro de Moçambique. Com os pés descalços firmes no chão, ela posicionou-se de perfil como um boxeador profissional para desferir o ataque.

 

Um “ohhh” colectivo ressoou profusamente, os populares estupefactos levaram tempo a processar o que estava a suceder.

 

Tudo aconteceu no auge da celebração da inauguração do fontanário no terreiro da aldeia 4 de Outubro na vila de Muaga,O magote ali presente havia acorrido ao local depois da propaganda radiofónica ter difundido com alguma insistência “amanhã pelas 10h00 a senhora administradora do distrito irá inaugurar o fontenário”

 

Os populares captaram a notícia com satisfação e alguns celebraram ingerindo cabanga e esperaram ansiosos pelo dia seguinte.

 

Depois do ululo popular animado com palmas que não paravam de se fazer ouvir, uma segunda salva de palmas foi angariado pelo mestre cerimónia.

 

A protagonista do acto violento, uma mulher franzina, parecia possuída por um poder supremo que lhe conferia tamanha força.

 

A tonalidade do rosto da senhora administradora Benilde conferido pelos produtos de clareza ficou alterado ganhando uma cor avermelhada com marcas de dedo da agressora e a sua obesidade que ondulava no vestido de capulana, parecia ter ganho uma magreza instantânea.

 

Ela, a senhora administradora tinha toda vontade de ripostar, mas ficou submersa num misto de palermice e ódio.

 

A polícia não demorou a intervir, desarmaram-na dos seus membros superiores, algemando-a, ela ainda esperneou, e um dos seus pontapés atingiu um dos polícias.

 

- Devíamos todos esbofeteá-la, senhora administradora e não bater palmas! – conferiu a mulher convicta – Eu perdi dois filhos engolidos pelo rio quando carretavam água.

 

- Abrir fontenários é vosso dever e não nos estão a fazer favor nenhum! – gritou a mulher, fora de si

 

- Prendam-na! – gaguejou a senhora  administradora Benilde.

 

A revoltosa ainda conseguiu recorrer a mais uma arma, e antes de retirarem-na do local, disparou um grosso escarro que atingiu a dona Benilde na testa.

 

- Quantos familiares perdemos no rio? – perguntou a atacante e ganhou anuência dos seus conterrâneos.

 

Semblantes perplexos conferiram a recolha da sua conterrânea pelas autoridades policiais, detiveram-na na esquadra da vila. O auto foi instaurado, e na débil caligrafia do oficial de serviço lia-se “agressão a sua excelência senhora administradora”

 

O dia ficou refém daquele acto insólito, os aldeãos, uns celebravam a abertura do fontenário e outros a ousadia da dona Mariana Namulile.

 

A ressaca da dupla celebração do dia anterior fez com que muitos não se descolassem as suas machambas.

 

E as mulheres que antes iam ao rio, agora caminhavam com os seus recipientes para o fontenário, comentavam sobre os acontecimentos do dia anterior. A manhã já não era a mesma que se haviam habituado, parecia que estava refém do sucedido.

 

Quando chegaram ao destino perfilaram e a que se posicionava na vanguarda manuseou a bomba e aguardou que a água jorrasse, esperou e nada aconteceu, outra mulher a auxiliou, mas nada, a água continuava a não jorrar. Convocaram então o responsável pela gestão do fontenário. Este fez de tudo mas a água não brotava, o homenzinho não sabia o que dizer nem fazer.

 

Muitos maridos preguiçosos que aguardavam a chegada das esposas para lhes preparar algo quente ficaram intrigados com a demora destas “não foram ao rio, mas ao fontenário porque demoram” cogitavam alguns deles.

 

Um e outro venceu a preguiça, pensou numa ralha e dirigiram-se ao fontenário. O mais ousado dos homens antes de proferir o seu discurso autoritário para a sua mulher percebeu da anomalia que ali se operava.

 

“ Não funciona, enganaram-nos“ – conferiu o homem que vinha com vontade de repreender a mulher.

 

“ Libertem Mariana Namulile” – gritou o homem e um coro não demorou a fazer-se ouvir.

 

Saíram marchando em direcção a esquadra da vila.

 

terça-feira, 01 outubro 2019 10:08

Por um gole incolor

A galopada empreendida pelo pequeno veículo 970cc para vencer a elevação era enorme, sentia-se que todos os cavalos estavam laborando para serpentear os contornos de asfalto em direcção ao monte-mor. Preguei fundo no acelerador senti o carro bufar pelo tubo de escape, gasosa em combustão olhei para o painel, observei o quanto de combustível estava sendo consumida pela ingreme elevação. Queria chegar logo ao destino para rever a pequena vila.

 

Viajava na companhia de um amigo que tagarelava ofuscando a minha liberdade de descobrir a paisagem constituída por moitas acastanhadas, vegetação fulminada pelos raios solares, prova irrefutável que a estiagem habitava implacavelmente a região sul do país.

 

Aquiesço de vez quando para fazer perceber ao meu companheiro que não está em soliloquio.

 

Um declive ingreme confere a viatura mais velocidade, alivio o pé do acelerador, depois coloco o manípulo das mudanças em neutro e relaxo ambos o pés e poupo a gasosa.

 

Atingimos 100 km/h, um baque de ar fresco sacode-me o rosto e refresca viajem. Ainda estamos longe de alcançar o destino que fica a 70km da cidade de Maputo.

 

Ganhamos mais altitude em relação ao nível do mar, noutra galopada para vencer mais uma elevação acentuada, a velocidade caiu para 40km/h, o som da voz do meu colega impunha-se ao som libertado pelo motor do carro.

 

Galgamos a última subida com apoio do pequeno veículo, depois de um estrondoso potenciar do motor atingimos finalmente o cume do monte-mor.

 

Dois postos de tubo galvanizado de 1.50m de altura agarravam uma placa rectangular que hospedava em letras garrafais “ vila da Namaacha”.

 

Logo depois descubro pequenos edifícios lambidos com poeira de areia saibrosa conferindo o tom avermelhado aos edifícios.

 

Vejo garotos suados empurrando carrinhos de mão com bidões de cor amarela e branco e mamanas segurando baldes e bidões.

 

Desembarcamos, alisei o capô do carro como se passasse a mão pela crina do alazão que dirigia

 

a montada que puxava a charrote que nos levou até ao topo do monte. Senti pela sola do sapato que o amago do solo estava ao rubro.

 

Revi a igreja e lembrei-me dos crentes catolicos que durante do mês de Maio escalam a vila na sua peregrinação em busca benesses divinas no santuário da nossa senhora de Fátima, mas depois, durante o resto do ano esquecem a vila para usufruem dos auxílios angariados.

 

O alvoroço que outrora habitava a vila devido a movimentação transfronteiriça deixou de existir, passando aquele corredor a ser percorrido de forma esporádica.

 

Depois de uma breve visita à vila conferenciei com um residente que em jeito de desbafo vomitou o mal estar que a vila enfrentava.

 

“ Não temos água por conseguinte as machambas não produzem, a cascata esta seca, já não temos turistas, enfim vivemos entregues a nossa própria sorte”

 

Magiquei mil e uma soluções para os problemas que enfrentavam. Poderiam começar por proferir preces junto ao santuário, não precisavam peregrinar, já lá estavam. Poderiam pedir por um furo, aliás muitos furos para desaguar em todos bairros.

 

Visitamos um gigante da industria hoteleira ali implantado, quando transpusemos a soleira de acesso descobrimos que estavam numa penumbra não achámos nenhuma vivalma, fizemos soar as nossas vozes, só depois um funcionário meio ensonado atendeu-nos. Enteiramo-nos da funcionalidade do hotel, dos 64 quartos de todos os tipos não tinham nenhum hospede e possuíam cerca de 40 e tal funcionários.

 

Depois da breve visita efectuada aquela que outrora fora uma instancia turistica, partimos calcorreando pelas ruas da vila.

 

As palpitações aceleradas demostravam o cansaço adquirida pelo corpo, freei a caminhada e o meu amigo imitou, estavamos sedentos.

 

Olhei em meu redor e descobri uma barraca. Perguntei se vendiam água.

 

- Só temos água da Namaacha! – replicou a vendedeira.

 

- Peço duas.

 

Um sorriso irónico moldou o meu rosto, olhei para o meu companheiro este bebia inocentemente a sua água.

 

Olhei entristecido para a estatua da nossa senhora de Fátima e tacitamente pedi absolvição para a alma do povo da Namaacha e solicitei numa silenciosa oração.

 

“ Haja água nossa senhora” amém.

sexta-feira, 27 setembro 2019 08:09

Vampiros do asfalto

O inverno no planalto de Chimoio confere uma brisa fria mesmo ao meio dia, por isso muitos citadinos andavam já armados para se protegerem do abaixamento da temperatura que se ia agudizando a medida que o tempo passava.

 

Consegui uma boleia que me levou até a terminal interprovincial de autocarros. Não andei dez metros quando um angariador de passageiros abordou-me, questionando se ia viajar para Beira, quando anui ele logo encaminhou-me para um autocarro que supostamente estava prestes a partir.

 

Antes de embarcar averiguei o preço da passagem que concordei, protestando somente pelo preço que cobravam pela bagagem que não achei nada justo, para cada trouxa cobravam o mínimo de cem meticais, assim o passageiro pagava quase a metade da passagem por pessoa no trajecto Chimoio-Beira.

 

A minha contestação não foi assimilada, logo tive que submeter-me. Embarquei, tomei o lugar que me indicaram, o pequeno autocarro que parecia ter uma lotação de quarenta passageiros estava quase lotado, as bagagens ficavam na parte traseira do interior e a que lá não cabia ficava no corredor, quando os assentos laterais ficaram ocupados, os gestores do machimbombo abriam então os diminutos assentos do corredor que quase descansavam por cima da trouxa dos viajantes.

 

O angariador a cada vez que trazia um passageiro e o acomodava largava uma suposta piada:

 

- Não vale comer sua sardinha com mandioca, sem servir ao seu colega senão o seu vizinho vai-lhe desejar mal.- ai gargalhava ele mesmo.

 

Percebia-se que tentava amainar a impaciência dos viajantes que estavam aborrecidos pela demora e largavam suas justas reclamações.

 

Por fim o machimbombo arrancou.

 

- Até que enfim. – desabafou um dos passageiros.

 

A atapetada via permitia que o veículo deslisasse ganhando velocidade, algumas janelas abertas permitia-nos desfrutar de uma frescura que aliviava o cansaço que nos consumiu durante longas horas de espera. Ainda pela janela divisava moitas verdejantes que constituíam a bela paisagem resguardado por um sol luzidio conferindo uma coloração espetacular ao céu.

 

Trinta minutos depois da partida e com toda a animação que desfrutávamos eis que me apercebo da desaceleração empreendida pelo motorista, esquivo os corpos que obstruíam a minha linha de visão e procuro descobrir pelo vidro para-brisas o empecilho que causava o afrouxamento.

 

Intrometeu-se na via um sujeito que pelo traje era um agente da polícia de trânsito, o pequeno machimbombo parou por completo e o motorista fintou os passageiros e as bagagens para poder desembarcar levando consigo uma pequena pasta plástica do formato a4 que com certeza possuía no seu interior os documentos do veículo. Levou perto de cinco minutos e voltou a tomar o seu lugar e então reembarcamos.

 

As conversas voltaram a animar a viajem, escutava uma e outra mas a paisagem que se oferecia confiscava o meu ser e a minha atenção.

 

A única variante rácica no autocarro era um jovem asiático, talvez de origem paquistanesa, comerciante com certeza, este debatia com o seu colega de assento sobre a religião onde dizia com convicção que para a sua religião Jesus não era filho de Deus mas sim um simples profeta. Este debate captou minha atenção.

 

Um infante chorou e a progenitora calou-lhe pousando o seio na sua boquinha, voltamos a ouvir o som do motor e cada um voltou a embarcar em suas divagações. Já não ouvia o debate, não sei se era pelo som potenciado pelo machimbombo ou se já tinha cessado.

 

Uma nova desaceleração, não levei muito tempo para conferir um chui de trânsito que quase perdia a sua presa por distração, mas foi a tempo de precipitar-se para o meio da estrada e sinalizar triunfante a paragem do veículo. O mesmo procedimento foi executado pelo conformado motorista.

 

Foram somados mais cinco interregnos por conta dos agentes da autoridade de trânsito e cada um tinha o cunho de subtração empreendida pelos demónios de azul e branco que sugavam a receita do transportador.

 

Um refrão de descontentamento soava pela voz dos passageiros cada vez que a nossa viajem era interrompida pelas autoridades de trânsito.

 

Uma pequena insurreição estava prestes a iniciar e se não aconteceu foi porque não surgiu um potencial líder.

 

Continuamos a viajem agastados pela atitude oportunista dos agentes de trânsito que nos atrasavam a cada paragem autorizada pela sua ganancia.

 

- São uns verdadeiros sanguessugas uniformizadas e autorizados pelo estado. – quase gritou um passageiro – pronto estava encontrado o potencial líder. 

 

- Barriga alimentada pelo dinheiro do povo – conferiu outro – pronto o adjunto também estava encontrado. Faltaria talvez a eleição por voto directo.

 

Alcançamos finalmente município de Dondo e o pequeno autocarro continuou rolando com uma velocidade média e só reduzia quando a placa de limite de velocidade para dentro de localidade mostrava 60km/h.

 

Solicitações de paragem foram encomendadas amiúde e descia um e outro passageiro.

 

Adentramos para a área de jurisdição do distrito da Beira.

 

- Cobradura¹ paragem Inhamissua - anunciou humildemente o cidadão asiático.

 

Gargalhamos todos, até o pequeno infante soltou momentaneamente o seio da mãe e mostrou uma careta alegre.

 

cobradura- corruptela do português paquistanês para dizer cobrador

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