Toscanejou para esquerda levado pelo embalo do machimbombo de passageiros interprovincial, depois para direita, continuou por algum tempo ao ritmo do embalo até encontrar algo macio e deixou-se estar.
O seu hospedeiro movimentou-se ligeiramente, mas o seu inquilino continuava encostado no seu ombro, sacudiu-o abruptamente e este despertou ensonado e babado.
O autocarro já havia percorrido 110 km depois da partida às 04h00 da manhã da sua estação na cidade da Beira.
Usurpado pelo cansaço imposto pela humidade, a maioria dos passageiros dormiam para minimizar o calvário da viajem. Outros nem por isso cavaqueavam sobre este ou aquele assunto relativo à situação político-económica do país.
“Os estrangeiros estão a tomar conta dos negócios em Moçambique” relatou um dos conversadores. “Mas também moçambicano é preguiçoso, não quer fazer nada” - dizia outro.
“Vejam como está esburacada a estrada nacional número um, devia ser a melhor estrada de moçambique, sinceramente nossos governantes são incompetentes” – discursava outro.
De repente as vozes calaram-se como que uma ordem suprema os comandasse para tal, ouvia-se somente o roncar do motor e o ressonar conjugado deste e aquele passageiro.
O destino da viajem era a cidade de Maputo, no sul de Moçambique, num percurso de mais de 1200 Km. O autocarro albergava perto de 47 passageiros que era a sua lotação. Havia passageiros de diversas origens, Manica, Tete e Beira, estavam todos absortos nos seus pensamentos.
Moitas verdejantes margeavam a estreita estrada, e quando de longe o motorista descobria um camião que vinha no sentido oposto encostava mais a esquerda para permitir que se cruzassem sem dificuldade e sempre que tal sucedia, um abanão sacudia o autocarro.
Depois, o machimbombo alcançou o topo de um pequeno decline, onde podia-se deslumbrar a ponte sobre o rio Save com as suas águas cristalinas movendo-se mansamente por um lado, enquanto grande parte do rio estava completamente enxuto. A travessia procedeu-se com o machimbombo circulando a velocidade permitida.
Notava-se no semblante da maioria dos que transitava para o sul do país pela primeira vez um temor, creio que convocaram os espíritos dos seus antepassados para que redobrassem a vigilância.
“Vamos para terra de dono” – pareciam cogitar em uníssono.
O machimbombo alcançou o posto de controlo e imobilizou-se, uma série de agentes das autoridades com muito rigor exigiam a documentação, deixaram-nos com a sensação que estávamos num posto fronteiriço de um país estrangeiro.
Autorizados partimos, perdemos mais de vinte minutos na conferência, o motorista foi acelerando gradualmente o veículo para recuperar o tempo perdido.
A competência do piloto foi testada quando no povoado de Maluvane teve que efectuar contornos acrobáticos para escapar os muitos buracos no asfalto com apetência de engolir o machimbombo. Esse movimento acrobático reduziu a velocidade, perdemos muito, mas muito tempo; instantes depois uma bátega sacudiu o tejadilho do autocarro, a temperatura desceu, os passageiros agasalharam-se. O duplo empecilho atrasa-nos sobremaneira, perdemos quase duas horas e meia nessas gincanas acrobáticas que só terminaram no povoado de Pambara.
Depois uma mescla de murmúrios e um cheiro nauseabundo despertou a atenção dos passageiros, a vozearia ia-se incrementando à medida que o cheiro se exacerbava. As lamúrias que moravam no autocarro chamaram a atenção do motorista que também fora fulminado pelo disparo do peido, este viu-se na incumbência de imobilizar o veículo com um abrupto frear.
“Quem fez isso?” – questionou o motorista fora de si.
A zona de desconforto que albergava o titular da flatulência foi investigada, acusações infundadas iam surgindo até que um passageiro de faro apurado detectou o responsável, uma anciã, ela admitiu a infração cabisbaixa.
“A senhora podia pedir” – resmungou mais uma vez o motorista.
Desodorizantes multi-marcas disparam suas fragrâncias para derrubar o cheiro do peido, esses aditivos químicos em formulas desconhecidas pelos seus donos catalisavam ainda mais o desagradável cheiro.
Desembarcamos em debandada com as narinas tapadas, uma pausa involuntária que permitiu esticar as pernas, urinar até fumar um cigarro, este apeadeiro desgostou o motorista que tinha que chegar a ponte sobre o rio Limpopo em Xai-Xai antes das 21 horas porque senão ser-nos-á interdito a passagem.
Reembarcamos com o ar purificado, notava-se nos vizinhos da anciã expedidora de gases uma indisposição.
A vigilância nasal foi redobrada por todos os passageiros, a velocidade do machimbombo progredia, no asfalto agora atapetado.
“arro, arro” – responde uma passageira ao telefone, falando em cinyungwe¹
Logo depois um passageiro solicita que o motorista pare, chegou ao seu destino, são perto das 15h00, a chuva cai de mansinho.
“Chegamos à Maputo?” - questiona-me um velhote.
“Não” - digo com um sorriso, descobrindo que ele ignora a distância real que ainda falta.
“Só chegaremos ao anoitecer” - remato para eliminar a ansiedade do senhor.
Um regozijo colectivo sucede em Massinga aquando do desembarque da anciã libertadora de gases, suspiramos todos aliviados, e como bónus o motorista permite que recorremos a um quiosque para adquirirmos manjares.
“Só têm dez minutos” – dita o motorista.
Partimos com os comensais abocanhando seus nacos de frango, outros bebericando seus refrigerantes.
Nota-se agora um certo entusiasmo entre os passageiros, para tal concorre muitos factores, um dos quais é saber da proximidade dos nossos destinos, outro com certeza é ter deixado para trás a senhora com problemas intestinais.
O machimbombo alcança a cidade da Maxixe com o crepúsculo roubando a luz do dia, descreve uma curva num pequeno arriamento com ligeira inclinação para direita, a altura do autocarro permiti-nos deslumbrar a baia e a cidade de Inhambane.
Com os farolins espreitando o asfalto auxiliando o experimentado motorista, o machimbombo ia ganhando terreno.
“Xai-Xai” – diz um passageiro.
Olho para o relógio, são 19h30, congratulo secretamente o motorista.
A proximidade do destino conferia uma certa animação aos passageiros, uma mudez voltou a habitar o autocarro, depois roncos assaltam a audição dos viajantes que ainda não dormiam.
As 22h22 chegamos finalmente a cidade de Maputo, a azáfama que caracteriza a urbe já havia sido engolida pela noite.
¹cinyungwe é um idioma bantu falado por mais que 400 mil pessoas em Moçambique, principalmente na margem sul do rio Zambeze, na província de Tete, desde a fronteira com a Zâmbia até Doa no distrito de Mutarara. (extraído https://pt.wikipedia.org/wiki/Nhúngue)
A deslocação braçal direita pode ter atingindo os 2300 watts de potência e o som produzido, com certeza, alcançou os 80 decibéis; o suficiente para que os mais próximos e nos arredores terem escutado o impacto ocasionado pela chegada da costa da mão da atacante a bochecha esquerda da senhora administradora do distrito de Muaga na região centro de Moçambique. Com os pés descalços firmes no chão, ela posicionou-se de perfil como um boxeador profissional para desferir o ataque.
Um “ohhh” colectivo ressoou profusamente, os populares estupefactos levaram tempo a processar o que estava a suceder.
Tudo aconteceu no auge da celebração da inauguração do fontanário no terreiro da aldeia 4 de Outubro na vila de Muaga,O magote ali presente havia acorrido ao local depois da propaganda radiofónica ter difundido com alguma insistência “amanhã pelas 10h00 a senhora administradora do distrito irá inaugurar o fontenário”
Os populares captaram a notícia com satisfação e alguns celebraram ingerindo cabanga e esperaram ansiosos pelo dia seguinte.
Depois do ululo popular animado com palmas que não paravam de se fazer ouvir, uma segunda salva de palmas foi angariado pelo mestre cerimónia.
A protagonista do acto violento, uma mulher franzina, parecia possuída por um poder supremo que lhe conferia tamanha força.
A tonalidade do rosto da senhora administradora Benilde conferido pelos produtos de clareza ficou alterado ganhando uma cor avermelhada com marcas de dedo da agressora e a sua obesidade que ondulava no vestido de capulana, parecia ter ganho uma magreza instantânea.
Ela, a senhora administradora tinha toda vontade de ripostar, mas ficou submersa num misto de palermice e ódio.
A polícia não demorou a intervir, desarmaram-na dos seus membros superiores, algemando-a, ela ainda esperneou, e um dos seus pontapés atingiu um dos polícias.
- Devíamos todos esbofeteá-la, senhora administradora e não bater palmas! – conferiu a mulher convicta – Eu perdi dois filhos engolidos pelo rio quando carretavam água.
- Abrir fontenários é vosso dever e não nos estão a fazer favor nenhum! – gritou a mulher, fora de si
- Prendam-na! – gaguejou a senhora administradora Benilde.
A revoltosa ainda conseguiu recorrer a mais uma arma, e antes de retirarem-na do local, disparou um grosso escarro que atingiu a dona Benilde na testa.
- Quantos familiares perdemos no rio? – perguntou a atacante e ganhou anuência dos seus conterrâneos.
Semblantes perplexos conferiram a recolha da sua conterrânea pelas autoridades policiais, detiveram-na na esquadra da vila. O auto foi instaurado, e na débil caligrafia do oficial de serviço lia-se “agressão a sua excelência senhora administradora”
O dia ficou refém daquele acto insólito, os aldeãos, uns celebravam a abertura do fontenário e outros a ousadia da dona Mariana Namulile.
A ressaca da dupla celebração do dia anterior fez com que muitos não se descolassem as suas machambas.
E as mulheres que antes iam ao rio, agora caminhavam com os seus recipientes para o fontenário, comentavam sobre os acontecimentos do dia anterior. A manhã já não era a mesma que se haviam habituado, parecia que estava refém do sucedido.
Quando chegaram ao destino perfilaram e a que se posicionava na vanguarda manuseou a bomba e aguardou que a água jorrasse, esperou e nada aconteceu, outra mulher a auxiliou, mas nada, a água continuava a não jorrar. Convocaram então o responsável pela gestão do fontenário. Este fez de tudo mas a água não brotava, o homenzinho não sabia o que dizer nem fazer.
Muitos maridos preguiçosos que aguardavam a chegada das esposas para lhes preparar algo quente ficaram intrigados com a demora destas “não foram ao rio, mas ao fontenário porque demoram” cogitavam alguns deles.
Um e outro venceu a preguiça, pensou numa ralha e dirigiram-se ao fontenário. O mais ousado dos homens antes de proferir o seu discurso autoritário para a sua mulher percebeu da anomalia que ali se operava.
“ Não funciona, enganaram-nos“ – conferiu o homem que vinha com vontade de repreender a mulher.
“ Libertem Mariana Namulile” – gritou o homem e um coro não demorou a fazer-se ouvir.
Saíram marchando em direcção a esquadra da vila.
Facilmente se pode arguir que, como país, estamos uma colcha de retalhos. Não de todo um traste, ou quase lixo a que (im)piedosamente nos empurram as agências internacionais de monitoria da evolução de indicadores macroeconómicos, mas uma colcha de retalhos e, como se não bastasse, curta e incapaz de cobrir a maioria dos moçambicanos que ficam inescapavelmente com os pés, tronco ou cabeça de fora, geralmente, em associação a equidistância dos círculos dos poderes para cada um.
Por mais que insistamos em regabofes de "visibilidade" nos maiores hotéis da capital, em celebrações de acordos de compromissos de exploração de recursos naturais nas bacias do Rovuma e de outros lugares mais, o essencial não está nas exibições tacanhas do que vamos entregar a predadores económicos que mal se compadecem com a nossa autoinfligida miserabilidade.
Apostar no avacalhamento dos recursos naturais, como estratégia de encaixe financeiro para conferir alguma liquidez e alento de ocasião, que aparente aliviar o sufoco nos desertos que ainda teremos que atravessar, não passa de levianos actos de oportunismo, sem genuíno compromisso com o todo e com as gerações vindouras, para não falar destas que inescrupulosamente se digladiam. Mais grave ainda é retomar negociatas e roteiros obscuros de utilização de recursos naturais que, em princípio, são de todos os moçambicanos e que deveriam servir aos melhores interesses e propósitos do país, a meio de uma salada de inconfessáveis desvios, como são as maracutaias das fatídicas dívidas, outrora ditas ocultas.
É claro que o país não deve parar até que estejam criadas condições ideais para avançar-se em qualquer direção. Na farta sabedoria popular, é lugar comum que o caminho se faz caminhando. Mas não nessa direcção! Uma das mais importantes partes dessa caminhada estaria em criar condições para que tenhamos mais inclusivas e consistentes deliberações sobre as formas de capitalização dos recursos naturais (e porquê não socioeconómicos e culturais) de que dispomos, particularmente na actual conjuntura de evidente erosão da significância do Estado.
Quando o Estado e Governos precedentes e subsequentes se confundem com indivíduos, indiciados, suspeitos, bandidos e detidos, da cúpula ministerial à presidencial, é caso de dizer-se que estamos em estado de sítio. Encalhados e encurralados nas teias das arquiteturas políticas que nós mesmo armamos, muito antes da barbárie em que embarcamos com essa história de construir um quarto andar, com este perfil de timoneiros políticos que o partidão escolheu.
Confesso que já não consigo descortinar vestígios identitários com essa entidade que um dia foi, expressou-se e agiu como reservatório de talentos e idoneidade engajados na mais positiva competição pela apresentação da melhor prestação individual e colectiva nos diferentes sectores. Ainda que tenhamos estado em permanentes conflitos e confrontos, nem sempre fomos reduzidos, como coletividade, aos piores exemplos de cultura política e governamental, de e sobre nós mesmos.
Se, em entrevistas, líderes políticos reconhecem que o fuzilamento era parte da praxe político partidária, as ressalvas conjunturais e escolhas ideológicas podem ser invocadas para dizer que nessa altura, era o prato que lhes era dado a servir, até como reflexo de vivências e experiências de onde, de empréstimo, tomavam tais preceitos ideológicos e práticas.
Hoje, tendo em conta os níveis de abertura, exposição e conhecimento sobre os conteúdos intrínsecos às diferentes opções ideológicas e de governação, não faz nenhum sentido que estejamos piores que nos períodos mais negros da nossa história recente. Tribunais populares, ainda que fossem só de nome, campos de reeducação, nas ignóbeis tragédias que representaram, começam a deixar de equipara-se com o terrorismo aleatório instaurado nesta conjuntura que se poderia considerar mais informada, consciente e exposta aos valores, termos e possibilidades de convivência em espaços assumidos democráticos.
Se antes vivíamos em tempos de incertezas controladas, em que "rusgas" e "denúncias" poderiam ditar sinistras jornadas e imprevisíveis destinos dos indivíduos, hoje confrontamo-nos com situações de imprevisibilidade acrescida para os que duma ou doutra forma se engajam em causas de interesse colectivo à margem da bênção do partido que confunde o Estado consigo mesmo.
Assim foi com Gilles Cistac, pelo "crime" de argumentar em torno da possibilidade de introdução de autarquias de múltiplos níveis, agora materializadas com a instituição das autarquias provinciais, para as quais partidos estabelecidos e nem tanto, concorrem no presente pleito eleitoral. Assim foi com uma dezena de militantes do mais expressivo partido na oposição. Assim foi com indivíduos que simbolizam o livre pensar, como José Macuane e Ericínio de Salema. Assim também foi com Anastácio Matavel, pacato cidadão que se desdobrava, nos interstícios da "política desinteresseira", em promover noções de consciência cívica, direitos e deveres dos cidadãos.
Muito para além das nossas zonas de conforto de onde teorizamos e filosofamos cidadania, indivíduos como Matavel, estão na linha da frente na árdua tarefa de contribuir para a inscrição e materialização dessas tão caras noções e valores de democracia e cidadania no imaginário social, enquanto a educação não chega para todos e enquanto tais princípios e valores não se tornam tão elementares e suficientemente banais e generalizados a ponto de serem classificados como "cultura política nacional".
Às vésperas de mais um pleito eleitoral, cá estamos nós, "a abeira dum ataque de nervos" incertos sobre os perfis dos candidatos presidenciais e/ou "cabeças de lista" que, a serem eleitos, irão representar-nos. Das estrelas e pulhas que compõem os elencos partidários propostos para as assembleias provinciais e nacional, mal falamos, com excepção de isoladas figuras por ousarem atravessar fronteiras que cativas lealdades partidárias mal as reconhecem fictícias e voláteis. Para a santa inquisição, é sacrilégio vestir bandeiras de cores outras, para além da vermelha, presumida guardiã da "generosidade" e, simultaneamente, que se presta à penosa tarefa de vigiar os "eunucos" e castrar qualquer, possibilidade de regeneração. Que delírio!
Na "recta final", cá estamos. Entre pobres manifestos e ostensivas manifestações, a campanha eleitoral traduziu-se em exaltações de fotogenia, fechamento e aberturas angulares de camearas, para além de um inenarrável número de mortos, potencialmente evitáveis, não fosse a obsessão megalómana em fazer vincar grandezas partidárias que, mesmo com intimações e transferências punitivas de funcionários públicos para lugares distantes das suas estruturas familiares, não passaram de formas de expressão lúdica e recreativa. Aos estrategas de plantão recomendaria, vivamente, o abandono da obsessão pelo impressionismo ondulado, que nesta campanha, confundiu-se com onda de sangue.
Surpreendentemente, as fragilidades e fragmentações dos azuis, ainda que levantem celeumas sobre a sua viabilidade como partido-governo, os níveis de insatisfação com o actual partido governante, bem como o descrédito sobre a sua capacidade de "purificação das fileiras" terão contribuído para uma expressiva mediatização de alguns dos seus porta bandeiras. Notória foi a entrada dos filhos e sobrinhos dos chefes nas linhas de frente das campanhas, prestando-se ao necessário papel de subverter os estereótipos das lealdades partidárias. Na sua aparente banalidade, não poderia haver melhor recurso de humanização do outro, e do "relaxamento", usando a linguagem parlamentar, da tradição de desumanização da oposição, qualquer que seja. O artificio da mimetização fotogénica dos rebeldes e revolucionários, a la Che e /ou a la Malema, com direito a "sungura music" parece ter contribuído para apimentar alguns desses espetáculos que, permearam a prestação de quase todos os partidos concorrentes. As diferenças de proeminência e visibilidade, ficam ao cargo das diferenças organizacionais e da pujança do capital financeiro ou capacidade de usufruir, indevidamente, dos recurso do Estado.
Ainda que seu líder não aparente estar a baixar a crista, um dos mais articulados e coerentes candidatos desta maratona, o aparente declínio do partido do galo parece ilustrar, não apenas a reconfiguração de forças no cenário político nacional e soa como uma última performance de um proeminente actor político cujas escolhas e fluxo dos acontecimentos terão desgastado parte do seu capital e limitado as probabilidades de triunfo, pelo menos aos patamares de escala nacional. Como se tivesse que carregar o carma pela imperícia na lide com gigantesco finado edil de Nampula. Pelo que leio, talvez a memória do seu muito honroso mano a mano com o ciclone Idai poderá salvar-lhe a honra.
Enfim... vão-se os anéis, ficam os dedos, que se esperam mais prestativos aos tocar a tinta indelével, riscar em papéis e inebriar-nos em vaga sensação de escolha. Em qualquer que recaiam as nossas, vossas escolhas, o processo eleitoral, descredibilizado que é, ainda é o legítimo caminho para comunicar e, eventualmente, inscrever as nossas aspirações alto e bom tom. A meio de sistémicos desencontros, que não percamos de vista que, por enquanto, Moçambique é feito e se faz com estes mesmos trapos, uns mais desgastados que outros, uns menos briosos que outros, mas que, se levados à sério, podem ser capitalizados para continuarmos a costurar essa colcha de retalhos que, ainda que não nos baste, cobre-nos como dá.
Aos arruaceiros, vestidos a rigor ou não, aos ladrões de votos e urnas, tenho a dizer que têm mais uma preciosíssima oportunidade de se redimirem, no dia 15 e período subsequente, fazendo a coisa certa e deixando que as consciências, vontades e liberdades de todos os moçambicanos fluam e sigam o seu curso, como é de dever, como é de direito.
O assassinato bárbaro do activista social Anastâcio Matavel pelas mãos de membros do Grupo de Oprações Especiais confirmou a existência dos famigerados esquadrões da morte no seio das próprias Forças de Defesa e Segurança.
Vai daí que a hierarquia policial decidiu criar uma Comissão de Inquérito para apurar a verdade dos factos. À partida, parece ser essa uma medida louvável mas seria tamanha ingenuidade da minha parte chegar a essa conclusão.
A criação dessa Comissão do Inquérito parece-me problemática. Acho ser crucial questionar a sua composição: todos os integrantes dela são membros da Polícia da República de Moçambique. A pergunta que não cala é como é que a Polícia se pode auto-investigar, sobretudo, porque membros da corporação praticaram um crime hediondo.
Neste sentido, parece-me que uma saída seria ou de se constituír uma Comissão de Inquérito mista ou um Comissão de Inquérito independente. A PRM não tem credibilidade para ser árbitra onde já é jogadora. Até porque há muito que ela é sistematicamente acusada de abrigar esquadrões de morte no seu seio, sem que houvesse uma resposta célere e transparente para abordar as acusações. Se desta vez ela decidiu agir, é provavelmente porque foi apanhada com a mão na botija.
Sendo assim, como é que ela pode ser objectiva, ou melhor, como é que a Polícia pensa que poderá convencer a sociedade moçambicana de que o inquérito será conduzido de forma objectiva? É que se ela já foi acusada de abrigar esquadrões de morte e nunca se pronunciou sobre isso, ou se fê-lo, foi para desmentir as alegações, vai ser difícil convencer os moçambicanos de que fará uma investigação rigorosa e pormenorizada.
A razão disso é que não parece que os assassinos estivessem a agir fora de uma sub-cultura de abuso de autoridade, corrupção e impunidade. Esta não é uma percepção da realidade, mas aparentemente é a própria realidade no seio da Polícia. É verdade que não se pode acusar toda a polícia de corrupta e criminosa, mas os corruptos e criminosos dentro dela têm tanta influência sobre como a sociedade a vê, que a inferência é de que ela é corrupta e criminosa.
Sendo que, para a corporação afastar qualquer suspeita de que o inquérito resultará num encobrimento e impunidade para os mandantes do crime, seja necessário ou adiconarem-se juizes e criminologistas ou criar-se uma totalmente independente da corporação.
A termos uma opção enquanto sociedade, a segunda seria melhor para garantir independência visto que não haveria uma ligação hierárquica entre os investigadores e a Polícia; seria adequada porque teria o potenticial de juntar todas as evidências para determinar quem mais esteve envolvido e quais foram as motivações e sugerir recomendações; também seria transparente porque os procedimentos e a tomada de decisões seriam conhecidas; entre outros. Crucialmente, essa Comissão de Inquérito independente devia ter o poder legal de forçar a corporação a cooperar com a investigação.
Este seria um primeiro passo para se expurgar as maçãs podres da corporação – o ideal é que tal Comissão fosse percurssora de uma instituição independente para investigar os abusos e cultura de impunidade no seio da Polícia. A PRM já teve tempo mais do que o suficiente para se reformar e já é altura de se lhe dar uma ajudinha nesse sentido: precisamos de um organismo independente similar ao Provedor de Justiça, mas com dentes para morder, de modo a que monitorar as actividades da nossa Polícia.
A longo termo, a medida seria benéfica para a própria corporação porque melhoraria os padrões de desempenho dos agentes, levaria a Polícia a agir com maior transparência e accountability. Afinal, a nação quer ver uma PRM mais protectora dos direitos humanos dos cidadãos, mais próxima ao povo, e mais firme e implacável no combate ao crime.
Só uma Polícia que é responsabilizada, respeita e protege os direitos humanos será capaz de construir boas relações com as comunidades, e posicionar-se melhor na prevenção e combate ao crime. Sendo que, os esquadrões de morte não caberiam nessa Polícia.
A galopada empreendida pelo pequeno veículo 970cc para vencer a elevação era enorme, sentia-se que todos os cavalos estavam laborando para serpentear os contornos de asfalto em direcção ao monte-mor. Preguei fundo no acelerador senti o carro bufar pelo tubo de escape, gasosa em combustão olhei para o painel, observei o quanto de combustível estava sendo consumida pela ingreme elevação. Queria chegar logo ao destino para rever a pequena vila.
Viajava na companhia de um amigo que tagarelava ofuscando a minha liberdade de descobrir a paisagem constituída por moitas acastanhadas, vegetação fulminada pelos raios solares, prova irrefutável que a estiagem habitava implacavelmente a região sul do país.
Aquiesço de vez quando para fazer perceber ao meu companheiro que não está em soliloquio.
Um declive ingreme confere a viatura mais velocidade, alivio o pé do acelerador, depois coloco o manípulo das mudanças em neutro e relaxo ambos o pés e poupo a gasosa.
Atingimos 100 km/h, um baque de ar fresco sacode-me o rosto e refresca viajem. Ainda estamos longe de alcançar o destino que fica a 70km da cidade de Maputo.
Ganhamos mais altitude em relação ao nível do mar, noutra galopada para vencer mais uma elevação acentuada, a velocidade caiu para 40km/h, o som da voz do meu colega impunha-se ao som libertado pelo motor do carro.
Galgamos a última subida com apoio do pequeno veículo, depois de um estrondoso potenciar do motor atingimos finalmente o cume do monte-mor.
Dois postos de tubo galvanizado de 1.50m de altura agarravam uma placa rectangular que hospedava em letras garrafais “ vila da Namaacha”.
Logo depois descubro pequenos edifícios lambidos com poeira de areia saibrosa conferindo o tom avermelhado aos edifícios.
Vejo garotos suados empurrando carrinhos de mão com bidões de cor amarela e branco e mamanas segurando baldes e bidões.
Desembarcamos, alisei o capô do carro como se passasse a mão pela crina do alazão que dirigia
a montada que puxava a charrote que nos levou até ao topo do monte. Senti pela sola do sapato que o amago do solo estava ao rubro.
Revi a igreja e lembrei-me dos crentes catolicos que durante do mês de Maio escalam a vila na sua peregrinação em busca benesses divinas no santuário da nossa senhora de Fátima, mas depois, durante o resto do ano esquecem a vila para usufruem dos auxílios angariados.
O alvoroço que outrora habitava a vila devido a movimentação transfronteiriça deixou de existir, passando aquele corredor a ser percorrido de forma esporádica.
Depois de uma breve visita à vila conferenciei com um residente que em jeito de desbafo vomitou o mal estar que a vila enfrentava.
“ Não temos água por conseguinte as machambas não produzem, a cascata esta seca, já não temos turistas, enfim vivemos entregues a nossa própria sorte”
Magiquei mil e uma soluções para os problemas que enfrentavam. Poderiam começar por proferir preces junto ao santuário, não precisavam peregrinar, já lá estavam. Poderiam pedir por um furo, aliás muitos furos para desaguar em todos bairros.
Visitamos um gigante da industria hoteleira ali implantado, quando transpusemos a soleira de acesso descobrimos que estavam numa penumbra não achámos nenhuma vivalma, fizemos soar as nossas vozes, só depois um funcionário meio ensonado atendeu-nos. Enteiramo-nos da funcionalidade do hotel, dos 64 quartos de todos os tipos não tinham nenhum hospede e possuíam cerca de 40 e tal funcionários.
Depois da breve visita efectuada aquela que outrora fora uma instancia turistica, partimos calcorreando pelas ruas da vila.
As palpitações aceleradas demostravam o cansaço adquirida pelo corpo, freei a caminhada e o meu amigo imitou, estavamos sedentos.
Olhei em meu redor e descobri uma barraca. Perguntei se vendiam água.
- Só temos água da Namaacha! – replicou a vendedeira.
- Peço duas.
Um sorriso irónico moldou o meu rosto, olhei para o meu companheiro este bebia inocentemente a sua água.
Olhei entristecido para a estatua da nossa senhora de Fátima e tacitamente pedi absolvição para a alma do povo da Namaacha e solicitei numa silenciosa oração.
“ Haja água nossa senhora” amém.
O inverno no planalto de Chimoio confere uma brisa fria mesmo ao meio dia, por isso muitos citadinos andavam já armados para se protegerem do abaixamento da temperatura que se ia agudizando a medida que o tempo passava.
Consegui uma boleia que me levou até a terminal interprovincial de autocarros. Não andei dez metros quando um angariador de passageiros abordou-me, questionando se ia viajar para Beira, quando anui ele logo encaminhou-me para um autocarro que supostamente estava prestes a partir.
Antes de embarcar averiguei o preço da passagem que concordei, protestando somente pelo preço que cobravam pela bagagem que não achei nada justo, para cada trouxa cobravam o mínimo de cem meticais, assim o passageiro pagava quase a metade da passagem por pessoa no trajecto Chimoio-Beira.
A minha contestação não foi assimilada, logo tive que submeter-me. Embarquei, tomei o lugar que me indicaram, o pequeno autocarro que parecia ter uma lotação de quarenta passageiros estava quase lotado, as bagagens ficavam na parte traseira do interior e a que lá não cabia ficava no corredor, quando os assentos laterais ficaram ocupados, os gestores do machimbombo abriam então os diminutos assentos do corredor que quase descansavam por cima da trouxa dos viajantes.
O angariador a cada vez que trazia um passageiro e o acomodava largava uma suposta piada:
- Não vale comer sua sardinha com mandioca, sem servir ao seu colega senão o seu vizinho vai-lhe desejar mal.- ai gargalhava ele mesmo.
Percebia-se que tentava amainar a impaciência dos viajantes que estavam aborrecidos pela demora e largavam suas justas reclamações.
Por fim o machimbombo arrancou.
- Até que enfim. – desabafou um dos passageiros.
A atapetada via permitia que o veículo deslisasse ganhando velocidade, algumas janelas abertas permitia-nos desfrutar de uma frescura que aliviava o cansaço que nos consumiu durante longas horas de espera. Ainda pela janela divisava moitas verdejantes que constituíam a bela paisagem resguardado por um sol luzidio conferindo uma coloração espetacular ao céu.
Trinta minutos depois da partida e com toda a animação que desfrutávamos eis que me apercebo da desaceleração empreendida pelo motorista, esquivo os corpos que obstruíam a minha linha de visão e procuro descobrir pelo vidro para-brisas o empecilho que causava o afrouxamento.
Intrometeu-se na via um sujeito que pelo traje era um agente da polícia de trânsito, o pequeno machimbombo parou por completo e o motorista fintou os passageiros e as bagagens para poder desembarcar levando consigo uma pequena pasta plástica do formato a4 que com certeza possuía no seu interior os documentos do veículo. Levou perto de cinco minutos e voltou a tomar o seu lugar e então reembarcamos.
As conversas voltaram a animar a viajem, escutava uma e outra mas a paisagem que se oferecia confiscava o meu ser e a minha atenção.
A única variante rácica no autocarro era um jovem asiático, talvez de origem paquistanesa, comerciante com certeza, este debatia com o seu colega de assento sobre a religião onde dizia com convicção que para a sua religião Jesus não era filho de Deus mas sim um simples profeta. Este debate captou minha atenção.
Um infante chorou e a progenitora calou-lhe pousando o seio na sua boquinha, voltamos a ouvir o som do motor e cada um voltou a embarcar em suas divagações. Já não ouvia o debate, não sei se era pelo som potenciado pelo machimbombo ou se já tinha cessado.
Uma nova desaceleração, não levei muito tempo para conferir um chui de trânsito que quase perdia a sua presa por distração, mas foi a tempo de precipitar-se para o meio da estrada e sinalizar triunfante a paragem do veículo. O mesmo procedimento foi executado pelo conformado motorista.
Foram somados mais cinco interregnos por conta dos agentes da autoridade de trânsito e cada um tinha o cunho de subtração empreendida pelos demónios de azul e branco que sugavam a receita do transportador.
Um refrão de descontentamento soava pela voz dos passageiros cada vez que a nossa viajem era interrompida pelas autoridades de trânsito.
Uma pequena insurreição estava prestes a iniciar e se não aconteceu foi porque não surgiu um potencial líder.
Continuamos a viajem agastados pela atitude oportunista dos agentes de trânsito que nos atrasavam a cada paragem autorizada pela sua ganancia.
- São uns verdadeiros sanguessugas uniformizadas e autorizados pelo estado. – quase gritou um passageiro – pronto estava encontrado o potencial líder.
- Barriga alimentada pelo dinheiro do povo – conferiu outro – pronto o adjunto também estava encontrado. Faltaria talvez a eleição por voto directo.
Alcançamos finalmente município de Dondo e o pequeno autocarro continuou rolando com uma velocidade média e só reduzia quando a placa de limite de velocidade para dentro de localidade mostrava 60km/h.
Solicitações de paragem foram encomendadas amiúde e descia um e outro passageiro.
Adentramos para a área de jurisdição do distrito da Beira.
- Cobradura¹ paragem Inhamissua - anunciou humildemente o cidadão asiático.
Gargalhamos todos, até o pequeno infante soltou momentaneamente o seio da mãe e mostrou uma careta alegre.
cobradura- corruptela do português paquistanês para dizer cobrador