O diâmetro da base opaca do copo era menor que a do topo, o copo estava assente numa mesa rectangular de pinho, o conteúdo interior borbulhava até desaguar na superfície espumante, a frescura do líquido dourado transpirava deixando a parte externa deste completamente ensopada.
O proprietário do recipiente olhava meditabundo sem se importar com o barulho produzido por outros clientes que conviviam procurando fazer-se ouvir ante a música ensurdecedora expelida por potentes colunas.
Momentos de regressão inolvidável assaltaram a sua mente, um sorriso inocente errou-lhe pelos lábios ainda sequiosos.
Segurou o copo, sentiu o frescor fluir corpo adentro animando o seu estado de espírito; era a primeira vez em um ano que tinha o privilégio de usufruir de um momento especial, não demorou, deu um gole.
- Ahh! – estalou a língua.
Depois num trago prazeroso eliminou o que ainda restava da cerveja.
Buscou a servente, submersa num mar de gente segurando acrobaticamente uma bandeja com inúmeros copos.
Quando a capturou com o olhar, levantou a mão direita com o dedo indicador erecto, a moça voltou a perder-se para retornar instantes depois com outro copo.
Enquanto aguardava ansiosamente que outro copo chegasse desequilibrou-se devido a estrutura deficiente do banco onde se encontrava sentado, movimentou-se para esquerda com o propósito de equilibrar-se, este movimento fez com que o guarda que se posicionava no limiar do bar o fuzilasse com um olhar inquiridor, mas quando percebeu que o seu vigiado não constituía ameaça manteve-se na posição de o controlar a partir da porta.
A servente pousou o copo na mesa, ele não demorou a segurar e a levar para a boca, tragou sofrivelmente, limpou a barba de espuma, a animação que morava no seu ser redobrou.
Depois levantou-se e caminhou calmamente em direcção à porta onde estava o guarda, estendeu ambas as mãos e este algemou-o, depois cobriu as mãos com uma camisola.
Iniciaram a caminhada de regresso a penitenciária localizada num dos bairros da cidade. Enquanto caminhavam, a movimentação popular fazia-se sentir com os citadinos aglomerados nas paragens, muitos dos que aguardavam o seu momento de embarcar, estavam submersos nos seus telemóveis. Invejo-os pela liberdade que usufruíam, mas estava grato pelo momento de liberdade prematura que lhe permitiu beber dois copos.
“ Museu vazio” – gritou um cobrador de chapa.
Não demoravam para chegar, quando adentraram para o recinto prisional, o recluso verteu lágrimas de saudades dos breves momentos em que foi um homem livre. O guarda prisional acompanhou-o até a sua cela e libertou-o das algemas.
António Murrada cumpria a sua pena de prisão de dois anos devido a posse ilegal de “soruma”.
Dias antes da liberdade provisória, António era hostilizado pelo seu verdugo que de forma implacável infligia pesado castigo, mas Murrada procurava a todo custo cumprir com as normas da cadeia para não sofrer a punição que o seu carrasco prazerosamente impunha.
Mas o guarda penitenciário Rafael Salgado, apossado por um agente maligno encontrava sempre motivos para castiga-lo. Havia dias de cacetadas injustificadas e outros de serviço pesado.
Num desses dias Salgado apresentou-se imponente em frente à cela de Murrada e pediu que o acompanhasse, o prisioneiro resmungou, seu carrasco alvejou-o com olhar incisivo fazendo com que o recluso obedecesse.
Quando chegaram ao destino, o guarda penitenciário indicou-lhe o trabalho que deveria efectuar.
- Desculpa chefe, mas eu limpei as latrinas ontem, hoje é dia de outro – bradou serenamente.
- Preso cento e vinte – cumpra ordens!.
Olhou furioso para Salgado, todo o seu nervosismo ficou condensada nos olhos injectados de sangue. Depois de cumprir a nefasta tarefa regressou para o seu domicílio prisional acompanhado do seu fiel verdugo.
Num dia pela manhã, quando António Murrada tomava o seu banho de sol no quintal da prisão era vigiado severamente pelo guarda Salgado que o fitava sem desarmar.
De repente uma queda aparatosa do guarda Rafael Salgado levantou um reboliço no quintal prisional, ninguém se aproximava da vítima estatelada que esperneava e esbracejava, os seus colegas que estavam longe demoravam a chegar.
Quando todos chegaram, guardas e reclusos ninguém se prontificou a socorrer a vítima pois estavam reféns das suas superstições.
Quando Murrada percebeu do que acontecia correu para socorrer a seu implacável verdugo que sofrera um ataque epilético, o socorrista introduziu um pedaço de pano entre os dentes para evitar que este mordesse a língua e colocou a cabeça da vítima na lateral porque este se babava.
Quando as autoridades médicas chegaram, o primeiro socorro já tinha sido acautelado, recolherem o enfermo, colocaram numa maca e procederam a retida do recinto prisional em direcção ao hospital central de Maputo.
Comentaristas não remuneráveis entre reclusos e guardas debatiam a pronta intervenção de Murrada que apesar de massacrado socorrera o seu mais directo inimigo.
No dia seguinte o pequeno herói da penitenciária foi chamado a presença do director.
- Caro senhor António, estou imensamente grato pela atitude e préstimos oferecido ao nosso colega – afirmou o director. – Graças a sua intervenção o nosso colega escapou.
Murrada manteve-se firme e calado.
- Gostaríamos de recompensa-lo, diga-me o que deseja?
Não demorou para que o recluso levantasse a mão direita e esticasse dois dedos, indicador e o mediano.
- O que significa esses dois dedos, recluso Murrada?
- Dois copos - respondeu por fim – e logo acrescentou. – De cerveja.
- Muito bem, irei pedir a um dos guardas que comprem uma garrafa – afirmou o director.
- Desculpe senhor director, mas o meu pedido não está completo.
- Diga.
- Gostaria de beber os dois copos como um homem livre.
O seu sistema de posicionamento cerebral (SPC) levava-lhe invariavelmente para o mesmo local, todos os dias e ali ficava estabelecendo um acérrimo contacto com a montra que hospedava diverso material de vestuário.
Cumpria rigorosamente dez minutos matinais numa fixação perene sem nenhuma distração, nada o desarmava, transeuntes espiavam-no pelo canto do olho temendo despertar qualquer animosidade que morasse naquela mente.
Quando terminava a sua missão partia e vagueava pelas ruelas da zona alta da cidade de Maputo, sempre andrajoso e com a sua cabeleira curta completamente despenteada.
O seu rosto taciturno deixava transparecer uma introspeção mordaz, não se lhe adivinhava as acções, amiúde recorria a alguns locais onde recolhia algo para comer depois dirigia-se para o local onde repousava, um velho barracão abandonado que partilhava com outros sem abrigo.
Já pelo final do dia, passava horas lendo jornais com auxílio da luz emprestada pelo candeeiro que entrava pela janela escancarada.
Distanciava-se suficientemente de outros moradores do barracão e enclausurava-se, num silêncio que deixava os outros prenhes de um certo nervosismo pela atitude antipática deste.
Ninguém o conhecia ou reconhecia a origem ou identidade do homenzinho meio tísico e com a barba mista povoando seu queixo.
Especulações a respeito do homem surgiam por toda urbe, uns diziam que era um viúvo frustrado, outros que ele fora ministro, os julgamentos populares aumentavam a curiosidade a respeito do homem.
Um dia o homenzinho desmarcou-se da sua posição e avançou em direcção a loja, quando atingiu o umbral foi impedido pelo segurança, ele olhou com desdém para o seu obstáculo e efectuou dois passos na rectaguarda, parou, levou a mão directa para o bolso do seu calção roto e sujo; o guarda retirou a arma que trazia a tiracolo e a empunhou.
Este acto conferiu um momento de alvoroço na loja e nas imediações, os transeuntes que estavam perto dali pararam e advogaram o indefeso, mas mesmo assim o segurança manteve-se irredutível.
O homenzinho sereno mostrou o dinheiro que acabava de sacar do bolso, mas mesmo ante este gesto desarmado o guarda continuou irredutível. Assim ele optou desistir de visitar a loja arrumou seu dinheiro, recolheu a sua vontade e rumou para outro destino.
As incursões a sua loja predilecta já durava um mês, ninguém desvendava porque o fazia, mas depois desta tentativa frustrada de aceder muitos depreenderam que o homenzinho deveria querer adquirir alguma vestimenta para si, pois andava completamente esfarrapado.
No dia seguinte o homenzinho não se fez presente no seu posto, certo desalento assaltou os peões que se haviam habituado com a comparência dele.
A montra tinha o vidro quebrado e o segurança não sabia explicar o que havia sucedido, a polícia e o gerente da loja faziam o balanço dos prejuízos, para além do vidro espatifado desaparecera um vestido azul e o respectivo manequim.
Quando o indivíduo apareceu perante os demais moradores do barracão ninguém o reconheceu estava todo asseado, cabelo penteado, barba feita, trajava uma camisa de seda castanha e umas calças jeans, estava descalço. Quando percebeu que todos o viam, desapareceu para reaparecer instantes depois acompanhado de uma mulher com vestido azul, ele cantava animado e os dois evoluíam num passo de dança
- Fico feliz por te reencontrar querida Josefa. – disse por fim Albano todo sorridente.
Os outros sem abrigo animados aplaudiam eufóricos.
O chilreio matinal conferia uma musicalidade animadora, por vezes os sons graves impunham-se sobre os agudos e a musicalidade ganhava outra dinâmica.
Depois vinha um som específico, o pau de pilão moendo o feijão nhemba no alguidar de barro, uma mulher sentada num antigo ralador movimentava no sentido horário o pau com ambas as mãos pela força proporcionada pelos músculos retesados.
Apesar de consumida pelos dias ainda revigorava e continuava a laborar para o sustento da família.
Seguidamente sucedia um pequeno interregno na moedura e ela esmagava dentes de alho na massa e continuava com a moedura, nova paragem para introduzir agora folhas de salsa e a massa ia ganhando consistência.
- Bom dia, ainda? – questionou um potencial comensal.
- Bom dia, daqui a pouco – conferiu a mulher que confecionava o manjar.
Quando terminou de preparar a massa, levantou-se e dirigiu-se para o fogão, deu um sopro no carvão e depois de uma fumaça, fagulhas multiplicaram-se e uma brasa nasceu.
O número de futuros comensais aumentava e aguardavam expectantes que a fritura se realizasse, a fumaça evolava e mesclava-se com o odor dos seus corpos. Estavam todos de olhos fitos na frigideira onde o alimento mergulhado no óleo rebolava imparável.
Depois a senhora capturava os acepipes com uma colher e guardava numa bacia de plástico.
Então o primeiro cliente pediu:
- Dez badjias e um pão. - sua voz ressoou mansinho, condicionado pela fome matinal que lhe regulava a mente.
- Com ou sem piripiri? – questionou a vendedeira.
- Com!
A requisição foi atendida e o cliente cortou o pão cassete e introduziu as dez badjias, e logo deu uma mordedura precipitada, mastigou o suficiente para degustar as saborosas badjias da dona Ana, depois da segunda mordedura esboçou um sorriso e na terceira o alimento já não existia.
- São as melhores badjias de Maputo, aliás de Moçambique, sabem do mundo disse por fim! – E largou um sorriso que lhe encheu a cara.
Os muitos clientes que aguardavam a sua vez de serem atendidos não lhe deram atenção, aguardavam a sua vez de calar a fome que cantava nas suas barrigas.
Operadoras do mesmo sector tomaram conhecimento da qualidade do produto confecionado pela dona Ana, sentiram-se ameaçadas principalmente pela subtração diária da sua clientela.
Os fregueses existiam de todo tipo desde estudantes, trabalhadores, peões e automobilistas que vezes sem conta chegavam em busca de badjias.
Um desses dias estacionou um carro com chapa de inscrição do corpo diplomático norte-americano acreditado em Maputo, desembarcam dois indivíduos; o motorista e uma cidadã norte americana, ela se aproximou do posto de venda, os outros fregueses se afastaram com admiração para deixa-la passar, olhavam estupefactos para a mulher loira de cabelos cumpridos que não demorou a alcançar a vendedeira.
Fez a sua solicitação de badjias, os demais clientes ficaram orgulhosos do produto de dona Ana consumidas até por cidadãos estrangeiros. Esta procura internacional carimbou a fama dos serviços da senhora. A aquisição dos acepipes da dona Ana pela americana catapultou as vendas e conflito com as outras vendedeiras de badjias da zona.
Produzia e vendia todos os dias expecto aos domingos com qualidade invariável, os clientes sempre fieis visitavam o seu local de venda que funcionava no quintal de sua casa.
Um mês de concorrência fez com que as outras fornecedoras de badjias decidissem convocar uma assembleia para debater a nova ameaça que representava dona Ana. Dentre várias decisões ficou unanime que todas deviam provar o pastel para assim ficarem a saber porque que os clientes preferiam as badjias de dona Ana e prescindiam as delas.
Quando se reencontraram todas as cinco vendedeiras da oposição afirmaram convictas que realmente as badjias eram muito, mas muito apetitosas. Mais uma vez uma estratégia foi traçada pela enfrentar a concorrência das badjias de dona Ana.
O aumento da procura fazia com que dona Ana não respondesse atempadamente as solicitações, alguns clientes já reclamavam pela demora na resposta. Não demorou muito para ela encontrar uma solução, foi quando contratou uma moça para ajuda-la.
Chamava-se Zulmira e era muito dedicada, o tempo de resposta diminui, pois as tarefas ficaram divididas.
Infelizmente a moça que a coadjuvava só laborou durante uma semana e desapareceu e ai senhora teve que recobrar seus esforços para satisfazer a procura. Trabalhava em três turnos, logo pela manhã, ao meio dia e no princípio da tarde.
A terceira assembleia geral da oposição foi convocada para uma tarde de sexta-feira. Logo depois de aberta a sessão a presidente da mesa solicitou a presença de alguém.
- Conte-nos Zulmira como ela prepara as badjias?
A moça abriu um bloco de notas e passou a relatar os passos seguidos pela dona Ana para o preparo do gostoso acepipe. Todas as mulheres iam atentamente tomando nota.
Na manhã seguinte as donas do grémio da oposição passaram a seguir a receita de dona Ana, mas mesmo assim nos dias que se seguiram os clientes continuavam fiéis as badjias de dona Ana.
O prejuízo que muitas acarretavam fez com que algumas senhoras mudassem de zona para perpetuar o seu negócio. Mas as mais intransigentes continuaram em busca de solução para competir.
Durante o terceiro turno a procura minguava, aparecia um e outro cliente, dona Ana aproveitava esse tempo para efectuar as tarefas domésticas, ficava dividida entre o negócio e os cuidados caseiros. Assim ela afastou-se minimamente do local onde fritava o último lote de badjias da tarde para cuidar da sua neta.
Quando regressou olhou para o fogão e simplesmente não viu a frigideira, limpou os olhos com as costas das mãos, reabriu e nada, a velha frigideira não existia. Ela não podia crer que tinham surripiado a sua velha frigideira.
Inquiriu tristemente entre um e outro que aparecia, mas simplesmente ninguém sabia da velha frigideira.
Das diversas incursões efectuadas à estação de comboio de Mapai com o intuito de adquirir um bilhete de passagem na segunda classe fracassaram. O bilheteiro alegava que não conseguia falar via rádio com os seus colegas em Chicualacuala para saber se existiam vagas.
Olhei para o relógio analógico aparafusado numa das paredes, eram 13h30min, o comboio só chegaria às 14h30min segundo o chefe da estação.
O princípio da tarde dominical era típico de um povoado do interior de Moçambique, completamente dormente.
Voltei para a residencial onde havia passado a noite, e aí fiquei na esplanada a berma da única estrada asfaltada. Perscrutava o lugarejo que por vezes era visitado por um carro que passava velozmente em direcção a Chicualacuala; viajantes caminhavam com as suas trouxas para a estação, das minhas averiguações fiquei a saber que vinham de Massangena, Páfuri e outros lugares.
O apito do comboio soou, duas vezes, arrepanhei a minha mochila, chamei pela servente, saldei a minha conta e rumei apressado para a estação.
O bilheteiro disse-me que poderia embarcar na carruagem de segunda classe e averiguar com o revisor se havia lugar.
A carruagem que buscava não havia parado na plataforma, perscrutei e a vi; apressado alcancei-a, segurei o corrimão, quando balançava para subir, o assistente de bordo, um homem grandalhão, indicou-me a carruagem de 3ª classe, julgando que eu me enganara na escolha.
“Não há lugares?”
“Há” – respondeu
“Então!”
Afastou-se da porta da carruagem e embarquei.
Pelo julgamento precipitado do assistente de bordo este concluíra, pelo meu aspecto meio desmazelado, que eu não tinha como pagar para usufruir das comodidades da classe.
Esperei no corredor pelo revisor enquanto apreciava a movimentação dos passageiros que corriam para embarcar maioritariamente na 3ª classe, este chegou e indicou-me um compartimento com seis beliches ocupada por três mamanas, atirei a minha trouxa para a beliche de cima e voltei para o corredor.
O comboio voltou a apitar e depois um abanão sacudiu a carruagem, as grandes rodas de ferro rolaram na via-férrea, continuei debruçado na janela desfrutando da paisagem que se oferecia. A locomotiva circulava vagarosamente paralela a estrada asfaltada. Depois de dez minutos parou!
Desconfiei da demora neste apeadeiro e então apercebi-me que se procedia ao carregamento de estacas no vagão para esse fim.
Voltamos a rolar, agora com mais velocidade, ainda debruçado na janela da carruagem sentia a brisa beijar-me o rosto.
Decidi explorar a locomotiva, foi então quando escalei a carruagem contígua, “eureka!” celebração introspectiva, acabava de encontrar o melhor lugar no comboio, a carruagem- restaurante e bar.
Clientes hospedados nas mesas desfrutavam de suas bebidas, engoli um seco a cada vez que eles enjeriam o precioso líquido, busquei por uma mesa vaga, mas não encontrei, então fui apreciando ora o movimento do restaurante-bar ora a paisagem, esperando uma mesa ficar livre.
Uma espevitada senhorita, que eu conhecera aquando da viagem Maputo-Mapai, irrompeu carruagem adentro, saudamo-nos como amigos de longa data, trajava uma saia curta, as pernas grossas lhe ficavam salientes, era baixinha e tinha a carapinha curta que enaltecia a sua tez clara.
Vagou uma mesa e sentamo-nos, eu meio carrancudo porque estava desprovido de niqueis para usufruir de uma bebida enquanto ela gaba-se eloquentemente das suas proezas de vendedeira ambulante da rota Chókwè-Chicualacula, continuou armada de sua oratória desarmando seus ouvintes que tentavam expor um e outro facto do seu quotidiano.
Um desconhecido juntou-se-nos na mesa, arrancou uma cerveja que guardava no seu alforge, e prontamente ofereceu-me uma, engoli um seco só de ter a lata na mão.
Um processo de mercantilização tácita foi celebrado quando cedo a minha atenção para o desabafo dos seus dissabores e ela faz com que não me falte cerveja, chego mesmo a pensar que ela gasta os lucros do seu negócio para ganhar a minha atenção.
A intromissão repentina de um indivíduo desarmando-a de algo que ela falara deixou-lhe momentaneamente perplexa, até processar o reconhecimento do senhor septuagenário que é mecânico de Chókwè, seu amigo, que também é viajante assíduo do trajecto Chókwè-Mapai-Chókwè. A nova personagem que se juntara a mesa era também cheia de retórica.
Discursos instigados pelo álcool animam a viajem, a nossa mesa tornou-se o cerne da atenção da carruagem, ela espevitada expõe seus dotes femininos e quando confisca a atenção masculina, levanta-se pousa a perna direita no banco, puxa a diminuta saia, e numa posse expõe a coxa torneada, não queria deixar seus dotes femininos nas palavras que pronunciara a esse respeito.
Uma pequena turba vai-se acercando do pequeno palco onde a nossa actriz vai dando seu espectáculo, contracenando com o velho mecânico de Chókwè que procura contraria-la sempre que ela fala dos seus atractivos femininos.
Um toque de emoção leviana assaltou-lhe a mente e ela pula para o banco onde antes pousara as pernas, ginga o rabo para esquerda depois para direita, bate a nádega majestosamente, é ovacionada com ululos e assobios que combinados com o som produzido pela locomotiva dão ritmo a viajem.
Buscou-a de relance e percebo que ela procura dissipar o seu sofrimento, depois de tudo que me contara não passa de uma infeliz que encontrou uma oportunidade de afugentar o mal.
Olhos masculinos, endiabrados pelo álcool fustigam a dançarina que vai marrabentando ao ritmo da cantiga que ela mesmo entoa, auxiliado pelo coro popular.
O afrouxamento seguido de apitadelas dá-nos conta que estamos próximos de um apeadeiro, os ânimos amainam à medida que o comboio vai parando.
“Mabalane” – comunica um dos espectadores.
Este anúncio desarma a nossa bailarina, um cavalheiro auxilia-a a descer do palco, continuamos a nossa cavaqueira enquanto o público vai-se retirando gradualmente.
Ela conta muitas estórias “da árvore magica que expele uma luz” no troço Cungumuni-Mabalane, e o velho mecânico gaba-se também de seus dotes de reparador de motores daquelas bandas, “sou o melhor mecânico de Gaza”.
São 19h30 min quando a locomotiva se imobiliza por completo na estação de Mabalane.
O papo começa a frear, peço licença e desembarco rumo a estação, a minha amiga dançarina incube-me de adquirir umas cervejas no bar da estação pois garante-nos que são relativamente mais baratas que as da carruagem-bar.
Reembarco antes do comboio apitar e apercebo-me que estou meio ébrio, divagamos ainda no papo enquanto terminamos de beber as cervejas, a locomotiva reinicia a marcha.
Combalidos pelo cansaço, despedimo-nos depois de trocarmos os números de telefone, convidam-me a vir a Chókwè onde desembarcariam e residem.
Cada um ruma para a sua carruagem quando entro na minha, encontro as minhas colegas de viajem dormindo, trepo para a beliche evitando produzir qualquer ruído, então lembro-me que as senhoras são zimbabueanas e se dirigem à Maputo em negócios. Resgatei da mente uma estória que se contava nas grandes cidades sobre os vendedores zimbabueanos que não se importavam de deixar ficar o seu produto mesmo sem o conhecer o domicílio do cliente, prometiam vir buscar o dinheiro no dia prometido. E, assim faziam. As mentes mais férteis garantiam que eles eram fantasmas a serviço do seu senhorio.
O embalo da locomotiva e os mililitros de cerveja mesclados combinam um perfeito sonífero. Horas depois acordo assustado pelo efeito da luz do crepúsculo matinal que entra pela janela do compartimento e a vozearia das senhoras que se arrumam. O comboio experimentava um novo afrouxamento, espreito para averiguar em que estação estamos, “Manhiça”. Espreito o relógio de pulso para descobrir as horas, são 5h00 da manhã.
Depois de esfregar os olhos com as mãos, redescubro as minhas companheiras de viajem, um alento sossega meu espírito, afinal de fantasmas elas não têm nada. Elas desembarcam sem despedir, pelo menos sei que são antipáticas é única coisa que sei até ao momento.
O comboio volta a apitar e as rodas de ferro abraçam a linha, a locomotiva geme, o destino esta próximo, lembro-me da bailarina com saudades.
A vidraça cristalina permitia descobri-la a partir do lugar onde me encontrava sentado, também alguns subsídios luminosos na ordem de uns tantos luxes faziam com que ela cintilasse.
O seu brilho foi o grande chamamento, despertou-me, fui arrebatado pela beleza que ela emanava, venci a timidez que me era característica e pedi para que o servente a chamasse.
A vontade de tê-la por perto medrava a medida que ela se aproximava acompanhada pelo servente.
Quando chegou olhei-a mumificado, sem saber o que dizer, ela trajava uma saia branca com fundo vermelho e adornos dourados e na parte superior tinha um véu branco que lhe cobria o rosto. Exalava uma beleza peculiar que a distinguia das demais.
A apreciação unilateral durou o tempo suficiente de perceber que ela era humilde e este sentimento conferiu-me a ousadia de descobrir-lhe o semblante.
Beleza sublime que me convocou para um êxtase sem igual, divaguei perdidamente por um mundo onírico onde ela era a minha princesa.
Era de origem belga e estava em Moçambique há pouco tempo e já tinha um grandíssimo grupo de admiradores e pretendentes.
A cara dela não me era estranha já a tinha visto amiúde em muitos lugares da cidade de Maputo, sempre impondo seu charme em cada lugar que habitava.
Não demorei a confirmar que eu era seu novo apaixonado e que lhe seria eternamente fiel, pisquei-lhe o olho e ela continuou serena.
Senti que uma tácita relação de intimidade surgira entre nós, segurei-a com a mão direita senti a frescura do seu corpo serpenteando o meu ser, fiquei domado pela sua sumptuosidade. Prontos ela acabava que me possuir sem dizer uma única palavra.
Era a primeira vez que eu me enamorava por uma estrangeira, fora sempre fiel às cá da terra, mas esta forasteira usurpava minha alma.
Depois de confirmada à vontade mútua de nos possuirmos, levei-a aos meus lábios e beijei-a profusamente, toda a minha paixão ficou selada naquele acto. A continuidade amorosa ia-se cimentando com beijo atrás de beijo.
A música que se fazia ouvir metamorfoseou-se com a minha embriagues e solícito levei-a a pista, evoluímos na dança, sempre a segurando firme com a mão direita por vezes a beijava e experimentava uma nova frescura dos seus lábios, e assim ia sucando a essência áqueo do seu magnifico ser.
Voltamos à mesa e as diligências para nos conhecermos melhor aumentava, eu com o meu olhar usurpador e ela ali sempre fresca para mim.
Os meus comparsas de paródia que estavam nas proximidades acompanhadas de duas nativas falavam animados. O ruído das suas gargalhadas por vezes roubava o conluio que se operava entre eu e ela.
Quando me levantei para ir aos lavabos tropecei e logo os meus companheiros anularam a queda.
- Temos que ir embora – conferiram quando se aperceberam da minha embriaguez.
- Não, preciso ficar com ela – disse convicto.
Quando voltei dos lavabos ziguezagueando eles ficaram convencidos que precisavam de me acompanhar à casa.
Ainda vociferei para desencoraja-los, mas eles não se deixaram intimidar, ampararam-me lado a lado e forçaram-me a sair.
Mas antes de abandonar o local gritei:
- Amo-te Stella.