Desembarcamos por volta das 13 na ponte-cais de Inhambane, vindos de Linga-Linga, lugar paradisíaco para onde tenho ido nos últimos anos com alguma regularidade, depois de ter sido convidado pela primeira vez em 2019 por Peter Vurukudzu, um zimbabweano excêntrico capaz de arder à mínima faúlha. Hospedo – sempre que vou – em casa dele, localizada num outeiro, isolada das demais residências que não são tantas. É uma habitação ampla, coberta de colmo maciço com paredes de tijolo e, assim com este material, transmite para o seu interior um ambiente fresco e agradável.
É um privilégio estar na casa de Peter Vurukudzu, de onde se pode contemplar eternamente o Índico, é um regalo. Daqui ainda se ouve o esbater das ondas na areia da costa, e à noite, o hulular do mar é um afago para o corpo e a mente e a alma. Tenho saudades de voltar sempre, e Vurukudzu já me disse, venha quando quiseres, a casa é tua.
Como estava dizendo, desembarcamos por volta das 13 na ponte-cais de Inhambane, mas quem vinha conversando comigo ao longo da viagem é Catidza Maguirimussa, mulher de palavras austeras, livre de bater na minha mão em cada riso, como se já nos conhecessemos de outros caminhos. Estamos sentados lado a lado, enconstados um ao outro de tal modo que o roçagar das nossas roupas e um pouco dos nossos corpos, perturbavam-me e fiquei com a sensação de que ela também sentia-se mexida.
Era eu quem mais falava e Catidza ouvia-me com atenção. Fazia-me perguntas por vezes acentuadas e eu respondia com hosnestidade, sem o receio de que não conheço esta mulher que se desabrocha para mim sem nenhum complexo de me tocar no corpo e bater a minha mão em cada riso. Preferi acreditar na sua sinceridade, no seu fascínio por mim, um homem que ela nem conhece.
Descemos e começou a chover, se calhar para gáudio de Catidza, que abriu o enorme guarda-chuvas cobrindo-nos aos dois, de tal modo que os nossos corpos vão continuar em contacto, num encosto agora mais assustador porque ela abraçou-me, tornando mais flexível a mobilidade, e naquelas condições perdi a capacidade de arvorar qualquer palavra, nem que fosse para dizer idiotices. Foi ela então que se adiantou, dizendo aquilo que tenho dito em muitos momentos: “adoro a chuva”!
Estamos quase no fim do tabuleiro da ponte, que na verdade é onde ela começa, as pontes começam de fora para dentro. Era necessário que dissesse alguma coisa, mesmo sabendo que o meu quoficiente de inteligência é sumário, então repeiti o que Catidza tinha dito : “eu também adoro a chuva”!
Chove chuva fininha sem molhar, mesmo assim, os nossos corpos que se unem em marcha desinteressada. Senti que já não éramos nós que íamos, éramos levados por força desconhecida. Fomos conduzidos sem resistir ou tentar fazê-lo, à varanda da loja do Damodar Jethá “Jethá da esquina”, que seria afinal o ponto da nossa bifurcação.
- Muito obrigado pela companhia, Catidza, obrigado por me teres protegido da chuva.
Ela estendeu-me a mão e disse, leva-o para te lembrares de mim, um dia a gente se encontra por aí.
Peguei no guarda-chuva, abraçamo-nos profundamente e depois fiquei ali a assistir - depois de me deixar com o seu cartão de visitas - a mulher que descia como um anjo até perder-se no desvio da antiga Sapataria Bernardo. Chama-se Catidza Maguirimussa.
Terapia surda
Doroteia, nome grego, que significa dádiva de Deus, decidiu quebrar os seus silêncios e se libertar de suas amarras, curando as suas próprias feridas e traumas. Ela escreve o seu primeiro livro e, com base em factos reiais, pretende dizer à sociedade e ao mundo que, muitas vezes, as famílias se enchem de cuidados para que nada de mal aconteça, aos seus filhos, fora de casa, porém, não têm os mesmos cuidados, dentro de casa, e nem sequer passa pelas suas cabeças que o perigo pode estar tão iminente.
Lipondo ou Terapia da Fala é uma narrativa que nos conduz para o pior que rapazes e raparigas podem, alguma vez, passar na infância. Entender a profundidade e o âmago destas revelações equivalem a compreender a condição humana e as formas de vida que o ser humano impõe a si próprio, para coexistir e sobreviver, ou se autodestruir. São os caminhos perversos que mais do que tornar a peregrinação um momento aprazível, fazem dela uma outra forma de suprir a existência e felicidade do próprio ser humano. Destituir o essencial da nossa condição significa iniciar outra guerra tão mortífera como a guerra das armas.
Estes textos navegam entre diferentes géneros literários. Algumas vezes mais poéticos, outras agrestes e até ficcionais. São como diria Hannah Arendt, a súmula da própria condição humana ou da perversidade dessa mesma humanidade. Sugiro, então, uma leitura cuidada e com tempo, um momento disruptivo e de desassossego. Uma caminhada sofrida e mística. Estamos diante desse buracão, que nos persuade a revisitar temática sobejamente debatida, com estatísticas perturbadoras, porém, cujas soluções continuam tão utópicas, como imprevisíveis e, convenhamos, incompreensíveis.
Estas são as histórias de várias vítimas da violação de direitos humanos, de direitos da criança e do direito de viver um mundo de sonhos e aspirações. Ela descreve, jamais livre, que jaz como menina de saia escocesa vermelha, uma menina morta e sem voz. O funeral profanado de uma infância, a esperança esmiuçada da eternidade dos seus sonhos. Aqui jaz uma inocência; e aqui jaz uma existência.
Por vezes, e em certos momentos, a vida nos conduz para os seus próprios fins e destinos. As marcas de um sofrimento que impelem uma relação psicológica distorcida entre o corpo e a mente. Tudo vira disfuncional. Com a autora, essa sensação de não pertença aconteceu. Sentiu, ao longo de anos, um misticismo destorcido da carne distanciada da mente e do seu intelecto. O corpo deixou de ser, somente, o fenótipo, o visível, mas, também, a parte sensorial e mais notável. Passou, uma vez tatuado pelos traumas, à matéria, no seu estado físico material, como provam todas as lições metafísicas, onde o todo se desencontra das suas partes, se descomunga, atravessando as linhas do imaginário e do inalcançável. Só a força de vontade e o desejo de superação podem falar mais alto.
Eu sou Doroteia ou Dorinha ou, se quisermos, uma mulher de lutas. Pouco mais do que dádiva de Deus, também, posso ser luz; a fonte de energia suprema que nos liberta de todas as trevas, escreve a autora. É doloroso e repugnante reler estas descrições porque se tornaram senso comum, numa sociedade que se debate com gravidez precoce, casamentos prematuros, com mães que são crianças. Um pouco por todo o país, estas verdades morrem ao sabor do vento e quase deixam de indignar.
Relendo Lipondo, e essa apologia ao buraco, um buraco invertido, porque passamos a conhecer o seu interior, sem antes nos atinarmos à superfície, nos recordamos, também, de George Orwell que versou, nas suas obras sobre a paz, a liberdade, a escravidão, sobre a ignorância e a força. Por conseguinte, ele afirmava, que a consolidação do silêncio se comparava ao exercício do direito a voz desse mesmo silêncio. Exercitar o silêncio exigia coragem, da mesma forma que exigia a intuição para a inacção. Libertar a voz era uma terapia, não completa, mas a possível.
Doroteia toca nos extremos, aqueles paradoxos que levam as verdades para o túmulo. Dizia, no começo, que recomendaria uma leitura invertida. Os valores do bom senso também se inverteram. Forçar as crianças, mesmo antes da sua puberdade, a uma relação sexual repetida, tem mais do que perverso, tem maldade e indignação. Desumano e malicioso. Pior quando acontece no tecto da mesma família que julga estar a conviver e a educar. O resto da narrativa suaviza os impactos. Factos consumados e essa busca pela superação e compaixão. Reter aquilo que mais nos pertence, o nosso corpo.
O Prefácio deste livro, que tem a missão de orientar o sentido das nossas leituras, fala numa descrição magnífica, mas, igualmente, numa matéria que faz chorar do princípio ao fim, não só pelo inaceitável, mas, igualmente, pelo facto de serem situações recorrentes e que alcançam milhares de Doroteias, naquilo que elas têm de mais sagrado, que é o seu corpo.
O abuso sexual de menores e, igualmente, de qualquer outra mulher, de qualquer idade, continua um crime repugnável, que iliba o criminoso e pune, duplamente, as suas vítimas. Estes actos infames e violentos e, muitas vezes, desproporcionais, não geram, apenas, a dor e a revolta, mas, enterram e sepultam a mulher e seus sonhos. Eles vão acontecendo a cada segundo, todas as horas, todas as semanas e, muitas vezes, nos mesmos locais.
O nosso país vive esta encruzilhada. O mundo também. São as histórias de terror que ninguém preza escutar. As aporias que, jamais, nos esforçamos a resolver, e os mantos do pior com que o ser humano tem de conviver, a bom rigor, os dissensos com os quais convivemos e, também, em silêncio, nós os homens, ou nós os pseudo-homens.
Quebrar as barreiras do silêncio, como diz Doroteia, tem a missão de tornar em inspiração para outros e para outras. Esse é o sinal de luz, como refere Dorinha.
É necessário que todas as Doras de Moçambique se inspirem na jornada do autoconhecimento. Estas mulheres têm que provar que homem nenhum tem poder sobre elas e nós, que escutamos estas declarações, destas vítimas da violência, precisaremos de entender que só exercitando o poder de escutar, de ajudar e de ser solidário, fará de nós próprios, pessoas mais corajosas, destemidas, solidárias e fraternas.
Precisamos de acreditar que temos, todos, um propósito, pois as histórias de nossas vidas começam muito antes de qualquer escrita ou de qualquer leitura. O sinal da luz está sempre presente nas planícies, nas montanhas, na infinita superfície do mar, no interior de qualquer lipondo. Que esta leitura nos ajude a transformar uma terapia surda em acções que nos libertem e que nos ajudem a falar, sem medos, sem receios e em busca de uma cura que tenha o sentido de todos os sons e de todas as cores das canções. Quando as mulheres vítimas de violência sexual poderem falar, elas serão e estarão empoderando todas as mulheres que vieram antes delas próprias, e até, daquelas que ainda não passaram por esse trauma.
Quem são os Invisíveis?
Não… a pergunta devia ser “quem podem ser os invisíveis, quando lhes é dada a oportunidade certa?”
Em Setembro de 2022, a Sociedade de Desenvolvimento do Porto de Maputo (MPDC), a Plataforma Makobo e o Conselho Municipal de Maputo inauguraram o Kaya, em plena Baixa da Cidade. Mais do que um refeitório social que distribui 100 refeições gratuitas por dia, de segunda a sábado, o Kaya propõe ser uma casa de oportunidade, de igualdade, uma esperança de um futuro melhor para quem vive na rua e sobrevive da rua.
A ideia para esta coleção surgiu neste contexto de inclusão social, inspirada nestas pessoas que a sociedade rotula e esquece, e a quem não é dada outra opção senão a da sobrevivência diária. Partiu também da experiência vivida pela MPDC na implementação de projectos com outros” invisíveis”, as pessoas com deficiência, cuja causa de visibilidade tem abraçado no projecto Porto + (um projecto de emprego inclusivo).
A colecção de streetwear Os Invisíveis, apresentada no dia 9 de Dezembro no maior evento de moda em Moçambique – o Mozambique Fashion Week - é um conceito da MPDC, totalmente desenhado por Vanda Pereira, designer de moda de formação, presente nas primeiras edições do MFW e que é uma profissional de comunicação dedicada no Porto de Maputo. Os modelos que apresentaram a colecção são, na sua grande maioria, beneficiários do Kaya. A colecção está dividida em 4 linhas (“Os escondidos”, Os camuflados”, “Os techno” e “Os adaptados”), cada uma expressando um aspecto diferente das ruas.
Tal como a colecção, o projecto Kaya (um programa de inclusão social), visa dar visibilidade aos seus beneficiários e tem como objectivo, além da solidariedade, capacitar este grupo por forma a devolver-lhe a dignidade, e dar-lhes as ferramentas necessárias para a sua reinserção social. Alguns dos modelos irão iniciar em breve um curso de corte e costura. Outros, irão ter estágios técnico-profissionais nas muitas empresas parceiras que se têm vindo a juntar ao projecto. O objectivo é continuar a encontrar caminhos de inclusão social destas pessoas que vivem à margem da sociedade. Para que um dia não haja invisíveis!
Quanto à colecção “Os Invisíveis”, as roupas serão vendidas e o produto da venda reverte a favor do Kaya. O próximo passo, é o estabelecimento de uma marca própria, produzida pelos próprios “Invisíveis”, de modo a que esta se torne uma fonte sustentável de renda para projectos de apoio a famílias que se encontrem em situação de exclusão.
Desde a sua abertura o Kaya já cadastrou 943 pessoas e serviu 6018 refeições.
A imprensa nacional e internacional, incluindo a media social, as chamadas redes sociais, informam ao público em geral que a Procuradoria da República da Cidade de Chimoio, na Província de Manica, decidiu instaurar um processo-crime contra a produção de um vídeo infantil de natureza pedagógica e de manifestação crítica contra a actuação corrupta da Polícia de Trânsito que se pressupõe tratar-se da Polícia da República de Moçambique (PRM). Esta manifestação crítica foi feita através de produção de um vídeo artístico teatral, cujas personagens são três crianças ainda em tenra idade (6 anos de idade). A Procuradoria da República da Cidade de Chimoio, através de uma alegada nota de esclarecimento, no seu entender, confirmou a existência do referido processo-crime, com trâmites no Tribunal Judicial da Cidade de Chimoio, procurando, erroneamente, dar a entender que instaurou o mesmo em protecção dos petizes envolvidos na cena do vídeo artístico.
O vídeo em questão é, indubitavelmente, revelador de um exercício de cidadania de elevada qualidade, no qual se exalta não só a liberdade de manifestação, mas, sobretudo, a liberdade de criação cultural e a liberdade de expressão que estão constitucionalmente consagrados. Atenção que nos termos do n.º 2 do artigo 47 da Constituição da República de Moçambique (CRM), as crianças têm a prerrogativa de exprimir livremente a sua opinião, o que é também consolidado com o direito à liberdade de expressão que todos os cidadãos têm em conformidade com o artigo 48 da CRM.
Nos termos do n.º 1 do artigo 94 da CRM “Todos os cidadãos têm direito à liberdade de criação científica, técnica, literária e artística.” Por sua vez, o n.º 2 do mesmo artigo refere expressa e inequivocamente que o Estado promove a prática e a difusão das artes.
No entanto, a instauração de processo-crime pela Procuradoria de Chimoio contra a produção e divulgação do vídeo em questão, alegadamente por se tratar de crime de exposição de menor e contra o Estado, constitui acto de ameaça, intimidação e limitação infundada do livre exercício da cidadania e das liberdades fundamentais de manifestação, de expressão e de criação cultural. No mesmo sentido, a conduta da Procuradoria da Cidade de Chimoio contraria o comando constitucional que obriga o Estado a promover a prática e a difusão das artes conforme previsto no supra referido n.º 2 do artigo 94 da CRM. O efectivo julgamento de presente caso “Valter Danone” pelo Tribunal Judicial da Cidade de Chimoio é também assustador e preocupante para um Estado de Direito Democrático e de Justiça Social, conforme é, constitucionalmente, Moçambique.
Em bom rigor, a liberdade cultural na sua vertente artística, é um meio adequado e legal para o exercício da liberdade de expressão e do direito à liberdade de manifestação no contexto do exercício da cidadania que permite a crítica à actuação da Administração Pública, de quaisquer entidades públicas ou privadas, incluindo a PRM, com vista a maior credibilização do Estado aos olhos dos cidadãos.
Através do vídeo em causa, que é de natureza artística com cunho constitucional, se efectivou a liberdade de informação e de comunicação para a sociedade em geral sobre o comportamento da Polícia de Trânsito, e da PRM no geral, cuja função constitucional é garantir a lei e ordem, a salvaguarda da segurança de pessoas e bens, a tranquilidade pública, o respeito pelo Estado de Direito Democrático e a observância estrita dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, conforme estabelece o n.º 1 do artigo 253 da CRM.
Ora, há mais de 10 anos que a conduta corrupta da PRM, expressa no vídeo didáctico em apreço das “flores que nunca murcham”, tem ocupado lugar de relevo na informação anual do Procurador-Geral da República à Assembleia da República sobre o estado geral do controlo da legalidade no País. Não é segredo para ninguém, tanto é que está em documentos oficiais do Estado e que são de domínio público. Pelo que, o vídeo em questão apenas está a traduzir em linguagem e forma mais simples o conteúdo dos informes da Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre a conduta corrupta da PRM.
Outrossim, o criminalizado vídeo está a traduzir a mensagem do Comandante-Geral da PRM que vezes sem conta veio a público denunciar actos de corrupção da Polícia de Trânsito, incluindo na Província de Manica, chegando mesmo a mostrar preocupação pela imagem de vergonha que a Polícia de Trânsito transmite aos cidadãos dos Países vizinhos de Moçambique, vítimas de extorsão pela PRM. Aliás, neste contexto, o Comandante-Geral da RM chegou a mandar significativos grupos de Polícia de Trânsito para a reciclagem.
Daí que, se o vídeo em causa é pejorativo para a PRM e representa crime contra o Estado, também devem ser os informes da PGR e do Comandante-Geral da Polícia que revelam exacerbada corrupção no seio da PRM, com destaque para a Polícia de Trânsito.
Da interpretação do disposto no n.º 2 do artigo 56 da CRM, é fácil perceber que a liberdade de criação cultural pode ser limitada em razão da salvaguarda de outros direitos ou interesses protegidos pela Constituição, como é o caso da salvaguarda da ordem e tranquilidade públicas, respeito pela soberania e pelos órgãos do Estado, o que não se verifica no caso “Valter Danone.”
Como é fácil de notar, o vídeo cultural em causa não constitui qualquer ameaça ou desrespeito pela soberania do Estado, nem desprezo à PRM, até porque a prática da liberdade cultural é feita na boa-fé e com o intuito de chamar à reflexão sobre a má actuação da Polícia de Trânsito a bem da boa administração Pública ou da boa governação e realização da justiça e dos direitos humanos.
A instauração de processo-crime no caso em apreço pela Procuradoria da República da Cidade de Chimoio e a efectiva realização do julgamento pelo Tribunal Judicial da mesma cidade são evidências inequívocas da podridão de um sistema de justiça fantoche que está ao serviço da ditadura e das práticas de abuso de poder e de direitos, num contexto de institucionalização da intimidação e desprezo pelos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos. Urge, portanto, chamar à colação os preceitos legais relevantes para a responsabilização por instauração de processo-crime baseado na má-fé e abuso de autoridade contra a Procuradoria da República da Cidade de Chimoio.
João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e defensor de direitos humanos
Pai Natal!!!
Muitos da minha geração nunca acreditaram na sua existência. E os que acreditavam, provavelmente já não acreditam. Com o andar do tempo os sonhos de menino deram lugar a uma realidade de homens que trocaram a ilusão das cartas que que te escreviam por outros pedidos que talvez não podes realizar. Muitos dos que acreditam em ti, como eu por exemplo, hoje gostaríamos de te pedir um “bom emprego”, casa própria, família saudável e alguma estabilidade. Outros, porém, ainda sonham com uma consola da play station, um carro topo de gama, um relógio de luxo para poder viver o american dream.
Ainda assim, a meio de muita incerteza e alguma frustração, escrevo com a mesma paixão, com a mesma esperança que onde quer que estejas, receberás a minha humilde carta. Ainda que sem mandato do povo da pátria amada, vou chamá-la de nossa carta, pois acredito que nela carrego pedidos e desejos inconfessos de milhões de moçambicanos e moçambicanas do Rovuma ao Maputo e do Zumbo ao Índico.
Poderia por veleidade, começar a minha carta com um pedido de asfalto para algumas das avenidas emblemáticas da cidade capital, mas como deveis saber, Moçambique não é Maputo apenas. Estaria a pecar por egoísmo e vaidade, por conseguinte, a atropelar os valores de inclusão dos quais sou acérrimo defensor. Então, prefiro começar por pedir-lhe que olhe para a nossa EN1 e os seus milhares de quilómetros de buracos que se confundem em alguns momentos com estrada. Acredito vivamente que, com a EN1 em condições, a ligação entre as vastas províncias do país seria uma realidade viva e vivificadora – pessoas, bens e serviços num processo de desenvolvimento, fariam pulsar a nossa ainda frágil economia.
Cheguei a acreditar que fosses produto da coca-cola e que premiavas com bons presentes os meninos e meninas bem-comportados (as) e com bom aproveitamento escolar.
Devo confessar-lhe que, sempre me esforcei em ser um menino comportado, embora na escola nunca cheguei a ser brilhante. Mas o seu critério de bem-comportado faz-me alguma confusão, porque quem mais recebe os seus presentes são os mais abastados e das chamadas classes media alta e rica. Se Natal simboliza paz, amor, esperança, e união entre os homens, não entendo o porquê de uns estarem na constante opulência e outros a passarem literalmente ao lado da vida – mas essa não é sua culpa.
Poderia, sem rodeios, pedir-lhe refrigerantes, rebuçados e um prato de comida para os menos favorecidos e para os milhões de crianças pobres do meu país. Mas, de novo não acho que isso resolveria o problema estrutural que temos em relação as desigualdades, e tampouco, faria do dia-a-dia delas um dia memorável, pois os desafios diários destas crianças são enormes – muitas vezes sem uma refeição digna e sem ganho calórico que as possa permitir estudar e sonhar com o país em que elas sejam um activo do projecto humano e não meros actores e números para angariação de fundos. melhor. Não acho que seria razoável, disfarçar os problemas reais do país em geral e delas em particular com um prato de comida uma, duas ou três vezes ao ano.
Sempre por estas alturas do ano, nos vestimos de branco, vermelho, verde e outras cores natalícias e nos imbuímos da cultura ocidental (para não dizer acidental), e celebramos o amor, fazemos votos de prosperidade, escondemos debaixo do tapete a nossa dura realidade e, torramos os parcos recursos com presentes, viagens e mesas fartas – ano após ano a cena se repete, e o tempo vai passando. Os sonhos vão dando lugar a frustração e somos lentamente consumidos por aquilo que queríamos ter feito, mas não fizemos. E porque a vida encarrega-se de deixar marcas em nós, aos poucos vamos nos tornamos de alguma forma mais egoístas, mais vazios, e fazemos solidariedade de ocasião para mostrar nas redes sociais – o amor e compaixão esta na reserva e a conta-gotas.
Pai Natal!!!
Imagino que que ainda gozas de bom nome, pelo menos entre as crianças, uma vez que frustraste alguns adolescentes e jovens. Sei também que és influente nos corredores dos chamados senhores donos do mundo; que tomas cafés e sumos com os senhores de Bretton Woods. Ao leres esta carta, prometa com carinho e faça advocacia para que Moçambique possa ter não apenas um Natal, mas muitos Natais felizes sem mão estendida para os senhores donos do mundo. Se há quem deve estender a mão, de certeza não somos mais nós.
O meu (nosso) país tem uma oportunidade ímpar de fazer coisas únicas e garantir sustentabilidade e prosperidade para as gerações vindouras. E este é o meu (nosso) sonho – ver o meu país no concerto das nações como uma referência em matéria de desenvolvimento humano, diversificação da economia e redução da pobreza. A oportunidade que cogito nesta carta que já se faz longa, não é o gás do Rovuma, a grafite de Balama, os diamantes de Massangena, o ouro de Manica, os rubis de Namanhumbir, areias pesadas de Moma e Chibuto, nem qualquer outra ocorrência de recursos que bafejam a nossa Pérola do índico. A oportunidade que vislumbro chama-se VONTADE POLÍTICA.
Nesta carta, apelidei-lhe sarcasticamente de Camarada Pai Natal, porque as minhas fontes confidenciaram-me que participaste do último congresso do meu partido e que anotaste atentamente tudo o quanto foi discutido em matéria de governação e planos de desenvolvimento para os próximos anos.
Não nos dê de presente carros de luxo e de alta cilindrada, pois como disse no início da carta, nós nem estradas para esses carros temos; Aceitar esses carros seria pecar de novo e fazer uma apologia ao despesismo de um estado empobrecido com contas apertadas.
Peço Pai Natal, que nos seus corredores, leves à mesa, a agenda de segurança alimentar e revolução verde, advogue por mais acesso a água potável, e saneamento seguro para todas as pessoas e em toda a parte. Leve o nosso peditório de melhor educação e mais acesso à saúde para o nosso povo, e não se esqueça de lembrar-lhes que a condição básica para tudo que isto aconteça é, segurança e estabilidade política. Mas falar de nutrição, saúde, educação e segurança sem que tenhamos discernimento e ponderação, será um saco cheio de nada, então peço que neste Natal leves a mensagem de mais comprometimento por parte de quem governa, mais amor e mais consideração pelo povo que apesar de cansado ainda nutre alguma esperança.
Desculpa por não ter observado o protocolo habitual Pai Natal. Deveria ter iniciado com o meu nome, idade e relatório de aproveitamento escolar. Na verdade, optei pelo anonimato porque meu objectivo primário é fazer com que a carta chegue até si e que te dês tempo de pelo menos a lê-la.
Este ano escrevi e enviei mais cedo pois, sei que sua agenda está mais ocupada do que nunca com o fim da pandemia. Sei que o inverno este ano será mais severo devido por conta das alterações climáticas e das restrições energéticas que o velho continente enfrenta.
Camarada Pai Natal – não se preocupe com embrulho e papel de presente para os nossos pedidos, porque há coisas que não precisam de embrulho. À semelhança de outros natais, não colocaremos meias nas janelas porque muitas das nossas crianças nem casa tem, por conseguinte não tem portas nem janelas.
Se ponderares visitar o nosso Moçambique, não venhas de trenó Pai Natal. Aqui na Pérola do Índico não temos neve nem renas. Nós nos fazemos transportar nos nossos dubais, a pé, e nos famosos my love – quando chegares te explico melhor.
Aqui em Moçambique o Natal rima com verão e, vezes sem conta, com fome (que teima em não acabar). As vezes temos a energia de Cahora Bassa que dizem ser nossa e, esperamos ansiosamente pelo gás do Rovuma que nos deixa alguns resquícios de esperança.
Por: Hélio Guiliche