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domingo, 17 outubro 2021 09:07

Anabela Rodrigues (ex-Directora da WWF) escreve sobre Lara Muaves, “a conservacionista apaixonada” que foi brutalmente assassinada na sexta feira em Maputo

Lembro-me bem do primeiro dia em que a vi, no nosso escritório. Eu tinha começado há pouco a liderar a organização. Ela estava ainda a terminar o seu mestrado na Austrália. De férias em Maputo, foi ao escritório visitar os colegas com quem havia trabalhado. Mal entrou no edifício, cumprimentaram-na vozes cordiais e risadas de satisfação que criaram um momento de pequena euforia à sua volta.

 

Estranhando a agitação pouco vulgar, fui até à escadaria ver o que se passava. Do topo da escada vi a

 

Lara subindo, no seu macacão branco de tecido leve, esvoaçante, com um estampado suave e folhos no pescoço que só deixavam ver os seus colares de missangas. Como ela própria dizia, gostava de roupas apertadas, era alta, bonita, vistosa. Um sorriso estampado no rosto, ainda que meio tímido, com as suas tamancas altas, subia a escada com ar altivo e confiante.

 

Ouviu dizer que havia uma nova directora e vinha à minha sala para me saudar. E deixar um recado. Dali a seis meses estaria de regresso à terra mãe e gostava de voltar a trabalhar naquilo que mais amava fazer, conservação da natureza. Procurava alternativas, avaliava opções. Voltar ao lugar onde tinha trabalhado, o WWF, estava entre as suas prioridades.

 

A linguagem corporal diz muito sobre uma pessoa e a minha intuição deu-me um beliscão. Não nos cruzamos todos os dias com jovens que insistem em continuar a sua formação fora do País, numa área profissional que embora crescendo em importância continua a ser vista com um certo desapreço. Economia, Gestão, Direito, são profissões, dão emprego. Biologia, ecologia, conservação? São um passatempo.

 

Era preciso prestar atenção aquela menina de atitude tão convicta, directa e transparente, dizia-me a minha voz interior. Estávamos em tempo de crise financeira e precisávamos de pessoal qualificado. Fui consultar o seu antigo Processo Individual. Lara era bióloga de formação e a área marinha era o seu território.  Coloquei de imediato a Lara naquele compartimento do cérebro que impele qualquer líder que se preze a integrar competências na sua equipe. Não apenas técnicas mas atitudinais, sobretudo a paixão pelo que se faz, que, a meu ver, acresce sempre valor ao desempenho de uma organização.   

 

Lara voltou a Maputo e demos-lhe um lugar de consultora, a ajudar a Maria João e o Mário. O programa marinho era nessa altura pequeno e com muito pouca gente a trabalhar no tema.  Estava no escritório a Inger, que veio da Suécia para nos dar uma mão. Fez uma viagem de trabalho com a Lara a Pemba, onde estávamos a dar os primeiros passos no estabelecimento de um projecto no Ibo. Ficou impressionada com a Lara e não perdeu a oportunidade de me dizer “Não podes perder essa menina. No seu trabalho ela é uma estrela. Sobretudo na forma como lida com as pessoas e nas redes de contactos que cria”.

 

Foi o que fizemos. Não a deixamos à solta. Talentos assim não se desperdiçam. Tivemos a sorte de receber a notícia de confirmação do projecto de Cabo Delgado e do financiamento que havíamos proposto e contratamos a Lara.

 

E a Lara só ratificou a minha intuição.

 

Passava mais tempo em Pemba e no Ibo do que no escritório de Maputo. Montou o escritório do Ibo, e junto dele um centro de educação ambiental, fez equipe, criou a associação dos agentes comunitários de monitoria participativa dos assuntos do mar e das pescas, pôs do seu lado a associação das mulheres apanhadoras de polvo, levou representantes das comunidades a Madagáscar para aprenderem a fazer as vedas do polvo, iniciou o projecto das vedas que foi crescendo e se transformou num verdadeiro sucesso.

 

Foi notícia de jornais.

 

Não descansou enquanto não me levou ao Ibo. E não foi só a mim. Arrastou com ela para aquela espetacular zona do País vários colegas que passaram a apreciar o que era trabalho marinho, trabalho duro o que faziam ela e a sua equipe. Quem ditava a hora de acordar eram as marés, para que o barco pudesse navegar e levar-nos até às ilhas. Tudo sempre muito organizado. Tinha os marinheiros na linha, a tempo e com tudo em ordem. Fazia-se ouvir pelos operadores de turismo. Administradores de Distrito, Directores Provinciais, Procuradores Distritais e Provinciais, a todos informava e integrava na discussão e tomada de decisões; Com todos se pegava se necessário, ainda que diplomaticamente, motivando-os a apreciar o trabalho que fazia e que afinal era feito no interesse de todos;

 

Apaixonada pelo que fazia, Lara era um verdadeiro furacão. Sem horário, fazia de tudo um pouco, trabalho de campo, mergulho, relatórios, organizava treinamentos, preparava materiais de formação e ainda trabalhava nos orçamentos e contas dos projectos. Tinha uma equipe pequena, que sem dúvida ajudava mas em conservação e na sociedade civil, é assim, estamos sempre abaixo das necessidades quer financeiras quer em recursos humanos. E ela não tinha medo de pôr mãos à obra.

 

Poucos acreditariam que aquela menina de trajes esvoaçantes e vestidos justos, era uma matriarca no trabalho… Abriu portas, elevou o nome da organização. Era uma mulher entre muitos homens que sabia impor-se com suavidade. Era um arauto da importância da conservação do mar e da natureza e transformava quem com ela se envolvia em embaixadores do ambiente.

 

Sempre pronta a enfrentar qualquer desafio, para a Lara, nada era um obstáculo. Por isso se envolveu também com a rede de trabalho de mudanças climáticas criando condições para que não apenas o WWF, mas outros actores da nossa sociedade se fizessem representar e representassem o País em encontros internacionais sobre a matéria. Com orgulho, apresentou várias vezes o trabalho de adaptação às mudanças climáticas, que desenvolveu no Ibo e, com a participação de outros colegas, também nas Ilhas Primeiras e Segundas.

 

Tinha um sentido de responsabilidade acutilante. Assumia os seus erros quando os cometia, não punha a culpa nos outros para fugir a quaisquer críticas ou reprimendas, que aceitava sempre sem guardar animosidade, com a atitude de que é dos erros e das críticas que se aprende. Vinha conversar quando achava que podia beneficiar do conhecimento de quem tinha mais experiência e sabia ter a digna humildade de pedir sugestões.

 

Ficou devastada, emocionalmente afectada mesmo, quando a situação de Cabo Delgado atingiu tal gravidade que não houve outra solução senão encerrar o escritório do Ibo. Nessas horas difíceis em que as comunidades com as quais trabalhara viviam momentos de terror, e a atestar a capacidade que a Lara tinha de criar relações de amizade e empatia com todos aqueles com quem trabalhava, ela recebia chamadas dos pescadores e dos lideres comunitários que lhe íam dando informações sobre o drama que se vivia nas ilhas.

 

Não sei se posso dizer que todos gostavam dela. É que a outra face da moeda de todas essas qualidades profissionais era a sua frontalidade, o que fazia com que, como se diz em linguagem popular, “não tivesse papas na língua” quando era preciso “pôr o guizo ao gato”. 

 

Enfrentava fosse quem fosse quando se tratava de pôr no devido lugar atitudes de falta de profissionalismo ou de fuga a compromissos, de tentar fazer passar por certo o que estava errado.  Era directa, pedia responsabilidades, dizia o que pensava, não condescendia. Não tinha duas caras.

 

Foi com o seu trabalho, com a sua paixão e dedicação, que conquistou o lugar que ocupou e a oportunidade de mais recentemente dirigir um escritório Provincial, uma equipe maior, um projecto de mais responsabilidade. 

 

Ainda o processo estava a meio caminho e já a Lara tinha ganho a estima de todos na Província. Desde técnicos e dirigentes do Governo Provincial, a jornalistas e a procuradores,  todos se mostravam dispostos a colaborar, entusiasmados com o regresso do WWF a Inhambane. Lara já era conhecida como a líder do WWF em Inhambane. 

 

A Lara não trabalhava para receber louros. Trabalhava porque o que fazia a realizava pessoalmente, preenchia o seu sentido de fazer sempre mais e melhor e de tirar disso satisfação pessoal. A Lara trabalhava para produzir resultados e resultados foi o que ela mais ofereceu à organização para a qual trabalhou. 

 

Foi um enorme regozijo ver a Lara crescer dentro de uma organização onde nunca houve muito espaço para que as mulheres ocupassem posições de liderança. Ela fazia parte de um grupo de profissionais mulheres jovens que se tem vindo a afirmar e a conquistar espaço de liderança dentro da organização. Foi um enorme orgulho ver a Lara “promover-se” porque sim foi ela que conquistou as suas promoções.

 

Para além de profissional de mão cheia, a Lara era uma Mulher com M grande. Senhora do seu nariz, sabia fazer-se respeitar, porque se respeitava a si própria e colocava bem alto a sua dignidade de mulher. Como mãe, era uma leoa e todos a ouviam falar do que tinha de mais precioso na vida – o Joca e a Maria João, seus filhos e a mãe – de onde lhe vinha a coragem para se assumir como um dos verdadeiros pilares da sua família.  

 

Quando se tem o privilégio de trabalhar com pessoas como a Lara, de conhecer mulheres como a Lara, vem-nos um sorriso ao rosto, fica mais leve viver, acreditamos que é possível um futuro melhor, mesmo quando mergulhados nesta etapa sombria da história do nosso País que

 

Desculpem-me o desabafo mas hoje perturba-me o silêncio. A LARA NÃO PODE PARTIR SEM DEIXAR RASTO.

 

Desde ontem que tenho a alma alvoroçada, vagueando pela casa sem encontrar sossego.

 

Não dá pata acreditar que a Lara tenha encontrado uma morte tão violenta e abominável. É contrário à natureza humana coexistir com quem tenha sido capaz de tamanha barbaridade. Falo comigo e não consegui encontrar outro espaço para este desabafo senão o facebook e todos os que me conhecem sabem que não sou frequentadora assídua.  Preciso que as palavras transponham a parede do meu peito que as sufoca.

 

Muitos de vós não sabem sequer quem é a Lara. Mas sintam o que estou para aqui a dizer do seguinte modo: A Lara não é uma dessas personalidades famosas, escritora que deixa obra, escultora que exprime sentimentos no barro, oradora que põe audiências a mencionar o seu nome, gestora de grande multinacional, investigadora que publica.

 

A Lara era apenas uma mais de entre os 30 e tal milhões de Moçambicanos que somos, mas ainda assim uma menina especial. LARAS precisam-se. Laras que são Mulher com M grande, que são profissionais de mão cheia, que fazem o que fazem com paixão, honestidade, transparência, frontalidade e coragem, procuram-se, Laras que são mães capazes de fazer dos seus filhos cidadãos de valor e das suas Marias João, Marias que dignifiquem a condição de se ser mulher dona dos seus próprios destinos urgem.

 

São as Laras como a Lara que na rotina do dia a dia, porque cheia de valor, fazem rodar o planeta. 

 

Sou parca em elogios, cuidadosa com o esbanjamento de palavras que resultam apenas na promoção da mediocridade, no desgaste do sentido e do valor do que merece ser elogiado. Não sou de dizer o que não sinto. E também não estou naquela posição que a todos nós humanos nos é muito comum de só falarmos bem da pessoa depois de ter partido deste mundo. Não perdi a oportunidade de dizer à Lara o que pensava sobre ela e o quanto a apreciava.

 

Não que a queira fazer passar por heroína. Os heróis às vezes são fáceis de produzir. Mas como uma mulher que tinha a persistência das ondas, a coragem das marés, a tenacidade do mar. Bate-se todos os dias de mansinho na areia da praia, insistentemente, aperfeiçoando o esculpir da rocha confiante que é assim que tal como o mar molda a costa, nós moldamos as sensibilidades, as vontades de mudar e as apetências para manter viva a natureza. Todos os dias se procura manter o passo, aperfeiçoar a marcha, envolver mais caminhantes sem nunca perder a direcção e o sentido da marcha.

 

Ontem quando soube da triste notícia, invadiu-me uma profunda tristeza.

 

E agora vão mesmo só ficar as saudades dessa menina que só merece apreço. Vão mesmo só ficar as saudades do tempo partilhado e das conversas animadas sobre o Ibo e as vedas do polvo, sobre as mulheres pescadoras e as monitoras de dados do mar, sobre o tubarão baleia, as raias de Inhambane e a devastação dos nossos mares que vai acontecendo um pouco por toda a costa mas também sobre os procuradores que ela tão bem foi capaz de mobilizar para aprenderem sobre conservação, para irem de barco até ao Bazaruto e regozijar-se de terem visto dugongos pela primeira vez. E as conversas sobre a família, sobre o amor, a nossa condição de mulheres e as relações humanas - as que nos marcam pelo afecto, as que nos deixam o sentido de identidade porque vamos à luta e as que nos deixam um gosto amargo na boca pela mesquinhez que representam. 

 

A Lara faz parte da história da minha vida profissional e integra aquele capítulo com o título “VALEU A PENA”.  Com a notícia da sua inaceitável e trágica morte, pensei na mãe, uma mulher sofrida que perdeu dois filhos este ano e para quem envio toda a minha solidariedade. É que não há palavras que consolem o coração de uma mãe que tem que enfrentar tamanha perda, uma perda que ninguém merece. E pensei nos filhos, na Maria João, com apenas dois aninhos, que não vai ter ao seu lado a desvelada mãe que a Lara era.

 

Partiu a Lara, um exemplo de conservacionista apaixonada pela natureza, pelo mar, como poucas. Ficou apenas a memória do que partilhamos, ficou a saudade,  ficou a consternação e um vazio difícil de preencher, um inconformado adeus minha amiga. (Anabela Rodrigues)

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